A hora de Papai Noel de Natalina
A hora de Papai Noel de Natalina
- Minha filha não vá para beira do rio. Você ouviu o que a radia disse.
- O que mãe, a radia disse?
- Menina, você num lembra não? Nós fumos lá!
- Mãe, você tá ficando velha; eu era muito menina; agora já tenho oito anos.
- Ah, a fia num lembra não! Encontraram, aqui, na beira do Rio Real, o corpo de um desconhecido. O coitado estava todo ferido de bala e os olhos comidos pelas formigas Aqui, nessa região, tem muita formiga mordedora.
- Mas mãe, deixa eu brincar mais pra cá, eu num vou para beira não!
- Então tá certo pode ir. Maria Natalina fazia a segunda série do ensino fundamental na Escola Municipal Padre Lemos. A menina nunca conheceu o pai. Sua mãe era rapariga do cabaré de seu Elifaz; o povo dizia que na casa de Elifaz tinha as melhores putas do mundo.
- Vai pra onde macho?
- Rapaz, vou para casa de Elifaz. Chegou uma tal Margarida que é um filé. O filé de Elifaz era a mãe de Natalina quando tinha 16 anos. Naquela época Campos ficou apaixonada pela mulher deslumbrante que era a moça de origem baiana vinda de Camaçari. Seus olhos verdes claros e seus cabelos loiros naturais faziam com a estética de seu corpo talhado pelos deuses uma mulher muito cobiçada pelos homens de posse. Por muitos anos ela viveu com muita fartura; não lhe faltava nada; Elifaz fazia de tudo para que nada fosse esquecido. Seu quarto tinha ventilador, a cama tinha lençol de seda, e um banheiro com água encanada. Os anos passaram. O sexo ficou mais fácil, e as putas velhas do cabaré de Elifaz foram trocadas por garotas de programa, muitas delas agendadas pela internet. As meninas de classe mais ou menos ou de classe média se esforçam nas academias para agregarem mais valor a seus corpos atléticos e apetitosos. A pobre menina de Camaçari perdeu a clientela, e puta sem clientela, nada tem mais para fazer, exceto catar lixo no lixão que ficava a duzentos metros de seu barraco.
- Rapaz, quem diria que Margarida ia acabar catando lixo?
- É, aqui se faz, aqui se colhe!
Natalina voltou do rio às 12 horas. Almoçou o que tinha: Feijão com ovo e farinha. Margarida se tornara depois do desemprego uma mulher de família. O finado pai de Natalina era evangélico e ensinou a família a temer a Deus e respeitar aos homens e as autoridades. A família era pobre, mas, tinha naquela casa algo muito diferente: Mãe e filha liam os evangelhos; eram pessoas humildes e alegres com o que Deus lhes dera.
- Mãe eu queria quer Deus me desse uma boneca bem bonita daquelas que falam e fazem xixi. Mãe será que se eu pedisse a Jesus ele me daria uma? Margarida sentiu seu coração bater forte e acelerado. Ela tinha muita vontade de fazer a vontade da filha, mas, uma pobre mulher sem salário, o que podia fazer?
- Filha, entregue nas mãos de Deus!
- Sim, mãe, eu vou pedir a Jesus uma boneca tão bonita, mas, tão bonita, mãe, que a boneca vai parecer real!
- Minha filha, Deus existe e ele ouve a prece de um anjinho que nem você. O natal se aproximava. Tobias estava fervendo de gente de todos os lugares. As doze em ponto desce na Rodoviária de Tobias Barreto uma senhora branca, magra, andando com dificuldade. A mulher levava nos braços um embrulho de pano que ora parecia ser algum objeto, ora parecia ser uma criança. A mulher caminhou pela cidade. Seu estomago varava de fome. Pensou consigo: “Vou à casa paroquial, quem sabe alguém me dê o que comer”. Uma senhora baixa e gorda com feições de palestina com nariz de águia a atendeu deixando a porta entreaberta:
- O que é?
- Eu estou com fome.
- Lamento, mas, não temos comida aqui. Vá à secretaria de ação social e preencha o formulário. Lá eles vão te ajudar. A mulher caminhou até a dita secretaria. Uma moça de calça cavada mostrando a calcinha e ás vezes os pelos pubianos a atendeu com um sorriso cheio de material odontológico. O aparelho de setecentos reais ela gostava de exibir.
- Boa tarde!
- Eu estou com fome e a menina não está também, meu leite secou, a bichinha só faz gemer quem nem um cachorrinho.
- Olha, senhora, a gente não pode fazer nada. Você tem, pelos menos, documentos?
- Sim senhora, sou uma cidadã! A mulher tirou do interior de um saco de plástico que antes fora um saco de pão, a sua carteira de identidade.
- Senhora, eu lamento, mas, você é de outro estado, aqui só atendemos pessoas que votam nessa comarca.
- Como?
- A senhora tem que voltar para seu estado e pedir ajuda lá. Aqui é Sergipe, você é da Bahia. A mulher saiu sem rumo, mesmo, sem saber, ela tomou a direção das pedreiras e por aquelas macambiras ficou.
- Mãe, amanhã Deus vai me dar a minha boneca. Disse Natalina.
- Minha filha, você orou com fé?
- Orei mãe, senti que um anjo estava ao meu lado o tempo inteiro.
- Deixa de história Natalina!
- Foi mãe, ele disse que era Gabriel. Margarida não levou muito a sério essa parte. A pobre família tinha uma galinha para assar na noite de natal. Depois do culto, os irmãos iriam sortear alguns presentes para os pobres da igreja. Depois disso cada um iria para sua Ceia de Natal, com sua família. O culto não demorou muito, foi uma noite de muita devoção ao menino Salvador. O sorteio foi realizado; Natalina não ganhou sua boneca. A menina não se conformava e foi reclamando com sua mãe até chegarem a casa delas.
- Mãe, Deus num existe não! Todas as meninas tem uma boneca, e eu filha Dele não tenho. Ele dá aos que não temem a Ele e eu que temo não tenho nada. Dona Margarida foi tentar explicar essa lógica divina, mas, não teve sucesso e o inesperado aconteceu. Natalina teve um acesso de fúria, quebrou uns pratos na cozinha, logo, em seguida se embrenhou pelos matos. Sua mãe pensou que a menina havia ficado por perto, mas, quando o relógio deu dez horas, e nada de Natalina, a mulher, ficou apavorada e chamou o povo.
- Será que ela num foi sequestrada por um maconheiro?
- Sei não, esse povo gosta de menininha deste tamanho para fazer ritual de magia negra.
- Olha, sei não, mas, o povo diz que por aqui aparece um vulto preto de noite. Será o lobisomem? Muitas eram as opiniões, no entanto, nada de Natalina. O povo gritava bem alto: “Natalina”. Nenhuma voz respondia. “Estranho!” Pensou consigo o vigilante Chico – aquele que garante a sua segurança. Enquanto a busca pela moça fica mais dramática em plena noite de Natal, Natalina desce o Rio Real na direção norte. Era um lugar desconhecido, somente os caçadores e pescadores sabiam de sua existência. A lua estava alta naquele Natal. Natalina via quase tudo, ela não sabia de onde vinha sua coragem. Desceu o barranco do rio, e andou pela sua margem sentido o frio da areia em seus pés. O Rio real faz muitas voltas, e nessas voltas existem pedras enormes, árvores que tombam para dentro do rio. Natalina se senta em uma pedra achatada em cima. “Meu Deus, o que fiz foi errado, e agora?” “Minha mãe, vai me bater”. “Mas, sua pessoa não me deu a boneca”. Enquanto a menina se consertava com seu criador, ouve-se no mato o choro de uma criança. “O que?” Perguntou em seu íntimo a menina. O choro se torna mais forte. A menina começa a busca pela fonte do choro. E ele fica mais forte ainda. As margens dos rios são fonte de alimentos para as jararacas, cobras corais cascavéis e outras que povoam esses sertões de Campos. Natalina viu uma moita e pensou ser a lá a fonte do choro. Uma Jaracuçú grande deu-lhe um bote errando o alvo por um milagre divino. A pobre menininha rezou novamente: “Meu Deus me livra de meus inimigos e que eu ache onde está o choro”. Após a prece, Natalina percebe que o vento vinha do sul não do norte, logo, o choro viria do sul trazido pelo vento, contudo, a menina tinha que atravessar o rio. Natalina foi seguindo o choro para a outra banda do rio. Ainda na metade do caminho a menina se depara com alguma coisa boiando. Parecia duro que nem o tronco de uma árvore – era o corpo de uma mulher. O grito da menina chama a atenção da equipe de busca, todos correm na direção do rio.
Natalina acha uma criança recém nascida envolta em panos e com o corpo sendo mordido por formigas. A criança sofria muito. Natalina pegou a criança nos braços e a limpou com a água do Rio Real e lhe tirou as formigas. A equipe de busca formada por populares viram um clarão como se um sinalizador tivesse sido usado.
- Juca, ela está ali!
- É, veja a luz! Mas como ela conseguiu isso?
- O que? Perguntou seu Miguel dentista – “O boca de ouro” – dez reais a extração.
- Um clarão sinalizador!
A SAMU foi chamada e levaram a criança de Natalina. Natalina foi em uma ambulância da Prefeitura até o hospital onde fez exames. Quando sua mãe a encontrou caiu prostrada no chão com as mãos levantadas para o céu: “Meu Deus, muito obrigado por trazer minha filha de volta”. Ao terminar a oração Margarida ouve o choro de uma criança recém nascida na enfermaria ao lado.
- Mãe, fui eu quem achou a criança. Mas ela num para de chorar. Deixa me entrar lá que ela conhece meu cheiro. Margarida pediu a dona Soledade para ver a criança achada na beira do Rio Real. Quando aquele pequeno ser ouviu a voz de Natalina parou os berros. Os médicos e enfermeiros, junto com todos os presentes encheram os olhos de água; o relógio da parede bateu meia noite – era a hora de Papai Noel.
Tobias se compadeceu da criança e de Margarida. A casa das ferragens deu todo o material para bater a lage da nova casa da nova família. A Loja Mobileolar doou todos os móveis que uma casa digna precisa. O Mercadinho “Compre bem porque aqui tem” garantiu um ano de alimentos para a nova família. A televisão de Aracaju veio fazer um vídeo sobre a história: “A menina do rio”. O sucesso foi tão grande que Margarida parou de catar lixo e pôs uma venda ao lado de sua casa. Em Tobias, quando o povo gosta e abraça uma causa, o povo vai até o fim.
- Natalina, onde está Deus?
- Sei não, mas, minha menininha sabe.
- E sabe fia?
- Sim.
O corpo da estranha foi enterrado no cemitério da Santa Rita. Ninguém foi; ninguém apareceu. Diz Augusto, o coveiro, que um vento forte veio do fundo da cova antes de descer o caixão. Depois, ele ouviu bater a corrente que segura o cadeado...