O EMPLUMAMENTO
O BICO
Valderlice era uma menina feliz. Seu nome, resultado de um cruzamento de Valdenir seu pai com Alice sua mãe, sempre foi muito aclamada no bairro onde morava, a grota profunda, um recanto de favela nos morros da Vila Magnólia. Eis que um dia deu-se o sinistro e Licinha, como era conhecida acordou a família com um grito de horror. Seu nariz estava endurecendo! O pai mandou logo deu o diagnóstico de gripe e a mãe pegou a bíblia e foi pro quarto orar e cantar salmos. Gritava por clemência, sabia que algum dia a filha seria castigada por levar uma vida profana e devassa. No fundo ela sentia que o castigo podia estar começando. Entre choro e desespero a moça resolveu descansar todo o dia e desmarcou o ensaio do grupo de dança que faria na quadra para um show de funk.
Por cinco longos dias o nariz ficou endurecido e parecia crescer enquanto a carne sumia deixando a cartilagem transparente. A mãe resolveu levar a filha pra UPA. No caminho encontraram com Fabiele que achou estranho aquele lenço amarrado na cara da inimiga. Chegou até a provocar falando alto que “não sabia que era moda vagabunda andar de árabe nas ruas”. Licinha não respondeu,pela primeira vez não tinha vontade de revidar as provocações, seu problema era maior. Toda a raiva de Fabiele fora cultivada por anos desde o dia que Licinha lhe roubou o namorado durante um baile funk. “Roubei só pra jogar fora, pra mim aquele tipo de gente não presta” falou isso pra Fabiele enquanto a coitada chorava. Nunca teve pena das traídas. Catava os namorados alheios sem dó nem piedade. Dizem os mais informados que as vezes a garota chegava a ficar com mais de vinte homens por baile. Mas era só por diversão, nada sério ou profissional. Ela traía,mas o contrário não podia acontecer com ela. Uma vez uma garota ficou com Roberto, seu atual peguete e aos poucos o mal foi acontecendo pra coitada. Não se tratava de macumba ou praga, Licinha era a encarnação da pomba-gira em pessoa, não precisava de religião nos assuntos. O mal das inimigas ela mesma fazia com suas mãos e um coração pra lá de peçonhento. A menina estava inocente, coisa rara no meio das piriguetes. Acontece que nesse dia, Licinha levou mais tempo que o habitual na chapinha e na maquiagem. Seu namorado Roberto Carlos, um carioca recém chegado na cidade que havia montado um grupo de cinco rapazes cantores de funk, “Os Extravagantes”, conhecido aqui no morro como Mc Cacá, chegou no baile e ficou esperando sua amada bailarina. Foi quando passou a pobre Dilcirene que não sabia, mas estava entrando no caminho de sua perdição. Mc Cacá se encantou pelo conjunto que via. Olhos bem arregalados com cílios postiços e maquiagem de um tom de verde periquita, short jeans bem curto desfiado na ponta, tão curto que a calcinha pink aparecia nos fundilhos. Aquela menina era toda, por completa uma bomba rebolativa pronta pra explodir e arrebentar o coração do pobre encantado Roberto. (Uma verdadeira Nem de morro) Ele mandou logo um galanteio “Delícia heim, goxtei de você.” A menina olhou e percebeu que ali, nos braços daquele moreno, ela passaria bem. E veio conhecer o rapaz. “Você quer dar uma voltinha?” ele logo respondeu “Goxxxtaria” com todos os xis que um carioca poderia usar. Apaixonei, pensou ele agarrando a novinha pela cintura e tascando um beijo em sua boca carnuda repleta de batom vermelho vivo. Ficaram ali se conhecendo por uns cinco minutos até a paz acabar com um grito e um repentino puxão que levou Dilcirene para o meio do salão. A traída Licinha rodopiava a sem vergonha que estava com seu namorado puxando pelo rabo de cavalo enquanto gritava palavras de ódio e ria. Ria de toda aquela situação, ou ria de raiva, podia ser também por prazer em violentar uma de suas iguais na frente de todo mundo. Vai ver ela sabia que merecia também aquele castigo e estava satisfeita por ser quem estava batendo e não quem estava apanhando. Ela pulou no pescoço e enforcava, depois bateu bastante na cara, arrancou os cílios postiços, apertou os peitos como quem torce um pano de chão pra tirar água ou espreme laranjas para o suco matinal, foi tudo rápido e ninguém separou. Bateu muito, bateu tanto que ficou cansada e com as mãos doendo. O baile estava acontecendo na associação da comunidade e ela logo foi na churrasqueira , pegou álcool e jogou nos cabelos da outra caída. Mas não conseguiu riscar o fósforo, surpreendida por Mc Cacá que tomou a caixa de sua mão. Nesse momento as agressões partiram para ele e num golpe de raiva ela conseguiu enfiar os dedos nos seus olhos deixando o ex desnorteado. Ela bateu nele como bem entendeu, as unhadas foram aos centos e quando conseguiu pegar o fósforo riscou o fogo e ateou nos cabelos da destruída Dilcirene. Os que estavam presentes assistiram um circo de horrores, a inimiga rodopiava em chamas. Apagaram o fogo e Licinha gritou que galinha pra ela só assada.
Aos poucos o bico se desenhou no lugar onde antes era o nariz. A mãe em desespero levou a filha para o pastor ver, achava que aquilo podia ser um trabalho de macumba bem feito, inimigas eram o que não faltavam naquele morro.
O Pastor Geraldo diagnosticou como encosto de pomba-gira, fez uma prece muito forte com vários “sais” na cabeça da garota. Indicou como tratamento passar óleo ungido de três em três horas e pediu que a piriguete, quero dizer, que a menina voltasse na sexta para um descarrego completo.
AS PENAS
Os dias passaram, na sexta pela manhã algo curioso começou a acontecer. Os cabelos começaram a cair de uma forma tão acelerada que ao meio dia a cabeça estava toda careca.
-Mamãe! Estou morrendo! Licinha em desespero gritava tão alto que a ladeira inteira saiu pra ver o que acontecia. Mais tarde enrolou um lenço na cabeça e partiu para a igreja para o descarrego.
O culto já tinha começado quando a curiosa figura adentrou a igreja toda enrolada em cangas de praia. Uma irmã mais maldosa falou alto “Não sabia que mulçumanas viravam crentes”. Do fundo da igreja irmã Odete correu na direção do ser desconhecido, falava em línguas, gesticulava como se regesse uma orquestra e arrancou todos os panos que enrolavam a cabeça. No meio dos gritos e sussurros uma frase deu pra entender “Sai encosto de piranha” e de repente irmã Odete caiu dura para trás e silenciou. Toda igreja ficou em silêncio quando viu o bico que estava amarelo alaranjado. O pastor pediu para que todos fechassem os olhos, chegou mais perto e disse ser mais complicado do que pensava. A irmãzinha está muito doente, o espírito obsessor já atingiu até as cartilagens. Convidou a igreja para a prece violenta. Todos ergueram as mãos em direção da enferma e começaram a orar em voz alta. Cada um falando sua oração entre aleluias, glórias e sai em nome de Jesus. O barulho parecia de um mercado de peixe e deixou a menina atordoada, cada minuto mais fraca até que caiu desacordada.
Valderlice sempre fora mal vista na comunidade pelo jeito de vestir e de se comportar. Não era uma questão de educação, pois ela frequentou a escola até os 16 anos quando resolveu que não queria mais estudar e só dançaria profissionalmente nos bailes funks acompanhando o Mc Chumbinho. Nos shows era conhecida pelo voo que dava ao ser “disparada por outro dançarino. Consistia em se posicionar com as mãos no joelho, rebolando na beira do palco e o dançarino Edivaldo vinha por trás e dava um tranco em suas nádegas e a jogava na plateia como um torpedo rebolativo. Algumas vezes ela caía de mal jeito e ralava um pouco os joelhos, mas na maioria das vezes era amparada pelos homens que aproveitavam para apalpar suas carnes. Quando voltava pro palco ela gritava “ Eu adoro! Eu me amarro!”
Acordou em sua cama se sentindo fraca e com uma vontade incontrolável de comer milho. A mãe trouxe uma espiga cozida. Ela recusou, pediu que retirasse os grãos. A mãe debulhou a espiga e ainda não estava bom. Só comeu depois que jogou os grãos no chão e começou a pegar com o bico. Alice vendo a cena voltou a chorar. Pela manhã se sentiu disposta, queria ver a natureza, acordou com os primeiros raios de sol e foi tomar um banho. Seu espanto foi maior quando lavou a cabeça e sentiu vários carocinhos por toda parte, sua pele estava repleta de pequenos pontos altos, pareciam espinhas. Marcou dermatologista. Na consulta a médica não entendia, pediu exame de sangue para ver se era um caso de alergia. Não era. O diagnóstico foi impreciso e o tratamento um tanto curioso. Você vai tomar banho com permanganato duas vezes ao dia. Se não fizer bem, mal também não vai fazer.
No dia seguinte alguns pontos na pele começaram a romper e surgiu uma penugem branca. Começou na ponta dos dedos e no alto da cabeça. O pai desconfiado disse para a mãe que a filha estava tomando alguma droga ilegal. A mãe já estava pálida, com olheiras e perdendo peso. A menina não saía mais de casa, não dançava mais o funk rotineiro, mas a vontade de namorar não havia desaparecido. Ligou para um peguete e convidou o rapaz para visitar seu quarto. Mais tarde chegou em sua casa o Luiz Fernando, rapaz bonito e educado. Ela já o recebeu com as luzes apagadas. Em sua ingenuidade o rapaz passou a noite toda com a criatura e nem notou. Achou que ela vestia uma roupa fofa de algum tecido felpudo. No outro dia de manhã com os primeiros raios de sol ela acordou, entrou no banheiro e de lá dispensou o amante. Ele saiu sem entender nada.
A CRISTA
A vida tinha modificado, agora ela só comia milho, verduras e alguns insetos que ciscava no quintal. Estava com a plumagem mais desenvolvida e as mãos começaram a desaparecer, estava ganhando asas. Essas asas até seriam úteis nos tempos que ela era arremessada dos palcos. A notícia e os boatos correram toda cidade. As pessoas falavam que por um trabalho de macumba se deu o resultado. A menina mais galinha da cidade estava finalmente se transformando em uma galinha verdadeira para a alegria e satisfação das inimigas. Pura especulação. Até então ninguém tinha certeza que ave era aquela. Ela estava estranha, sem postura para andar e as asas recém aparecidas ela não sabia onde deixar repousar, andava batendo como braços e isso despenteava as penas.
Alguns dias passaram e no alto da cabeça cresceu uma crista, foram quinze dias angustiantes até a protuberância parar de crescer e criar a forma definitiva. Embaixo do bico cresceu também alguns tecidos vermelhos. Ovos naquela casa não entravam mais, todas as vezes que a mãe comprava, a filha levava-os para a cama e começava a chocar. Se fritassem um ovo era uma gritaria e uma choradeira de dar dó. Certo dia a pobre criatura estava no gramado ciscando e sua fiel inimiga passou na rua e gritou pela grade. “vejam, aqui é a vila sésamo? Ou será a galinha pintadinha? Deve ser um avestruz! Não, uma ema!” A ave correu para casa.
PÉS DE GALINHA
Os pés estavam sofrendo uma transformação. Os dedos alongaram, tomaram outras posições e a pele enrugou endurecida e amarelada. As unhas afinaram e curvaram. Eram verdadeiros pés de galinha. Galinha? Desse tamanho? Uma galinha de um metro e sessenta com mais de setenta quilos? Como pode? Logo o caso virou notícia e objeto de estudo. A menina foi levada para uma universidade na capital de São Paulo e lá permaneceu observada por trinta dias. Fizeram testes, exames e ressonâncias. Tratava-se de algo nunca visto. O estômago havia se transformado em moela, o anus fundiu com a vagina se transformando em cloaca. Em nada a ave lembrava uma moça. Era agora uma galinha quase completa. Uma gigante galinha branca. Trata-se de uma galinha de granja, explicou o cientista ao jornal das dez. Da espécie Gallus gallus domesticus. Como se deu a transformação e o motivo ainda é uma incógnita. Não podemos afirmar se foi contaminação biológica, cruzamento de espécies ou se trata de um desvio comportamental, se for psicológico, a menina pode ter acreditado ser uma galinha e sua natureza pode ter obedecido seu cérebro. Ainda vamos fazer estudos mais aprofundados sobre o caso e divulgaremos qualquer novidade.
Quando voltou para casa ninguém mais reconhecia, os olhos não eram dela. A mãe gritou, pois o pouco que restava da filha havia desaparecido. O pai retirou a cama do quarto e construiu um enorme ninho com madeira e palha. Improvisaram um bebedouro com uma garrafa de água de vinte litros onde a menina bebia e colocava o bico pra cima. O comedouro foi instalado e ali começaram a colocar ração. Os cientistas acreditavam que a dieta precisava ser diversificada com verduras, frutas, grãos e complementada com ração nutritiva. A dúvida era grande na hora de comprar, o pai não sabia se comprava de engorda ou de postura. Sem saber, mandava misturar as duas. A galinha gigante era quase um avestruz e causava curiosidade. Atraiu tantas pessoas para a porta da casa que a família começou a cobrar dois reais para brasileiros e um dólar para estrangeiros. A fila era constante para ver o que foi tratado pelos jornais sensacionalistas como “aberração do século XXI”.
OVOS
Um mês após o “emplumamento” completo eis que se deu o inesperado, se é que algo ainda podia ser inesperado, pela manhã a galinha cantou, cantou alto e botou um enorme ovo. Não tão grande quanto um de avestruz, mas dava para comparar o tamanho ao de um abacate grande. A mãe da galinha, evangélica e muito inconformada não sabia se tratava o ovo como um possível neto ou como um potencial omelete. E agora? Vamos deixar nossa filha chocar nossos netos? Perguntou o pai aflito. Vieram os cientistas e constataram que todos os dias ela botaria um ovo. Fizeram testes no primeiro e afirmaram, havia sido fecundado e se tornaria um pinto. Mas como? Perguntou a mãe enfurecida. Acontece que as galinhas têm uma característica peculiar, elas guardam espermatozoides em um compartimento e os ovos são fecundados por dias... Os três primeiros ovos foram levados para estudos e para serem chocados em chocadeira na universidade. Dez ovos foram colocados para a própria galinha chocar. Vinte e um dia depois o primeiro ovo eclodiu, era um bebê. Normal! Não tinha bico, nem penas, muito menos cara de pintinho, e logo foram nascendo os outros nove, ao todo nasceram três brancos, dois negros, quatro morenos e um com traços orientais. Os cientistas depois explicaram ao pai tudo sobre o fenômeno. E agora? Dez crianças para alimentar, cuidar, vestir e educar. E os outros ovos? O que fazer? Ela voltou a botar após o período de choca e já somavam vinte ovos! A igreja fez campanha para que nenhum ovo fosse comido ou descartado. Uma fila de mulheres e casais se formou para adoção e com isso o padre se responsabilizou. Compraram uma chocadeira e no salão paroquial os ovos foram chocados, trinta de cada vez. Ao todo ela botou 128 ovos e parou. Não botou mais.
A GALINHA
A curiosidade do povo foi aumentando, veio um apresentador de TV e construiu um grande galinheiro moderno com ninho acolchoado e belos comedouros. A prefeitura ergueu um monumento para sua mais famosa moradora. Mandou fazer uma enorme galinha de concreto de dez metros de altura na praça principal rodeada de ovos e circulada por várias crianças de bronze de mãos dadas formando uma ciranda. Licinha vivia em seu mundo de galinha e nada percebia, nada falava e muito menos agradecia. Algumas vezes tentaram socializá-la colocando outras galinhas e galos, mas ela batia em todos e colocava para correr. Só se deixava tocar quando dormia. Era uma galinha boa, nunca atacou nenhum visitante que tentava se aproximar curioso e fotografar. Ela fugia e jamais avançava. Aos poucos seus olhos foram perdendo o brilho dentro de seu mundo silencioso de galinha. Era triste demais ser um animal diferente em um mundo de pessoas “iguais”. Aos poucos ela não queria mais se deixar ver e foi ficando reclusa. Nem funk queria ouvir. Os pais viam sua filha definhar e não sabiam o que fazer.
Faltavam alguns dias para completar um ano da transformação, a galinha amanheceu sem penas. Estaria morrendo? Vieram os cientistas. Nada souberam dizer. Três dias depois o bico amoleceu, a crista sumiu, e dia após dia a galinha voltava a ser uma pessoa novamente. Os cabelos começaram a nascer e os olhos voltaram a ser humanos. Voltou a ser uma garota normal e levou três dias para falar. E quando falou, não sabia o que dizer e nem o que fazer. Pediu para ficar sozinha em seu quarto e lá se trancou por dois dias. Chamou o pai e a mãe, conversaram e depois o pai trouxe a notícia de que ele seria seu empresário. Negociou entrevistas, apresentações e a gravação do primeiro single “Funk da Galinha”. Que originou um CD, shows e apresentações por todo Brasil. Ela se apresentava com longos casacos de penas brancas que retirava sempre que terminava a primeira música e ficava com um short curto amarelo e um sutiã laranja. As dançarinas usavam bonés com abas em formato de bicos e revestidos de penas coloridas. Era o verdadeiro show no galinheiro. O ponto alto era o momento do voo onde ela era arremessada com um grande golpe de coxa dado por um segurança. Os presentes gritavam e dançavam diante de tamanho talento. “Inha i inha é o funk da galinha! Ão ã ão to botando um ovão!” E ovos eram arremessados por toda parte. Um delírio coletivo no final do show acontecia quando milhares de penas caiam do teto e a cantora novamente vestia seu casaco, as dançarinas viravam de costas para a plateia e disparavam ovos de plástico em um exercício que requeria prática, técnica e domínio do corpo. Uma loucura geral.
Os dez filhos chocados foram criados pelos avós e a vida prosseguiu sem nenhuma anormalidade. O caso do “emplumamento” atraiu turistas e o comércio se favoreceu da história, surgiu o shopping temático “Casa da Galinha Branca”, as lojas oficiais de produtos com a marca da “Galinha”, o “Hotel Galinheiro”, a “Pousada do Poleiro” e o “Bar das Galináceas”. O maior legado de toda a metamorfose foi o nascimento de um mito, uma artista que aos poucos conquistou o coração do povo, as cabeças cantantes e os corpos dançantes. Surgiu uma grande revelação da música popular. Antes de galinha ela era uma menina ousada que sempre respondia aos jornalistas: - “Galinha? Sempre fui, nunca vou deixar de ser.”