A CHEGADA DO ANJO

A CHEGADA DO ANJO

Cidade pacata aquela, interior de São Paulo, pouco mais de 5.000 habitantes, sossego absoluto, crianças pela rua, atravessando sem olhar para os lados, todos se conhecendo, com famílias tradicionais, enraizadas desde os tempos das bisavós, na mesma cidade, nas mesmas ruas, morando nas mesmas casas.

Existia ali uma família muito popular, conhecida de todos, Agostinho, 45 anos, professor primário, profissão hoje quase que exclusiva das mulheres, muito querido pelas crianças, havia alfabetizado quase que a cidade inteira, não havia uma alma sequer que não tivesse passado pelas suas mãos, na pequena Escola daquele lugar.

Agostinho era muito alegre, conversador, moderno para aquela cidade, todas as crianças o adoravam, sempre tinha tempo para elas, atencioso, era responsável também pela catequese, na paróquia da cidade comparecia todos os sábados à tarde a fim de iniciar as crianças no caminho da religiosidade.

Sempre em casa, contava com uma esposa maravilhosa, Maria Lúcia, um doce de pessoa, meiga, tímida, falava baixinho, adorava seu marido, assim como todos daquela cidade.

Mas quem ele mais amava mesmo era Marquinhos, seu único filho, tinha oito anos, loirinho, olhos azuis, chamava-o de Anjo da minha vida.

De uns três anos para cá, Agostinho vinha lutando contra a própria fé.

Uma leucemia havia se apoderado de Marquinhos, fruto talvez da intenção de Deus em comprovar sua devoção, atacando sua maior paixão.

Idolatrava-o demais, dizia sempre a quem estava por perto, o quanto era privilegiado por Deus, ao conceder tão maravilhosa criatura à sua família.

Mas, como não era de seu feitio lamentar, estava resignado perante a convalescença daquela criança, que, com apenas oito anos já havia se acostumado a ficar trancafiado naquele quarto, prostrado naquela pequena cama.

Marquinhos havia se afastado da Escola nesse ultimo ano, pois sentia muita dificuldade até para andar, sua dor era constante, chorava muito, as lágrimas eram resultado da dor terrível, lenta agonia, fenômeno mórbido que aquela doença insistia em lhe trazer.

Mas sempre encontrava um fio de voz para consolar os lamentos e lágrimas de tristeza de Agostinho e Maria Lúcia, que permaneciam sempre ao seu lado, naquela cadeira encostada ao pé da cama, em completa simbiose com sua amada criança, revezando-se com aquela revista dobrada lhe abanando, tentando fazer com que as tapas de ar fresco lhe proporcionassem um mínimo de conforto.

Naquela tarde, sem um pingo de vento, abafava aquele quarto um ar especialmente pesado.

Nada se mexia, o silencio era quebrado apenas pelos lamentos de dor, e os gemidos daquela criança ofegante. O odor dos analgésicos se espalhava pelo ambiente todo, borrifada pela sua respiração tão jovem, e tão desanimada.

Agostinho, um pai verdadeiramente descrente da recuperação de seu filho querido, havia capitulado frente à insistência do sofrimento determinado pela sua cruz, estava resignado perante a proximidade daquela que jamais imaginara presenciar, a perda de sua maior preciosidade.

Aquela criança deitada, cuja pele, era o único manto a acobertar a batalha que se travava dentro de seu corpo, a última e frustrada tentativa que seu organismo cansado fazia em pró daquela alma santa.

A pele estava grudada aos ossos, encapando seu pequeno corpo doente.

De repente, uma jorrada de vento entrou pela janela, a cortina balançou acompanhada de um silvo agudo.

Recostando-se à cabeceira da cama, Marquinhos estranhou o brilho intenso ao lado da janela, contrastando com a leve penumbra daquele quarto.O sol recusara-se a aparecer naquele dia.

—Quem está aí? Esforçou-se Marquinhos para perguntar.

—Sou eu meu querido, teu anjo da guarda, respondeu uma voz suave que parecia vir daquele brilho intenso que ofuscava os pequenos olhos azuis daquela criança dolorida.

Vendo aquela fisionomia escura se mover por entre o brilho, Marquinhos respondeu:

—Anjo tem asa, não tô vendo nenhuma?

—É você papai? (Agostinho e Maria Lúcia haviam ido até a cozinha).

—Não Marquinhos, não é teu pai meu querido, sou eu, teu anjo e protetor.

—O anjo que te guarda, um anjo que sempre esteve a teu lado.

—O que você faz aqui?

- Jamais saí daqui meu querido, sempre estive por perto.

—Aos ouvidos de Deus, tua infância detalhei, foi grande o prazer que me destes ao longo de toda sua existência de inocência, agradeço a todo instante o premio de Deus, ao conceder a mim a tua guarda.

—Cadê suas asas, papai e mamãe sempre me disseram que suas asas eram grandes e branquinhas?

—As asas meu querido, são frutos da imagem que a fé e magia dos ensinamentos de seus pais lhe colocaram no coração, rimos sempre sobre isso, nossos corpos se elevam, não voamos jamais, nos elevamos logo acima de seu corpo, acompanhando teus passos.

O anjo de Marquinhos foi se aproximando da cama, e à medida que se elevava balançou a cortina causando-lhe um suspiro, iluminou-se todo o quarto, a pele daquela criança, grudada aos ossos, empalideceu-se mais ainda com aquela luminosidade. Marquinhos estremeceu, estava maravilhado, sua feição de dor alternou-se imediatamente em alegria, seus olhos brilharam com tamanha grandeza.

—Oh meu Deus! Pai! Mãe! Corre aqui!

—É ele mãe, é quase igual ao que vocês me falavam. (Maria Lúcia e Agostinho viviam implorando aos anjos, proteção a seu filho querido).

—Esqueceu-se que já não tinha forças, tentou se levantar, mas só os braços obedeceram à ordem de seu pequeno corpo.

O anjo parou de repente a seu lado, estendeu-lhe a mão:

—Segura minha mão meu querido, abandona o peso dessa doença em tua carne, as dores jamais te incomodarão, esquece-te dos teus pais, seu coração pertence a Deus agora.

—O que você quer? Porque quer me levantar?

—Acalma-te...A dor já passou, como te prometi, acompanha-me, te levarei ao pai, ele te espera, tua ânsia terminou, esqueça o que passou, tuas lembranças se acabarão em instantes, só a paz vai prevalecer a partir de agora.

—Não! Não quero! Pai? Mãe? Vem aqui! Corre!

—Não tenha medo meu querido, deixe seus pais,eles são fortes, pela fé, suportarão, tem seus anjos também, mesmo quem não acredita tem o seu, eles ficarão bem.

—To com medo! Não quero!

—Venha meu amor, depois volto e digo a seus pais que você está bem, estarei sempre por perto.

Marquinhos, estremecido por aquele anjo, submetido àquela grandiosidade, prostrado frente aquele brilho, amparado e seguro por aquela mão, enquanto sua vida expirava, chorava e sorria ao mesmo tempo.

E foi se acalmando.

A respiração se esvaia, diminuía a cada suspiro, caminhava lento em sua agonia defronte ao escuro da morte, se alguém estivesse a seu lado imaginaria dessa forma. Mas para ele, agora iluminado por

Deus, cujo mensageiro lhe abria os braços num sinal de boas vindas, a agonia já havia lhe abandonado.

—Pai? Mãe? Vem!

E se foi.

Seu corpo recostou-se ao travesseiro, pendeu a cabeça ligeiramente para o lado, com os olhos ainda abertos, como se estivesse procurando seu pai na cadeira vazia ao lado da cama.

E o anjo abandonou aquela mão.

O brilho desapareceu do quarto de repente.

Maria Lúcia e Agostinho, àquela altura, voltavam da cozinha, tinham ido buscar um copo de água para umedecer os lábios trêmulos de Marquinhos, ficaram parados, encostados na parede do corredor, abraçados e chorando em silêncio, estavam ouvindo tudo, e imaginando;

—Não pode ser, é o Marquinhos delirando de novo, consolava Maria Lúcia um pai verdadeiramente desesperado aquela altura.

Ao mesmo tempo em que haviam ouvido os chamados de Marquinhos, o brilho fez com que perdessem a coragem de entrar no quarto.

—Não pode ser! Pensava Agostinho. É só nossa criança delirando.

Apesar da descrença sequer notaram que aquela conversa havia lhe causado lágrimas, não tinham notado que a emoção estava encoberta pela sua insistência em não acreditar naquilo tudo que acabaram de ouvir.

E entraram no quarto.

Maria Lúcia percebeu que Marquinhos estava recostado no travesseiro, estranhamente, aparentava estar sorrindo.

Imóvel;

Gelado;

Sua alma, resignada perante aquele chamado, havia abandonado aquele pequeno corpo doente.

Estava morto.

—Agostinho! Meu Deus do céu! Nosso filho? Agostinho!

O desespero ameaçou tomar conta de Maria Lúcia e Agostinho, mas ela era tão calma que conseguiu conter os gritos.Somente as lágrimas insistiam em encher seus olhos, Agostinho apenas abraçou-a pelas costas e recostou-se a seu corpo triste, pondo-se a chorar copiosamente.

Lentamente Maria Lúcia afastou Agostinho e aproximou-se de Marquinhos, deu-lhe um beijo, e com a palma da mão acariciou os lábios sorridentes de seu amado filho, com a polpa macia de seus dedos cerrou seus olhos.

—Você nos deixou meu querido! Porque? Meu Deus! Porque?

E Agostinho carregou sua esposa para a cozinha, enquanto ouviam a correria dos vizinhos que já começavam chegar perguntando sobre Marquinhos.

Passaram-se três dias do enterro de Marquinhos, e Maria Lúcia não conseguia parar de chorar, um minuto sequer.

Deu-se conta da falta que seu filho querido fazia aos seus dias.

Percebia as lágrimas insistindo em amargar seu rosto.

Soou a campainha.

Quem será? Ainda é cedo para Agostinho voltar da escola, pensou.

A essa hora da tarde?

Caminhou até o portão enxugando as lágrimas com o lenço, abriu, e deparou-se com um baixinho, barba por fazer, cara de nordestino, com um chapéu pequeno na cabeça, e um embrulho de jornal na mão.

—Ô minha senhora, sou vendedor ambulante, tô nessa cidade desde cedo e consegui vendê quase tudo, só faltou esse último anjo.

—Tenho que pegar o ônibus e voltar pra minha terra, estava precisando vender esse ultimo, e o ônibus já vai sair.

—A senhora não tem ninguém lá no cemitério onde a senhora possa colocá esse anjo? Custa 50, mas faço por 30, é o ultimo mesmo.

—Estou sem dinheiro meu senhor.

Respondeu Maria Lúcia, já começando a soluçar novamente.

—O que é que aconteceu senhora, está chorando? Desculpa incomodá, fica com ele, é de presente, é o ultimo mesmo, preciso ir embora dessa cidade, e enfiei na cabeça que ele tem que ficá é aqui mesmo.

—Fica com ele dona. Falta não vai me fazer.

E entregou o embrulho para Maria Lucia.

Atônita, segurando aquele embrulho, percebia uma paz apoderando-se de seu corpo, esforçou-se para não gritar, a angustia toda se concentrava na boca, cerrou os lábios no lenço que carregava para não gritar ali mesmo, no portão.

À medida que caminhava para dentro de casa, foi se acalmando, e as lágrimas secando em seu rosto.

Percebera que o choro e a angustia havia lhe abandonado.

Colocou o embrulho em cima da mesa, e abriu o jornal que o cobria.

Era um anjo lindo, criança ainda, de um granito branco, gelado, maravilhoso.

Um anjo com asas, e era maravilhoso.

Correu para o quarto e colocou-o sobre a cômoda, esperando para mostrar a Agostinho, quando chegasse.

Por um instante, pareceu invadir-lhe o peito, a alma, e o coração, uma sensação de conforto e paz; tão diferente da dor permanente dos últimos dias.

Imaginou então, que aquela imagem de anjo, fora um presente de Deus, talvez uma confirmação celestial sobre o que aconteceu naquele quarto com seu filho, e que a conversa com um anjo, pudesse então, não ter sido um delírio.

Essa sensação boa, de paz, que a imagem do anjo trouxe para dentro da casa dos pais de Marquinhos permaneceu;

E agora, no cemitério daquele lugarejo, existe um tumulo com um pequeno anjo de granito, com lindas asas, e um olhar de guardião, parecendo dirigir-se a quem se aproxima do local de descanso de seu protegido, Marquinhos.

deivisgonçalves
Enviado por deivisgonçalves em 07/11/2014
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