Laranja com Acerola e Morango
Era uma vez um lugar bem distante (lá para os lados de Iboruna, às esquerdas), cheio de córregos abrandados, vales encantados e uma floresta sussurrante, usada para piqueniques e trocas de confidências. Seus habitantes dominavam a ciência de cozer rosquinhas de pinga e as linguagens retroflexas. Sim queria dizer não e não significava talvez. Lá também existiam dois irmãos muito unidos e completos entre si. Cada um governava um reino diferente. Um chamava-se Eu Lírico e era rei das Planícies da Poesia. Repleto de atratividades, seus pensamentos eram admirados e quase todos paravam para ouvir suas declamações (suas palavras soavam no ar como poucas soam: uma fotografia, descrevendo o óbvio, que de tão óbvio ninguém percebia). Era lindo da forma mais simples e sua essência a maneira mais apurada de louvar a vida. Buscava entender a alma humana, os desejos daqueles que governava e seus sofrimentos, angústias e principalmente decepções. Funcionava sem parar, todavia seus estalos melhores viam-se em dias chuvosos, ao lado das deidades e à noite, sobre o travesseiro.
O outro irmão, senhor das Ilhas da Realidade, era o Eu de Facto, e vivia sobre seu senso de justiça e atitude. Era bom amigo, de poucas palavras amorosas, decerto, mas um ótimo ouvidor, sempre disposto a ceder o ombro. Seu reino era menos próspero e fértil que o de seu irmão, mesmo assim isso não impedia que fosse um bom lugar para viver. Sempre encomendava felicidade (e outras especiarias) das Planícies da Poesia – gostava de estar cercado das melhores alegrias. Tinha medo de inflação e seu passatempo preferido era assistir a documentários ou criar sabores de sucos naturais. Tímido de quase tudo, não sabia como, mas exagerava a fala nas reuniões do Conselho e com os galanteios às nobres da corte – arrependia-se logo em seguida. Não era muito popular entre as princesas, mesmo sendo o poderoso rei. Provavelmente por sua beleza meio desconjuntada, que de tão interior era imperceptível e quase ninguém enxergava.
Um dia os reis conheceram a Musa, da pele alva, macia e dos cabelos com pontas douradas. Ela era aprendiz de feiticeira, nível pós-graduação. Sabia receitas para mudar a cor dos cabelos, adstringir o corpo e encantar os homens. Dona de um livro mágico que detinha boa parte do conhecimento do universo e a deixava viajar por lugares exóticos (repletos de chocolate) sem sair de sua cabana, no Condado do Vintém. Ela tocava nesse livro com os dedos para lá e para cá e coisas aconteciam: capturava a natureza das pessoas, contava-lhes histórias para dormir, cantigas bonitas surgiam e homenzinhos lá dentro se mexiam. Quando o atrapalhado Eu de Facto viu a Musa pela primeira vez, foi logo demonstrando sua forma atabalhoada de sentir o fogo da paixão. Percebendo-se de mais um fracasso, ele evocou ajuda do seu irmão nesse mister: conquistar a ninfa e fazê-la sua consorte, condessa das Terras Juntas da Mata Dura.
Eu Lírico escrevia versinhos para a Musa (fingindo ser o irmão), cheio de rimas com seu nome e elogios em profusão. Depois de muita insistência, com inspiração e esforço, conseguiram tocar o coração da donzela. Porém, o interesse da bela recaiu sobre o rei errado. Quem detinha seu coração era a Poesia e não a Realidade. Assim seria uma luta desleal, já que a primeira sempre prosperava sobre a segunda. Eu de Facto culpou seu irmão por isso, declarando guerra contra o Lírico e iniciando a batalha épica fraternal do Exército da Razão contra a Armada da Emoção. Até ontem à noite não havia chegado a um cessar-fogo. Tudo isso por conta da dona dos cabelos com pontas douradas, que terminou sua pós e hoje vive a viajar pelo mundo para vender seu fortificante suco de laranja com acerola e morango e manter seus blogues, um que prega a intervenção da ONU nessa guerra insana e o outro que combate o uso de decotes indecentes: “– causam muita pressão!”.