ERA UMA VEZ...

Antigamente, no tempo em que os dias eram contados pelo curso do sol e da lua, os meses contados pela lua e o ano contado pela posição do sol ou pelas estações climáticas, as coisas tinham outras serventias e as pessoas eram mais importantes que as coisas: as árvores davam frutos, mas, também, sombras. Os animais falavam com os homens, com os quais saiam para passear no campo.

As roupas eram usadas até não prestarem mais e era comum passar de um irmão para outro, mas, ninguém ficava preocupado, pois, não havia moda mesmo. A moda, o sucesso, a onda, o “daora” era sorrir, era viver... Para a roupa, o remendo, para o calçado, uma sola nova e as tintas de um engraxate.

Bom era tomar banho de rio completamente sem roupa e sem culpa. Bom era namorar na relva, bom era sentir a brisa no corpo e ouvir a melodia dos pássaros... Assoviar uma canção, fazer poema enquanto se olhava pras flores ao longo do caminho...

Ninguém ouvia falar de stress, depressão, angústia, correria. Todo mundo era feliz e ninguém sabia, nem precisava saber, pois, não havia o “não-ser-feliz”, mesmo quando algo dava errado: todo mundo sabia que havia a “comédia”, mas, também, a “tragédia”. Ninguém vivia só de alegrias: também se experimentava a tristeza... A felicidade estava no equilíbrio, no saber que nada era eterno, que tudo era movimento: o movimento dos animais, das plantas, da natureza, o movimento do sangue, o movimento da vida... O ciclo da vida que se renovava nas crianças, nos filhotes e nos brotos dos vegetais... O ciclo que se renovava com o nascer do sol...

À noite, todos diante de uma fogueira ou candeeiro, ouviam histórias fantásticas de seres imaginários ou histórias de “mal-assombro”... E todo mundo ia dormir com medo das assombrações da noite, torcendo pelo canto matinal dos galos e pela barra do dia, nascendo no horizonte, quando o sol começava a estender os seus raios, como um pano branco-amarelado, pendurado no vasto varal do céu azul...

E, nos sonhos, a realidade andava de mãos dadas, como um casal de namorados, com os mais belos, criativos e conscientes desejos... Neste tempo, quando dormíamos, podíamos controlar nossos sonhos... e eles viravam reais...

Isto não faz muito tempo... Eu ainda trago reminiscências disto...

Mas, aí, uma bruxa muito má, que morava muito sozinha noutro planeta, e que nunca tinha se apaixonado nem beijado ninguém, lançou uma maldição sobre a Terra, com inveja da felicidade dos homens...

E aí, alguém, enfeitiçado pela bruxa, inventou de inventar o Capitalismo, um monstro muito mal, que soprou sobre os homens um pozinho mágico, que fez com que ninguém se contentasse com mais nada, principalmente as pequenas coisas...

E tudo que era gratuito, tornou-se caro.

E tudo que era vivo, virou artificial, como aquele hamburger famoso da caixinha colorida e como aquele “suco negro”, que mata a sede e mata os homens aos poucos...

E inventaram a superprodução.

E inventaram o consumo.

E inventaram a moda.

E inventaram o plástico.

E inventaram o descartável.

E inventaram que todo mundo devia consumir e ser dono de alguma coisa. E inventaram que a gente não podia mais se contentar em ser nada, mas, sim, em ter alguma coisa...

E quando inventaram o capital, inventaram a acumulação, inventaram os muros e as grades, as cercas elétricas, os cadeados, as câmeras e a frase irônico-ameaçadora “Sorria, você está sendo vigiado, ops!, está sendo filmado”.

E inventaram o isolamento.

E inventaram o computador.

E inventaram a internet

E inventaram as redes sociais, nas quais nós nos comunicamos na proteção da nossa fortaleza-casa, com pessoas que temos medo de falar no meio da rua.

E aí o capitalismo já era dominante. E as pessoas humanizaram as coisas. E as pessoas que humanizaram as coisas, coisificaram as pessoas.

E inventaram o “delete”.

E aí, lembrando dos descartáveis, da moda, do consumismo, do “ter-mais-do-que-ser”, passamos a usar o “del” para descartar as pessoas, assim como descartamos as coisas que a moda determinou como “demodê”...

E aí, passamos a descartar as pessoas, vivas, por nascer, e até as mortas: o luto acaba tão rápido que chega a não dar tempo de enterrar o “viajante”... Ninguém vale mais nada...

E ninguém é mais feliz... e inventaram os antidepressivos, inventaram os grupos e livros de autoajuda, inventaram os resorts, as colônias de férias, nas quais simulamos aquela natureza que, há muito, abandonamos... E inventaram o “Tamagushi” e a “Fazendinha Virtual”...

Mas, nunca mais inventaram humanos...

E aí, na tela do nosso computador, colocamos a mais linda paisagem encontrada na internet, e sorrimos um sorriso murcho ao contemplar a beleza da natureza refletida na tecnologia.

E temos saudades dos tempos em que éramos mais carne e osso e menos plásticos e chips...