Preciosismo

Percebi que o conjunto está desequilibrado um pouco para a esquerda. Mais uma vez. Sequer preciso esperar uma segunda opinião, só levo em consideração a minha própria. Inicio paciente o desmonte, pois sei que o esforço será recompensado. Trago todo o material para fora, peça a peça, é só isso que consigo carregar por vez, e o amontoo num canto. Tudo só faz sentido se for ordenado lá dentro. Ainda assim, permito-me um mínimo de organização prévia separando pedras, galhos e fibras em espaços diversos, talvez isso me poupe algum tempo. Dessa vez eu demorei muito para perceber que não daria certo. Costumo intuir já nos primeiros arranjos que fiz a escolha errada. Seja falta de simetria, desequilíbrio nas cores ou escolha das texturas, não posso deixar escapar nenhum detalhe. Preciso de tudo perfeito ou o propósito estará arruinado.

Essa não é a primeira vez que me obrigo a reiniciar o trabalho. Nem a segunda. Conheço a fundo os riscos envolvidos na falta de comprometimento por minha parte. Quando pequeno presenciei vários colegas surpreendidos enquanto se encontravam em seus próprios lares, denunciados pela falta de zelo de seus pais. Isso não acontecerá comigo, ou com os meus.

Vazio o espaço. Desfeito o erro, atiro-me de novo à tarefa com ardor. Mais uma vez faço repousar as pequenas pedras, uma a uma, de acordo com o mapa que tracei em minha mente à exaustão. Roliças algumas, brancas, ásperas e rajadas, todas elas entremeadas de fibras, penas e outros materiais que sirvam como vedação e ornamento. Tudo isso para que eu passe despercebido enquanto usufruo de meus momentos mais vulneráveis.

Os dias se escondem por entre as frestas ainda abertas de meu abrigo e, quando de uma indecisão minha sobre o rumo a tomar quanto à largura da entrada, voltam de repente para me lembrar que essa tarefa possui, além de critérios rigorosos de aprovação, prazo certo para acabar. Até esse momento pude me entregar ao luxo de refazer o trabalho inúmeras vezes. Em retrospecto, muitas das minhas tentativas frustradas de construir o abrigo foram abortadas realmente cedo. O temor de que concessões fossem levar a um encadeamento desastroso me paralisava, e por conta dele me deixei levar pelo preciosismo. A experiência adquirida, entretanto, me tranquiliza. Só hoje entendo que uma pequena concessão logo no início não traria maiores consequências devido ao tempo de que eu disporia para finalizar o projeto com esmero redobrado.

Enfim, é chegado o tempo. Arrasto-me para dentro de minha obra e contemplo embevecido os padrões que fui capaz de criar. Eles com certeza atrairão a atenção de uma companheira. Por conta deles conseguirei trazer comida aos nossos filhotes, tudo em segurança. Mas ainda é cedo para isso. Sei que antes o teste maior de minha obra é garantir minha própria segurança. O brilho do luar marca presença somente pela entrada do abrigo, tudo como planejado. Ouço ao longe os ruídos de meus predadores, interrompidos de quando em quando. Evito pensar na razão desses intervalos, embora saiba exatamente qual a sua natureza. Suspiro, acredito que é o velho hábito de encontrar defeitos onde eles não existem.