Pena

Lá estava ele deitado. Em um movimento sutil, ainda sem acreditar, eu olhei para a janela e ela estava aberta. Sem entender corri os olhos para ele, continuava deitado, imóvel, inerte e parado.

Eu estava acabando de acordar, pensava ter dormido uma noite tranquila, mórbida, porém lá fora alguém vivia intensamente. Levantei e caminhei em sua direção. Meus passos eram leves e soltos, de forma que ele não pudesse acordar, mas eu mal acreditava que isso poderia acontecer. Tocando-o senti seu corpo, senti sua respiração fraca e tênue. Estava à beira da morte.

Suas asas sobre o corpo me remetiam à aflição que devia ter vivido lá fora, suas penas molhadas me fizeram perceber a garoa fina que o céu despejava naquela manhã fria de sábado. Eu nem notará que os móveis estavam molhados pela forte chuva da madrugada, ele me tirara à atenção de tudo. Tanto foi meu desencontro de pensamentos que não pude ouvir os passos de alguém que subia as escadas até meu quarto, quando de repente a porta abriu:

- O que houve?

O susto me deixou sem palavras.

- Ponha-o numa gaiola. Se ainda estiver vivo.

A frieza daquelas palavras era muito mais intensa de que seu pobre cadáver, que já descansava em minhas mãos. O barulho da porta se fechando aliviou meu coração, dando espaço aos pensamentos e ações que fariam com que ele sobrevivesse os dias seguintes.

Não posso dizer que a gaiola era linda e muito menos confortável, mas tudo que pude fazer, eu fiz. Juntei espuma para que lhe fizer uma cama, dei o meu coração para que o dele pudesse bater novamente, engarrafei minha paz e dei-lhe para beber. Esforcei-me para que ele me desse de volta o suspiro da vida.

Ele se tornou meu amigo, meu irmão, ele se tornou meu. Tinha vergonha de tê-lo ali, tinha vergonha de mantê-lo sobre minha custódia, mas alguém poderia machucá-lo, ninguém saberia tratá-lo tão bem como eu. Ele era meu amável prisioneiro. Só eu lhe daria a dose certa de coração, só eu sabia por quanto tempo ministrar a paz engarrafada e de tempo em tempo lhe dar um pouco de minha vida.

Porém o tempo passou e já não tinha mais coração para lhe dar, pois cada vez mais a morte se aproximava dele. Minha paz se foi junto a ele, junto ao choro que rompeu de meu peito. Só com memórias fiquei.

Em fúnebres passos fui à janela e abria-a, pude sentir o Sol entrar. Tomei o corpo gélido em minhas mãos e fui apoiá-lo sob a janela. Chorei. Sem medo eu chorei!

O sol estava tostando o que de fim me sobrou, mas o destino me pregava uma peça. De repente ele pulou da janela e voou. O susto foi tão grande que soltei um grito ou um riso de alegria.

Ele voou cada vez mais alto e se foi. Minhas lágrimas que antes cessaram, voltavam com a mesma intensidade, porém com propósitos diferentes. Ele estava indo sem nem me dizer adeus! Ingrato e eu injustiçado. Que amor? Do que adiantou se dei-lhe minha vida e o pouco de retribuição que esperei nada recebi. E lá se foi ele, pude ainda vê-lo esticando suas pernas, alisando seu cabelo cacheado, perdendo-se entre as nuvens indo à busca do paraíso, sua casa.

Sentei e chorei mais, muito mais. Chorei até perceber que algo estava grudado em minha mão esquerda. Era uma pena. Uma pena branca na mão esquerda. Respirei fundo e aliviado. Ele não me deixara, ele não fora embora, ele não partiu, ele estava ali comigo naquela hora, mas decodificado em outra língua, de outra forma, nas lembranças.

Eu estava enfermo de ciúmes, de cobiça e egoísmo, mas com muito carinho ele me medicou com o melhor de todos os remédios: a liberdade.

Adriel de Carvalho
Enviado por Adriel de Carvalho em 19/01/2014
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