Fábula Contemporânea 14 UMA FORMIGA NA «GÁSPEA»

Na Escola ficava na primeira fila, dedinho sempre espetado e pronta para se habilitar a qualquer resposta que fosse necessário dar. Miga sempre foi de se destacar pelo exaltado cumprimento dos seus deveres e a isso sacrificava tudo. Nunca admitiu não ser a melhor, a mais veloz, a mais competente, a mais apta. A mais! Não tolerava críticas e ameaçava quem lhe disputasse o poder que a tanto custo conseguira. Cresceu assim, a esconder dos colegas as respostas, a boicotar quem ousasse parecer igual ou melhor, a bajular as chefias para poder reforçar o mando. Adorava mandar. A certa altura, porém, sentiu-se poderosa mas incompleta, poderosa mas solitária, poderosa mas odiada. O poder inebriava-a mas era, de facto, insuficiente. Como, entretanto, deitou formas e se arredondou, decidiu fazer-se menos informada, menos sabichona e mais humilde para que o Formi reparasse nela, pelo menos tanto quando ela apreciava as suas qualidades físicas e o seu “charme” de atleta lindo. Resultou. Depois de achar que o seu namorado era uma conquista definitiva, Miga, gradualmente, voltou à velha prepotência, voltou a tentar passar por cima de tudo e todos. Ainda assim marcaram-se as bodas, o correio químico funcionou lindamente para levar a notícia aos confins do formigueiro e o dia, finalmente, chegou. Formi estava impecável no seu fato escuro e Miga, de branco e grinalda, estava feliz e submissa. Tudo parecia correr bem até surgir Iga, a sua pior rival, à frente de dezenas de outras formigas pronta para ganhar a maratona daquele ano. Isso não vai acontecer, disse Miga ao Formi. Retirou a grinalda, despiu o vestido branco e começou a correr, a correr. Chegou em primeiro lugar à frente de Iga e ensaiava o riso de triunfo quando a organização anunciou a nulidade da sua vitória por não ter partido da meta nem sequer se ter, previamente, inscrito para a corrida. Tão frustrada ficou que nunca mais parou para escutar, conversar ou namorar, tudo coisas que exigem calma, moderação e prudência. Passa sempre a correr e toma como piropo estúpido quando dizem: olhem, vai ali uma formiga na “gáspea”. Quando aprenderão que ela é mais que isso, a melhor formiga em todas as modalidades, exceto no amor?

Gáspea: velocidade no calão popular português.

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 15/12/2014
Reeditado em 15/12/2014
Código do texto: T5070170
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2014. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.