O JANGADEIRO E O MAMOEIRO

O JANGADEIRO E O MAMOEIRO

Quando chegava o São João, recordo-me que a Francisco Holanda e as cercanias se vestiam de uma aura de alegria. Era o povo que esquecia os problemas para pensar no sagrado. Naquela época, jogar bombas na fogueira era coisa séria. Parecia até que o santo havia descido em pessoa para celebrar com os homens a data nordestina. Fortaleza, debaixo de nuvens chuvosas, dava risadas com a boca cheia de milho verde, pamonha, tapioca e canjica. O São João do Ceará é coisa para não se esquecer. Desde a trovoada até o calor arrogante de um sol constantemente irritado, o São João cearense é mágico – a magia de um povo que aprendeu a lutar por melhores dias.

- Leite, deixa de ser enrolado. Você não vai aos Correios?

- Eu levo o negro velho. De fato, o menino de 8 anos segue com o pai numa rural verde ano 66. O cheiro de cola de selo e papel de carta irritou o pequeno mancebo deitado sobre uma pilha de correspondência. O correio cearense naqueles anos sessenta estava muito atarefado. Gente de todos os cantos do Brasil queria dar um olá a seus parentes que residiam na terra do caju ou em qualquer parte do mundo.

- Macaúba! Ontem fui aos correios com o papai.

- Neném, você ficou acordado a noite toda?

- Não. Então como você sabe se ele saiu ou não? Nossa mãe está irritada.

- Ele não saiu não!

- Você dormiu beiço de tamanco!

- Num me chame de beiço de tamanco não! Os dois meninos foram correr pelos areais da Aldeota. Logo esqueceram que os Adultos sonham como as crianças e não percebem isso. O dia foi rápido, o meio dia veio ligeiro, e a tarde logo trouxe a brisa do mar. Naquela época essa brisa corria toda a Rua Francisco Holanda, Silva Paulet e outras ruas importantes do novo bairro de elite. Neném era uma criança filha de um branco sobralense com uma cabocla granjense. As duas famílias tiveram sua história de opulência e declínio no início do século XX. Quando o menino Neném veio a terra, seu Pimentel era um homem triste, e sua mulher Helenice, uma mulher picada pela cobra do ciúme.

- Seu Mamoeiro!

- Sim, pequena criatura humana.

- Por que meus pais brigam tanto?

- Menino, é muito difícil dizer dos hábitos e vícios humanos, mas, se minha humilde palavra contar, posso dizer que eles não estão devidamente afinados.

- Mas, seu mamão, eu num entendi o que sua pessoa quer dizer. Mau pai é magro e minha mãe também, então, eles devem emagrecer mais?

- Num é isso menino das águas doces. Eu quero dizer que o entendimento é o melhor caminho.

- Agora clareou! Arre égua! Vou pedir a Deus para eles se entenderem: “Meu pai do céu, faça papai e mamãe se entenderem, amém”. O menino moreno, de cabelos lisos e corridos, corpo franzino, e rosto de caboclo do Ceará saiu da presença de seu amigo mamoeiro e entrou pela porta dos fundos na cozinha de sua casa. Logo mais a frente, na sala de jantar, todos estavam reunidos à mesa para o almoço. Seu coração batia forte porque seu velho pai não gostava de atrasos para o almoço.

- Leite, por que você não foi me buscar na faculdade ontem? Perguntou a genitora da criança encantada.

- Eu fui, mas, você já havia saído. Respondeu o pai do caboclinho.

- Eu te esperei seu crápula! Insistiu a mulher.

- Eu fui, num já disse! Seu Pimentel era rápido com as palavras.

- Você estava raparigando, seu sem vergonha! A confusão continuou até o fim do almoço. O almoço virou para o pequeno encantado da jurema em uma tremenda briga. O menino sai de fininho da presença de todos e se esconde na casa dos cachorros que ficava nos fundos da residência. Lá, entre peças de carro, ferramentas de trabalhos domésticos e cães, o jovem Neném descansa de mais um almoço atribulado de sua vida. “Acho que se eu morresse eles parariam de brigar”. A ideia pareceu genial no momento, contudo, a velha cadela Malta tinha alguma coisa para dizer:

- Deixa de história menino! Onde já se viu morrer por isso? Todos os casais brigam! Malta latiu três vezes como sinal de repudio ao pensamento do menino.

- Mas, Malta, eu num aguento mais vê os dois desse jeito. Todo menino sonha com um lar feliz. O mancebo chorou no final de sua fala. A velha cadela da família aproximou-se do rapaz, lambeu-lhe as lágrimas; lágrimas quentes de uma alma cândida que só queria brincar e ser feliz. Por um instante, o mancebo temeu a atitude do animal. Malta estava para dar a luz a qualquer momento. Era sua primeira cria. Seu Pimentel dizia: “Cuidado com a cachorra ela está de neném”. Mas, aquele momento no canil da família Leite fora marcado pelo amor divino. Malta lambia as lágrimas do menino e grunhia como se dissesse: “Pare de chorar menino”. Ali, no canil, a comida do almoço pesou e Neném adormeceu entre latas de sinteco, lixas, estopas e outras bugigangas que seu pai guardava para usar em seus afazeres da vida. Neném sonhava que estava na praia dos “Diários” em Fortaleza. Ele fazia casas de areia, ruas e pessoas. A todo instante, a espuma do mar vinha e desfazia tudo. Neném, após, certo tempo, desiste de construir coisas de areia. O menino disse para si mesmo ao som do vento que vem do Oceano Atlântico: “Parece o papai e a mãe, quando a gente pensa que estão bem, de repente tudo desmorona”. A criança sob efeito onírico vê chegando à direção da praia uma jangada. A figura de um ser humano podia ser vista ao longe. A jangada tradicional das terras do Ceará tinha quatro paus, uma vela de algodão amarronzado, um cesto de palha, uma cabaça cheia d’água doce e um banco de madeira onde o navegante sentava para fazer suas manobras. A jangada se achega a praia, e Neném a espera ansioso.

- Chega moço! Por São José eu te ajudo se me ajudas! Neném correu e foi para detrás da embarcação centenária. O mancebo, mesmo sem forças, fazia o mesmo que o homem do mar fazia: Empurrar a jangada para a areia. O homem, com dificuldade rola a jangada sobre toras de coqueiro. Agora, a nau cearense descansava em terra firme.

- Obrigado menino! Você é muito forte para uma criança de sua idade.

- Eu tenho oito. Quando crescer, vou ser pescador.

- E é menino? Então você será um grande pescador!

- E por que homem do mar tu dizes isso?

- Dessa idade já sabe lidar com a jangada. Já é o primeiro passo. O homem abriu o cesto e jogou os peixes na areia para separar os bons dos ruins. Eram, no total, poucos peixes.

- Moço, a pescaria num foi boa não, num foi?

- Menino, Deus dá o peixe do tamanho da fome. Hoje foi só isso, mas, a gente com isso se vira.

- Seu pescador, me leve contigo para me tornar como o senhor.

- Meu filho, meu mar é esse; o seu é a cidade.

- Como assim, homem do mar?

- Tem dia que o mar tem tanto peixe que a gente num suporta o peso. Tem tempo que o peixe some e a gente precisa ir mais para dentro e, então, enfrentamos perigos muitos. Assim, é também a cidade e as pessoas. O mar resume tudo isso.

- Num entendi seu pescador. Tu falas em parábolas.

- As pessoas, e as cidades são como o mar, pois, como tudo ao seu redor é passageiro, assim, dizemos tem tempo para tudo. Para boa pescaria, para enfrentar as lutas e para se calar e sossegar nos braços da natureza como fazes tu agora, menino.

- Então, seu sossegar a coisa melhora lá em casa?

- Sim, senhor, confie em Deus!

- Seu pescador, como é sua graça?

- Meu nome é Pedro. Sou amigo do carpinteiro de Nazaré. Vá em paz com Deus, meu filho!

O som de vozes humanas desperta o pequeno caçula da família. Seu Pimentel com sua chinela de couro de sola de pneus investe contra o mancebo desobediente que adormeceu na casa do cachorro: “Menino desobediente, você num sabe que este animal prenhe pode ser feroz contigo?” O menino amuado no canto da parede espreme os beiços como uma flor vermelha: “Eu me esqueci”. Subitamente a cadela inicia o trabalho de parto. Seu Pimentel esquece as chineladas que seriam investidas contra o filho e corre para socorrer o animal. O cãozinho estava com dificuldades para sair, na verdade, Malta corria risco de vida. A hemorragia era grande; dona Helenice chorava num canto, Macaúba no outro, e seu Pimentel lutava como podia: “Sei não, parece que a coisa está feia”. Neném evadiu-se do local para falar com seu amigo mamoeiro. Macaúba segue com ele:

- Neném você vai fazer macumba com o mamoeiro? Vou dizer para a mamãe!

- Petrônio, meu irmão, o mamoeiro é meu amigo desde o ano passado e preciso da ajuda dele.

- Larga de ser doido, beiço de tamanco!

- Mano, pelo menos, essa vez acredite em mim, vamos salvar Malta!

- Mas, o que eu devo fazer?

- Traga aquela faca virgem que está na dispensa dentro do faqueiro velho. Petrônio correu e como um raio estava de volta com a faca na mão. Neném e o irmão ouvem o estalado dos fogos, o São João ainda reinava na cabeça do povo de Fortaleza.

- Seu mamoeiro, me desculpe, mas, devo fazer isso. A planta se estremeceu por um instante e disse: “Meu pequeno mago da jurema se minha seiva servir, eu a dou de gosto para não mais te ver chorar”. Neném enfiou a ponta da faca no mamoeiro, uma pequena cobra verde desce de suas folhas se enrolando pelo tronco da planta frutífera. No canil, seu Pimentel grita: Nasceu, nasceu, nasceu graças a Deus! A família se reúne no canil da casa. A alegria era imensa, as brigas cessaram, agora, a família Leite por muito tempo num pensava noutra coisa a não ser no mais novo membro da família, o cachorrinho “Baker”. Mas, no quintal da casa, o pé de mamoeiro agonizava com a faca cravada em seu tronco. Sua seiva escorria, ora era água, ora era o líquido verde de clorofila. Um homem ao seu lado, de semblante parecido com o de um pescador retira-lhe a faca mortal. O ser vegetal o agradece e lhe pergunta algo que até hoje esse contador de histórias medita:

“Pedro, tu me amas?” “Então apascenta as minhas ovelhas!”

Roosevelt leite
Enviado por Roosevelt leite em 21/08/2014
Código do texto: T4931278
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2014. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.