O Pássaro

Essa é a primeira vez que eu conto isso pra alguém. Na verdade, eu planejava nunca ter que contar, mas acho que pode ajudar alguém. E mesmo que não ajude... bem, espero que te impressione:

Era um dia normal no subúrbio. E com “dia normal” eu quero dizer “dia chato”. Então eu tive que arrumar alguma coisa para ocupar o tempo. Fui mexer no jardim. Era minha obra-prima. Tudo o que eu havia cultivado nos últimos anos. Perfeito! E foi no meio da minha autoadmiração que eu vi o meu lindo jardim ser destruído... por um pássaro. Um maldito pássaro verde que estava liquidando minhas orquídeas. Eu rapidamente fui expulsá-lo e ele não relutou, voou para a mangueira que havia ali em casa.

Revoltada, eu me pus a arrumar a bagunça que aquele bem-te-vi havia feito. Mas, de repente, eu percebi que ele havia começado a cantar. Mas não era o mesmo “bem te vi” de sempre. Era uma canção horrível... uma canção sobre o que eu havia me tornado. Não tinha nenhum palavrão e nem falava sobre nenhuma nojeira, mas era a música mais horrorosa que eu já tinha escutado.

O pássaro continuou cantando enquanto eu, assustada, tentava pensar numa solução para aquele fiasco. E ele começou a cantar tão alto que os vizinhos começaram a ouvir e estranhar. Foi então que eu resolvi me aproximar calmamente dele e convidá-lo a entrar. Ele se calou por um momento e me encarou. Em seguida, desceu da árvore em silêncio e saltitou em direção ao interior da casa. Eu o segui e fiz questão de fechar todas as portas e janelas uma vez que estávamos lá.

Em silêncio, ele me encarou com aqueles pequenos olhos negros e eu senti toda a culpa do mundo cair sobre mim e disse:

- Olha, eu sei que errei, que eu deveria ter sido melhor, mas em algum momento eu me esqueci. Eu peço que você, por favor, pare de cantar essas coisas terríveis sobre mim.

Então, ele cantou mais uma vez. Cantou sobre os projetos que eu tinha de ajudar as pessoas. Projetos esse que ficaram em segundo plano enquanto eu estava na faculdade. Cantou sobre a minha vontade de ajudar animais de rua e a vontade, que foi maior, de comprar um carro. A música também falava sobre a minha ambição de doar dinheiro para instituições de caridade que nunca foi realizada, pois eu preferi economizar para o casamento. Com uma voz de tenor, ele cantou sobre o meu sonho de ver o meu país melhor e os sonhos que eu realmente realizei de visitar outros países.

Nesse momento, eu não aguentava mais ouvir todas aquelas verdade tão tristes. Foi aí que me ajoelhei e implorei:

- Por favor, pare com isso! Eu prometo que nunca mais vou fazer isso. Prometo que serei uma pessoa diferente!

Mas ele não teve piedade e continuou a cantarolar. E eu tive que tomar uma atitude. Saltei sobre o pássaro e ele, elegantemente voou até o outro lado da sala. Começamos uma perseguição sem fim com muitos gritos, penas e cabelos. Foi então que eu peguei uma caixa que havia ali perto e prendi a ave nela.

Depois, peguei o bem-te-vi com uma das mãos e ele, ainda cantando não lutou. Eu, já irada, o encarei e disse:

- “Essa é a última música que você vai cantar!”

Ele, em silêncio, me poupou do serviço e virou a pequena cabeça de lado e morreu.

Aliviada, fiquei o dia inteiro deitada no sofá refletindo sobre aquilo. O pássaro, eu enterrei durante o anoitecer no meu quintal, dentro da caixa de papelão que havia me ajudado a capturá-lo. Depois tomei banho e fui me deitar. Tinha que descansar para o dia tedioso, como todos os outros, que teria na manhã seguinte.

Passei uma noite de pesadelos, sonhando com aquela música infernal e de manhã, durante um minuto, achei que aquilo havia acabado. Mas aí eu percebi que a música estava tocando novamente. Falando de mim novamente. Sobre meus erros. Sobre minhas falhas.

Eu me desesperei e levantei num pulo da cama e comecei a gritar. Bem, eu tentei gritar. Só tentei, pois não consegui. Achei que ainda estava sonhando, mas parecia tudo tão real. Foi então que fui correndo para o quintal ver se o pássaro, de alguma maneira, havia ressuscitado. Quando cheguei lá quase desmaiei. Não havia pássaro e muito menos túmulo. A pequena cova que eu havia cavado estava vazia.

Então, eu - quase sem conseguir ouvir meus próprios pensamentos por causa do volume da canção – resolvi seguir o som, que estava vindo do interior da casa. Fui andando em direção ao banheiro, de onde eu achava que estava vindo o som. Revistei o cesto de roupa, o vaso e até a lixeira em busca do pássaro. Mas ele não estava lá.

Quase desistindo, eu me peguei olhando o meu reflexo no espelho. E percebi o pior que poderia ter acontecido. A música estava saindo da minha boca.

Pasma, eu tentei bloquear o som com minhas mãos... sem sucesso. Mas eu percebi que o volume da música estava diminuindo e fiquei me encarando até o volume diminuir tanto que a música parou.

Depois daquele dia eu nunca mais fui a mesma pessoa. Não vou dizer que virei a Madre Teresa da Calcutá ou algo parecido, mas eu me tornei um ser humano melhor. Claro, ainda há muito a melhorar, nós estamos sempre buscando a perfeição.

Poderia dizer que faço isso porque tenho medo do pássaro voltar a me assombrar, mas algo me diz que ele não costuma visitar as pessoas duas vezes.

Apesar de todo o sufoco que passei naquele dia, eu agradeço ao pássaro por ter aberto os meus olhos e me transformar na pessoa que eu queria ser quando era criança.

Se você não acredita em pássaros mágicos, ou superação, eu diria para tomar cuidado, pois um dia essa música vai tocar pra você. Ela toca pra todo mundo. Mas alguns escolhem não escutar, enquanto outros preferem escrever o final dela.

Rosa.

OBS: Texto inspirado na música “Bird Song” da banda “Florence and the Machine”