A Carreira

Em uma estância da fronteira havia um cavalo mouro famoso por ser um grande campeão de carreiras em cancha reta. Era orgulho e mimo do patrão, que já havia faturado muitos prêmios e apostas. Entre os cavalos também era muito respeitado: o mais rápido e o que podia saltar mais longe, o maior e o mais bonito.

Certo dia o mouro resolveu parar de correr. Não por achar que estava ficando velho ou lento, simplesmente porque havia se cansado daquilo. Enfim entendera que a vida era preciosa demais para ficar apenas dando alegrias e riqueza para seu dono. Seu destino não poderia estar resumido apenas a correr e sua vida devia ter uma valia maior. O dono, não entendendo o que acontecera com seu melhor cavalo, soltou-o no campo, pensando que este adoecera de tanto se esforçar em nas corridas. E assim, na paz do campo, o cavalo conheceu a verdadeira liberdade.

O fazendeiro, não estando contente, resolveu treinar um novo potro: escolheu um jovem zaino, com um porte muito parecido com aquele que havia lhe dado tanto orgulho e lucro: forte e sempre disposto. E teve sucesso. O potro parecia tão bom quanto seu antecessor, talvez melhor. Ganhava uma carreira atrás da outra. Contudo, o fato de ser parecido com o velho mouro, em vez de orgulho, já estava chateando o jovem zaino. Não paravam de compará-los. Estava cansado de ouvir os outros dizerem “Parece ser tão bom quanto o velho mouro aposentado!”. O zaino estava indignado. “Que história é esta de tão bom quanto? Eu sei que sou melhor!” E não restou alternativa senão chamar o mouro para uma prosa.

-Mouro velho, quero provar para este povo que eu sou o melhor cavalo daqui. Desafio-te para uma carreira até o Cerro do Coqueiro-Torto. Quem chegar lá primeiro vence.

O veterano corredor, pastando calmamente à sombra de um tarumã, sacode a cabeça, tira a crina da frente dos olhos e com muita calma diz:

-Escuta, meu rapaz, meu tempo de correr já terminou. Foi fase na minha vida, onde consegui fama e enchi a guaiaca do meu dono. Cansei disto tudo.

-Como, cansado de fama, de prêmios? Por acaso não gostavas de ter o pelo escovado, de ter cocheira especial, pasto de melhor qualidade? De namorar as éguas mais bonitas destes campos? Isto me cheira a desculpa, o que tu tens eu sei, é medo!

Mesmo com a raiva aparente do jovem cavalo, o mouro velho manteve-se calmo. Ele entendia que aquilo tudo não passava de orgulho. Então deu meia volta e foi descendo em direção à sanga mansamente, dizendo:

-Medo? Não... simplesmente não quero mais correr. Se tu quiseres que eu diga a todos que é melhor, não tem problema, pra mim isso não tem mais importância.

O cavalo mais novo não se dá por vencido, sabe qual a única maneira de provar que realmente é melhor. Então resolve provocá-lo de todas as maneiras para forçá-lo a correr. Faz intrigas e fofocas, diz a todos que o mouro velho não tem mais o mesmo vigor, que se recusou a correr por medo de não conseguir nem chegar até o final. O mouro, mesmo com toda paciência que a vida lhe ensinara a ter, começou a se chatear com aquilo. De tanto ouvir a falação dos outros animais da fazenda, resolveu aceitar o desafio. Afinal, seria só mais uma corrida, a última, da despedida. O resultado nem seria o mais importante, apenas a oportunidade de fazer o jovem cavalo ter paz em seu coração.

Foi o anúncio mais esperado do ano. Toda a bicharada estava lá. Um capincho velho seria o juiz de linha e um carancho, famoso por ser ligeiro, seria o juiz que acompanharia todo o percurso. Sairiam da taipa do pequeno açude atrás do potreiro e quem chegasse primeiro ao Coqueiro-Torto seria o campeão.

O zaino parecia possuído, provocando todo o tempo o experiente mouro:

-Te prepara para comer poeira, velho...

E o mouro, que parecia impassível esperando o sinal de largada, começou a sentir algo que a tempos não sentia. Poderia vencer o zaino, pois se a juventude não estava mais ao seu lado, a experiência faria a diferença. Conhecia os atalhos do percurso, onde os arroios davam vau, onde o chão era mais firme. Havia pensado muito na carreira, em deixar o jovem vencer tranquilamente, mas o coração disparou e o sangue começou a ferver. O velho ímpeto guerreiro reacendeu a chama de seus olhos. Ao mirá-los agora, pela primeira vez em sua vida, o jovem zaino sentiu medo.

Ao sinal, os dois saíram.

Era incrível, mas os dois pareciam correr na mesma velocidade, cabeça com cabeça, cada vez mais rápidos. Logo que passaram a primeira sanga o mouro assume a dianteira, deixando o outro mais de um corpo para trás. Já passavam de uma légua quando, de repente, o mouro começa a diminuir o passo. O zaino estranha, mas mantém o ritmo cada vez mais forte nas patas. Quando já abre uma boa distancia do mouro começa a dar a carreira por vencida. Neste momento, o velho cavalo começa a relinchar:

-Para, zaino! Para!!!

O zaino olha para trás e, sem parar de correr grita:

-Tu pensas que me enganas, velho de uma figa? Falei que tu não aguentavas até o final!

Quando volta a cabeça para frente, avista um grande perau, aberto pela chuva. Um precipício enorme, onde mal se avistava o fundo. Sem conseguir parar, atira-se ao chão, mas não adianta, cai no perau e fica preso pelas patas, pendurado na borda do barranco, seguro apenas pela raiz de uma corticeira, que começava a ceder.

O mouro, vendo a situação do outro cavalo, não pensou duas vezes, deu a volta e entrou no perau pela frente, onde era possível chegar por baixo até onde o jovem zaino estava.

Passaram-se alguns segundos e a raiz que prendia as patas do potro cedeu. Um som abafado é ouvido, seguido de um ronco horrível saído da boca do cavalo mais velho que se colocou abaixo do jovem, amortecendo sua queda. O mouro cai e não consegue mais levantar.

O zaino, desesperado, começa a trotar em volta do velho mestre e a berrar:

-Por que tu ficaste aí em baixo? Eu merecia ter caído e morrido. Fui eu quem te provocou desde o início. Foi meu orgulho, minha inveja!

O mouro, em seus últimos suspiros ainda teve tempo de dizer:

-Não, meu jovem. Quando eu corria, sabia que tinha que buscar uma razão maior do que simplesmente ser o melhor e o mais rápido. Hoje tu me ajudaste a descobrir a razão da minha existência. Eu sempre soube que tinha este perau, mas queria saber se teu orgulho era grande o suficiente para fechar teus olhos. A lição que tu aprendeste hoje, tu vais levar para toda vida, e repassar para os que vierem depois de ti.

-Mas não é justo!!!- diz o jovem cavalo.

-Agora sei qual a razão do meu viver: ensinei-te o que é humildade. Tenho certeza que tu vais lembrar sempre disto.

Uma baba vermelha começa a escorrer-lhe pelo canto da boca. Então o mouro velho fecha os olhos. Vai a galope para o céu dos cavalos.

O jovem zaino aprendeu sua lição e, apesar de continuar correndo, nunca mais deixou de respeitar a história daqueles que pararam de correr. Em vez de tentar provar que é melhor, procura-os na sombra dos capões de mato, onde sempre pergunta coisas sobre a vida e sempre aprende um pouco mais sobre ela.

Leandro de Araújo
Enviado por Leandro de Araújo em 19/04/2013
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