O TESTAMENTO DO PORQUINHO (Raul José)
Começa o testamento do porquinho. Como não pude escrever de
próprio punho, ditei para ser escrito.
Disse o cozinheiro Magiro: - Vem aqui, destruidor da casa, fossador,
porquinho fugitivo, e hoje acabo com tua vida. Respondeu o porquinho
Corocota: “ se fiz algo, se cometi alguma falta, se quebrei algumas
vasilhas com os meus pés, rogo, senhor cozinheiro, peço a vida,
perdoa ao suplicante” . Retrucou o cozinheiro Magiro: “ Apressa-te,
menino, traze-me a faca da cozinha, a fim do que eu faça este porquinho
cruento". O porquinho é capturado pelos servos, conduzido
no dia dezesseis das Calendas Lucerninas, quando abundam as salsas,
sendo consules Clibanato e Piperato. E como percebeu que iria morrer,
pediu o tempo de uma hora, e rogou ao cozinheiro para que
pudesse fazer um testamento. Chamou a si seus parentes, de modo
que lhes legasse algo de seus alimentos. Ele disse:
A meu pai Lardino Verrino determino sejam dados trinta módios
de glandes, e a minha mãe Veturina Scrofa, determino sejam dados
quarenta módios de trigo da Laeonia, a minha irma Quirina, em
cujo casamento nao pude estar presente, determino sejam dados
trinta módios de cevada. E de minhas vísceras legarei os pelos aos
sapateiros, as cerdas da cabeça aos briguentos, aos surdos as orelhas,
aos advogados e prolixos a lingua, aos vaqueiros os intestinos, aos
salsicheiros as coxas, as mulheres os lombos, aos meninos a bexiga,
as meninas a cauda, aos efeminados os músculos, aos corredores e
aos cacadores os calcanhares, aos ladroes os cascos. E embora nem
quisesse nomear, ao cozinheiro designado, a concha e o pilão, que
eu trouxera comigo; de Teveste a Tergeste ligue-se o pescoço com
uma corda. E desejo que seja feito para mim um monumento escrito
com letras douradas: “ O PORQUINHO M. GRUNIO COROCOTA
VIVEU NOVECENTOS E NOVENTA E NOVE ANOS E MEIO.
O QUAL SE TIVESSE VIVIDO MAIS MEIO, TERIA COMPLETADO
MIL ANOS” . Meus caríssimos amigos, ou melhor, conselheiros
da vida, rogo-vos que trateis bem do meu corpo e o condimenteis
bem de bons temperos de amendoa, de pimenta e de sal, a fim
de que meu nome seja lembrado para sempre. Meus senhores, ou
melhor, meus primos, que assististes ao meu testamento, permiti que
ele seja assinado.
Lárdio assinou, Ofélico assinou, Ciminato assinou, Lucanico assinou,
Tergílo assinou, Celsino assinou, Nupcialico assinou. Completou-
se o testamento do porquinho no dia XVI das Calendas Lucerninas,
sendo consules, com sucesso, Clibanato e Piperato.