Era uma vez
Era uma vez um mundo. Redondo como uma bola. Vazio e sem nenhuma cor. Suspenso num espaço negro e suave com pontinhos brilhantes à sua volta. Esse mundo girava rapidamente, aparentemente sem nada querer, dando piruetas a todo momento, e circundava lentamente em torno de outra bola.
Esta outra bola era muito maior que aquele mundo, flamejante e com cor indefinida. Dela emanava um calor mortífero, destrutivo, mas o mundo não se preocupava; aquela ginástica de voltas e mais voltas o divertia, e secretamente sua superfície escura foi se transformando em uma linda aquarela. Primeiro o azul, depois o verde, o amarelo, o vermelho, e por fim o mais belo branco.
Um líquido mágico tomou boa parte do mundo, e desse líquido mágico imergiu algo que o mundo jamais imaginara: filhos! Enfim seu incessante movimento em torno de seu enamorado flamejante trouxera o que desejara desde os primórdios de sua existência. E mais, sua irmã mais nova se aproximou mais ao ver a prole, trazendo a cor que faltava. E assim o mundo permaneceu girando e girando, transformando e renovando suas cores, feliz, excitado, agitado, exuberante.
Mas o mundo cansou. Teve tédio. Toda aquela beleza e movimentos deslumbrantes, formas e perfeições já não era o bastante. Os seres a entendiam, tiravam dela o que precisavam e depois devolviam, viviam em movimento como a mãe deles. Mas o mundo queria mais. Queria afinal de contas um filho que pudesse transformar ainda mais seu corpo, usando com carinho toda aquela bagagem de tesouros para evoluir.
O mundo não imaginava, mas não precisou de muitas voltas em torno da bola para que seu pedido fosse realizado dessa vez. O primogênito enfim surgiu, magnífico e iluminado.
Percebendo enfim que conseguira realizar todos os seus desejos, enfim o mundo descansou e pôs-se a observar a brincadeira de seus filhos.
Eram espertos! Incrível como aprenderam rápido a lidar com as formas e ferramentas que levaram tanto tempo para serem criados! Incrível como desenvolveram rapidamente uma inteligência esbelta e inebriante! Destacaram-se de todos os seus outros filhos criando várias línguas complexas, e nomearam tudo, exatamente tudo o que existia!
A Terra se sentia esbelta, sim, com muito orgulho, não se chamava mais mundo. Suas cores não eram apenas mais cores. O azul agora era o oceano, o verde a floresta, os seres animais e vida. Sua irmãzinha agora era a lua e seu eterno enamorado o sol. E seu primogênito, seu preferido, seu amado filho, agora era o ser humano. De tanto amor a Terra nem mais percebia suas longas voltas, somente vislumbrava com carinho e admiração os passos daqueles que reconstruíam tudo.
Eles foram rápidos. O fogo, elemento que a Terra manipulava com muito cuidado, foi rapidamente dominado por eles. Depois vieram mais "descobertas" e ela se deliciava a todo momento, a cada novidade, a cada mudança louca e perfeita em si própria e na história de aventuras que seus queridos filhos escreviam com louvor e empolgação.
Demorou. Demorou muito tempo para que a Terra percebesse e se desse conta de que seus filhos não eram exatamente o que ela pensava. E mesmo depois de perceber ela ainda via além de seus corpos, além das barreiras que construíram em torno de si mesmos, perto fonte que eles chamavam de alma.
De todos os atos ruins praticados inocentemente por seus filhos, o pior deles foi quando eles acharam que sua mãe estava querendo acabar com eles. Ela se magoava constantemente, culpada por que já não conseguia mais controlar de todo os processos que aconteciam em seu corpo. Os filhos mudaram a ordem de muitas coisas, abusaram de substâncias e energias, voltaram-se uns contra os outros e poluíram sua eterna aura tranquila e sonhadora.
Mas ela jamais culparia seus filhos. Era mãe. Mãe sempre fora. Sempre seria mãe. Implorou ajuda ao seu Pai. Pai de seus filhos. Pai de seu eterno enamorado. Pai dos pais. Ao pai que realizara todos os seus desejos e salvaria seus filhos.
E voltou a se concentrar em suas voltas.