PERDIDO EM CURITIBA

CONTO No. 01

PERDIDO EM CURITIBA

Um calor toma lentamente conta de meus ossos congelados. a noite foi fria e dolorida. Lembro-me que antes de adormecer cachorros vieram virar o lixo da esquina, brigaram por causa de algo e foram embora. Minha cabeça está latejando, meus ossos doem, o corpo calejado de maus tratos está ficando velho e já não suporta a calçado dura. O corpo reclama, criou vida própria.

Sento-me e me reencosto na parede da lanchonete, pessoas apressadas passam por mim sem me notar, vão preocupadas com suas próprias dores, são tão iguais em seu caminhar, em seus toques toques. Mas há diferenças. Observo-as atentamente, algumas falam ao telefone, umas de maneira irritadas, outras de maneira amorosa. Algumas pessoas combinam com a paisagem cinzenta do centro de Curitiba, parecem locomotivas com seus chaminés, vestem escuro ou roupas surradas e fedem a cigarro. Outras (são poucas) parecem anjos, possuem cheiro gostoso de perfume, têm cheiro de pele limpa. E os cheiros se misturam ao cheiro de pastel quentinho, de café, de pão francês. Minhas barriga ronca, preciso comer. Ensaio meu olhar mais suplicante, mais faminto o direciono à multidão.

Dentre muitos, uma senhora bem vestida, retira de um pacote de papel pardo um pão, que pelo cheiro estava fresquinho, e com certo receio atira-o para mim. Eu o devoro em três mordidas, estou faminto. Sinto uma coceirinha insistente atrás do pescoço, deve ser sarna, estou cheirando muito mal.

Ali do meu canto em meio a um trapo, deito-me na busca de algum conforto. Alguém me cutuca as pernas com um cabo de vassoura.

“O rapaz vá procurar outro canto, rapidinho!”

A lanchonete vai abrir, não há lugar para um ser como eu. É hora de começar minhas andanças.

Minhas pernas estão dormentes, espreguiço-me para ver se resolve. Coço-me. São tantos lugares que me coçam e dou início ao meu dia sem propósito.

Caminho olhando para o chão, com a desculpa de que eu possa encontrar algo que sirva, mas na verdade não tenho coragem de levantar meus olhos, tenho medo da rejeição, embora ela seja minha irmã. Sou um ser machucado, não quero que me façam sangrar.

De cabeça baixa, posso passar por entre as pessoas, elas abrem um espaço, elas também têm medo de minha reação, enojam-se do meu cheiro (estou me iludindo, acho que não me veem e o meu cheiro se confunde com tantos outros).

Eis que ouço:

- Ei, você, vem aqui!

Olho em direção ao chamado e desconfiado, paro.

- Você, vem cá!

Era um homem de camisa estampada, bem retrô, bem menor que a barriga que cobria, calça social e sapato surrado. A barba grisalha cobria o contorno dos lábios e em sua mão havia metade de uma coxinha.

- Vem cá rapaz, por que o medo?

Exitei um pouco, mas fui chegando devagar, deu-me a metade da coxinha e resmungou.

- Muita engraxada! E seguiu seu caminho.

As pessoas são tão boas comigo, sempre tenho o que comer. E fato que não querem conversa comigo. A ternura que eu sonho em ver no olhar é substituída por medo, nojo ou qualquer coisa parecida com isso, mas minha barriga vazia sempre recebe um afago.

Entro no Passeio Público, bebo um pouco de água. Sento-me à sombra de uma árvore e tenho um momento de paz. Sinto-me seguro aqui apesar de toda a companhia que me cerca. Mulheres enrugadas, com beiços lambuzados de batom vermelho, cheirando perfume forte desfilam de um lado para outro, sabem que são observadas por olhos fundos dos malandros. Sorrio por dentro, o bicho homem e seus instintos, ele os segue selvagem, sem amor, sem consideração. Necessidade saciada, dinheiro sujo na mão, nem te ligo.

É engraçado isso tudo. Fico horas ali a observar, passam menores fedendo a tiner, olhos esbugalhados rubros. Passam casais com crianças ansiosas para verem os bichos. E eu ali feito tapete, camuflado entre a árvore e a grama, ninguém me vê.

Começo a ficar enebriado pelo movimento, uma dormência toma conta do meu corpo magro, a vida de rua não tem nada de bom, é entendiante como qualquer outra vida. É triste e tem sabor amargo, é mais solitária que qualquer ilha do mundo.

Minhas pálpebras começam a se fechar, consigo ouvir pessoas que de longe vêm se aproximando. De olhos fechados percebo que elas param perto de mim. Sinto a respiração do ser, seu hálito de balas de morango. Afagam minha cabeça.

- Coitado, tão sozinho.

Alguém finalmente é terno comigo, não quero abrir meus olhos, tenho medo de estar sonhando.- Vou te levar para casa.

Meu Deus, vou conseguir uma cama quentinha, será meu grande dia???

Duas pequenas mãos envolvem meu corpo magro e me levantam do chão, sinto o calor do ser que me afaga em seu colo e que me carrega para um destino talvez, mais aconchegante.

No caminho enxergo seres maltrapilhos, homens e mulheres rotos, famintos cheirando a urina. Sinto pena desses seres. Eles sim, levam uma vida de cão e ninguém vai levá-los para casa.

(Jaqueline de Andrade Borges)

Jaqueline de Andrade Borges
Enviado por marcio j de lima em 04/08/2013
Código do texto: T4419110
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