Chalalá, Cap. V
Passaram-se três anos e alguns meses. O prédio a ser construído, em subúrbio afastado, com a verba oferecida por Krakoviena Mansur, estava em fase de acabamento. Nas paredes do tapume de madeira ainda se viam aqui e ali as letras V.C., Viemos no Coletivo, nome da facção que dominava o morro ao final da rua em que o vereador residia. Ele já havia pedido ao pessoal do movimento, através de um mensageiro deles, que não houvesse pichações na fachada do prédio depois de acabado, no que tinha o compromisso de ser atendido. Três outros centros estavam em fase de implantação, pelo menos um deles a ser construído em terreno oferecido por um conjunto de empresas do ramo alimentício.
A popularidade de Chalalá não parava de crescer. Naturalmente seria candidato à Prefeitura, com chances totais de ser eleito. Alguns consideravam até a possibilidade, o que seria absolutamente inédito, de ele ser tornar candidato único no pleito. Sobretudo depois que seu escritório passou a liderar a campanha pela adoção do voto facultativo, pela redução das vantagens especiais oferecidas a todas as categorias de políticos, pelo fim da imunidade parlamentar em todos os níveis e pela implantação da fidelidade partidária.
Embora não se tratasse de nenhum “ovo de Colombo”, essas medidas, suscitadas com veemência pela equipe de Chalalá, passaram a ser defendidas, com um entusiasmo nunca visto, por quase toda a população da cidade. Talvez pelo fato de que, pela primeira vez, o povo tivesse intuído que com Chalalá elas pudessem se materializar. E é claro que isso desagradou interesses. Que não se limitavam ao município do vereador. Cuja chegada à Presidência da República, em mais quatro anos, todos já estavam dando como certa.
- Posso aguardar um pouco aqui?
- Claro, D. Brígida. Ele foi comprar pão e não deve demorar.
- Um vereador comprando pão na esquina!
- É, D. Brígida. Ele procura manter seus hábitos.
- Sei que ainda está um pouco cedo, mas é que se trata de um assunto importante, Romana, prosseguiu D. Brígida, sem poder disfarçar o nervosismo que lhe acompanhava a palidez do rosto.
- Sete e meia nunca foi cedo pra gente. Muito menos agora, com essa história de vereador, compromissos, reuniões, agenda, etc. Além do mais, a senhora é de casa, completou Romana, procurando tranqüilizar D. Brígida, a mãe de Cláudia, a “Pimenta Magenta”.
- A senhora vai me dar licença um pouquinho porque tenho que voltar pra cozinha. Tem uns docinhos que ainda não terminei e o café do patrão, que, aliás, a senhora vai tomar com a gente, não é mesmo?
- Ora, Romana, não se preocupe. E fique à vontade.
Mal Romana sumiu no corredor de acesso à cozinha, D. Brígida ouviu os passos arrastados de Chalalá, aproximando-se da porta de madeira entreaberta da sala. Ele entrou sem perceber, a princípio, o olhar indagador de D. Brígida sentada no sofá. Duas bisnagas debaixo do braço, o jornal ainda nas duas mãos e a boina azul quase caindo para a esquerda, Chalalá mostrou-se surpreso quando viu D. Brígida ali àquela hora.
- Ah, bom-dia, D. Brígida. Como está? Tudo bem?
- Bom-dia, Chalalá. Tudo vai indo. Desculpe ter vindo cedo. É que preciso muito lhe falar, respondeu D. Brígida, mostrando-se ansiosa na articulação das palavras e no tom baixo de voz.
- Foi bom ter vindo. Tem um tempo que não nos vemos. Mas a senhora está preocupada ou é impressão minha?
- É, não posso esconder. Estou sim, e também muito arrasada. Mas não gostaria de estragar o seu café da manhã, respondeu D. Brígida, falando mais baixo ainda.
- Não vai estragar, não. Vamos lá pra cozinha. O pão está quentinho e o café está cheirando. Vai ver como a Romana faz um café gostoso. E lá a gente conversa, falou Chalalá, fazendo com que D. Brígida se levantasse e o seguisse até a cozinha.
D. Brígida sentou-se no banquinho com tampo revestido de azulejos de fundo branco e flores azuis e amarelas, que eram os mesmos que revestiam o tampo da mesa pequena, encostada à parede, em frente à pia. Chalalá sentou-se em frente a ela num banco igual. Romana ficaria entre os dois, mas agora lavava pratos na pia.
Sobre a mesa, pequenos jarros de cerâmica com café e leite; queijo branco e manteiga em pratos separados; uma jarra de vidro com suco de laranja; três pares de pires e xícaras e três copos altos. D. Brígida com o pensamento na porta da sala que, como vivia entreaberta, podia permitir a presença de qualquer um a qualquer hora, pelo menos durante o dia.
- Não vai comer nada, D. Brígida?
- Tudo bem, Romana. Tomo um cafezinho.
- E então, D. Brígida, pensei que a senhora estivesse aqui para falar de um novo concurso. Não era isso?, perguntou Chalalá, sugerindo alguma descontração.
- Não, não é isso. Não teria cabeça pra isso agora.
- O que pode ser então, D. Brígida?
- É que Claudinha não vem pra casa há três dias. Não tenho a menor idéia de onde ela possa estar, respondeu D. Brígida, procurando disfarçar a intranqüilidade.
- A senhora já falou com a Cirlene?, indagou Romana, após soprar o café com leite na xícara.
- A Cirlene me disse apenas que também não tem tido contacto com ela.
- E os pais da Cirlene? A senhora conversou com eles?, indagou Chalalá, preocupado em se mostrar um pouco indiferente.
- Foram muito amáveis. Disseram que iriam falar com a Cirlene. Depois contaram-me que ela nada revelara de novo a respeito do paradeiro de Claudinha. Admitiram que a filha pudesse estar escondendo alguma coisa. O que seria até bom. Porque Claudinha podia não querer aparecer por temer que soubéssemos que tinha feito algo que pudesse ser considerado indevido. Tudo bem que fosse assim. O pior seria ela não aparecer... mais, completou D. Brígida, lutando para não se descontrolar.
- Tudo bem, D. Brígida. Essas coisas, como quase tudo, só com o tempo. Vamos botar o pessoal pra correr atrás. Agora que já nos contou, relaxe. Lembre-se de que é muito importante manter o controle. Tome o cafezinho que o pão ainda está quente. Tudo se resolve, concluiu Chalalá, esperando reduzir o estado de ansiedade de D. Brígida.
A mãe da Pimenta Magenta saiu melhor do que entrou, embora ainda cabisbaixa, triste e pensativa. Mal ela saiu, Chalalá correu até Romana:
- Rô, tente achar a Cirlene e peça-lhe que venha aqui em casa, lá pelas seis, de preferência sozinha. Hoje chego mais cedo.
- Vou tentar, vou tentar. Mas é possível que um dos pais queira vir também, Carlos.
- Sei disso. Mas dê seu jeito. Ela agora já tem dezoito anos, não é? Vai sentir-se melhor se estiver sozinha.
Quando Chalalá chegou, por volta de seis e meia, Cirlene tomava um suco de laranja com pães doces, com cobertura de fios de ovos, feitos por Romana. Sandália de salto baixo, calça jeans ligeiramente desbotada, blusa de madras com fundo branco de mangas compridas, cabelos presos com uma “piranha” amarela, Cirlene não parecia nada preocupada com o que possivelmente já havia conversado com Romana a respeito da Pimenta.
- Como vai, Chalalá? Trabalhou muito hoje?
- Fiquei o tempo todo pendurado no telefone, atendendo um monte de chatos. Só saí do telefone quando tive que ir ao Plenário, respondeu Chalalá após os dois beijinhos em cada face da menina.
- Carlos, ela foi boazinha. Chegou às quinze para as seis e já deu para conversarmos um pouco, não é Cirlene?
- É isso aí. Não tem mistério algum, Chalalá. A Pimenta está ficando com o Doquinha. Eles já vinham juntos há uns três meses. Agora resolveram ficar uns dias mais juntos. Não quis falar nada porque eles me pediram pra ficar quieta.
- Mas, Cirlene, o Doquinha não é o segundo depois do Assunto?
- É, tem mais dois que andam sempre com o chefe, o Café e o Big Four. Mas o Doquinha é quem manda mais, depois do Assunto, é claro.
- E a Pimenta, ela tá fazendo uso das coisas, assim de uma forma mais intensa, Cirlene?, perguntou Chalalá, procurando esconder a apreensão.
- É possível que sim, mas não acredito que de uma forma intensa. Sei que com vocês posso me abrir. Mas isso não pode ser dito por aí. Só concordei em vir aqui porque dá pena ver como a D. Brígida está suportando tudo isso. É o assunto principal lá em casa.
- Fique tranqüila. A gente só quer ajudar. Fomos procurados por D. Brígida e vimos o esforço que ela vem fazendo pra suportar tudo com dignidade, interveio Romana.
- É curioso, mas o comando mesmo não faz uso da coisa assim de uma forma descontrolada. Ninguém cheira ou fuma tudo. Fazem uso sim, mas de uma forma light. Não acredito que sejam dependentes. Com a Pimenta deve-se dar o mesmo. Quando vi que ela estava ficando com o Doquinha, procurei discretamente me afastar. São mundos diferentes e incompatíveis, é o que papai sempre diz. Ele nunca me proibiu de nada. Prefere me dar elementos para que eu faça a escolha. Acho que ainda não o decepcionei. Por isso, quando vi a parada da Pimenta, achei melhor me afastar. Sem criticá-la, é claro, mas preferi ficar na minha. Tenho compromissos comigo. Parece que ela aceitou. Não a vejo há uns cinco dias. Nos falamos pelo celular.
- Eles estão morando lá em cima?
- Não, Chalalá. Eles estão numa bela casa em uma cidade serrana, não muito longe daqui. A Pimenta diz que é quase uma mansão. Não me disse onde fica. Churrasqueira, piscina, sauna, salão de jogos, papagaios e um viveiro de pássaros.
- Mas então ela tem perdido aulas.
- Ela me pediu que mandasse o que pudesse por e-mail. Eles têm um PC de última geração lá na serra. Sei que de vez em quando ela vem às aulas com um motorista deles.
- Cirlene, deixa eu te dizer uma coisa. Não tenho a pretensão de resgatar a Claudinha. Sei que é algo complicado. Aliás, só acredito que isso possa acontecer se ela mesma o desejar. No entanto, queria apenas ter a chance de fazê-la conversar com sua mãe, para que D. Brígida se sentisse mais tranqüila e feliz.
- Certo, mas vá com calma, Chalalá. A Pimenta tem uma personalidade terrível. Não sei se você já notou. Ela não é de bater palmas para qualquer um. Nem mesmo pro vereador mais votado do planeta, comentou Cirlene, expressando-se de uma forma absolutamente adulta. Chalalá e Romana estavam impressionados. Afinal tratava-se da menina que tivera a idéia do concurso para os cargos da Câmara.