Postes, muros e portões
Eu gostaria de poder escrever uma fábula onde, ao invés de animais, os personagens principais fossem coisas, tais como postes, muros, portões, enfim, tendo uma rua que fosse acolhedora do cenário dessa história.
Já pensou, o poste, ainda de madeira, daqueles das antigas, inconformado com a pontualidade e assiduidade britânicas dos totós que iriam minando diariamente a sua base com um xixi nauseabundo? Ele, naturalmente estático, diante daquele gesto canino, depois de algum tempo de sofrimento, diria para o muro ao lado algo do tipo:
- Companheiro, sei o quanto você também é importunado por essas criaturas, portanto vamos nos unir contra essa cachorrada!
O muro, por sua vez, responderia bastante empolgado:
-É isso, aí, companheiro; e precisamos logo de uma ação concreta!
O poste interpretaria o brilho do olhar daquele muro novo, representado pela primeira demão de tinta a óleo, embora maltratado pelas intempéries convencionais e de um inimigo comum, os cães - e deduziria estar diante de um legítimo enfant terrible.
-Mas o que seria exatamente essa ação concreta - perguntaria entre surpreso e curioso.
- Elementar: vamos emparedá-lo, aliás, todos que aparecerem, emparedá-los-emos! - diria o muro, ensaiando um tom grave e retórico.
O poste, subitamente reticente, poderia dizer:
-Mas... mas esse é um gesto legal, companheiro?!... acho que assim feriremos algum princípio constitucional...
O muro, debochado, diria:
-Hááá...um poste legalista, um poste legalista!
Enquanto os dois estivessem naquele embate fabuloso, poderíamos imaginar que do outro lado da rua um grande portão de ferro de duas bandas fosse aberto lentamente para dar passagem a um aeroilis, aquele carrão da década de 60 e... - não é possível - alguém comentaria depois - o neto do desembargador, de apenas nove anos, pegou o carro do avô, atravessou a rua em disparada e acabou batendo forte contra o poste. Na confusão, diria a banda direita do portão, penalizada com o acontecimento:
- Coitado do menino!
Mas a banda esquerda, bastante atenta e tranquila:
- Coitado nada, aquilo lá é chapa de fubica, nem o menino nem o carro tiveram sequer um arranhão.
- Mas então o estrago... - perguntaria a banda da direita.
- Ah! - um poste velho de madeira que a prefeitura provavelmente irá substituir por um de concreto - responderia a banda esquerda.
- E quanto ao muro - insistiria a banda da direita.
- Que muro que nada - diria a banda da esquerda - o poste tombou sobre um terreno baldio.
Mas...não?!
Claro que não! - diria a banda da esquerda já colérica - para de pensar como poste, você é banda de portão! Por acaso você não percebeu a marca forte do futuro do pretérito sinalizando uma possível incerteza desses acontecimentos, fofinha?!