O Rato

“A hierarquia e a disciplina

gritam tão alto em nossos ouvidos

que nossas ideias de jovem se tornam sussurros”

INOCENTES

Existe muita dificuldade em decifrar os enigmas do mundo. Sempre fui um curioso. Não que a vida era ruim antes do “presente” indesejado, contudo, viver simplesmente para aproveitar o que estava sendo jogado em cima de nossas cabeças não era um dos meus objetivos de vida.

Agora estou prestes a entrar por uma porta totalmente desconhecida. Não pela minha vontade e sim por uma necessidade mortal. A luz forte me faz preferir confiar no meu tato e olfato. Ver nunca foi meu forte. Talvez a escuridão tenha anestesiado meus olhos.

Próximo a dar o grande passo, minha memória evoca coisas do passado. A primeira lembrança são as brincadeiras com os outros recém-nascidos nadando por entre os amontoados de lixo e piscinas do esgoto. Aquilo era o paraíso. Uma vida boa e sem preocupações.

Todas as famílias eram amigas e prosperavam em conjunto, obedecendo sempre à ordem da grande mãe. A primeira vez que a vi, tentava não rir, pois uma piada sobre uma ratazana obesa vinha sempre a mente. O que poderia ser muito perigoso, pois desrespeitar a grande mãe era o pior castigo em nossa comunidade. Mais tarde compreenderia os resultados das blasfêmias contra nossa guru da pior maneira.

Na juventude, gostava de visitar um dos becos do esgoto onde consideravam como o lar dos desajustados. Meus pais diziam que não passavam de vagabundos. Entretanto todos da nossa idade tinham curiosidade de conhecê-los. Alguns ficavam tão impressionados com o tipo de vida desregrada que não voltavam mais para o nosso beco.

Em um dia quente, eu e meus três irmãos decidimos conhecer o tal famoso beco. Enganamos nossos pais e corremos a toda velocidade com a ânsia de descobrir o que de tão assustador tinham os moradores daquele gueto.

Ao chegar, um rato sem rabo nos recebeu com muita simpatia. O ambiente era muito agradável e descontraído. Tinham várias rodas de indivíduos diferentes, conversando sobre coisas que não falávamos no lar da grande mãe. Falavam alto, sorriam e comiam comidas diferentes. Não era o nosso lixo de sempre.

O sujeito sem rabo nos chama pra participar de uma roda e entrega um delicioso pedaço de queijo. Pela primeira vez ouço da boca de outro sobre o mundo que existe na superfície. Fico fascinado. Nosso anfitrião conta sua grande aventura por aquelas terras. Disse ser habitadas por gigantes. Seres com forma muito esquisitas capazes de dominar o espaço com todo tipo de lixo possível. Falavam de aventuras fantásticas.

Mas também comentavam os perigos. Como na vez que nosso novo amigo subiu a superfície e sentiu o cheiro de um delicioso pedaço de queijo. Quando foi agarrá-lo, seu rabo prendeu-se numa armadilha. Mesmo amputado, conseguiu descer de volta ao esgoto. Hoje ele só coordena os mais jovens que querem se aventurar nas terras de cima.

Quando retornamos no fim do dia, os adultos nos esperam com reprovação. De algum modo descobriram o destino real do nosso passeio. Fomos levados a grande mãe e tão logo ela começou a pregar a verdade sobre aqueles sujeitos. Ela dizia que a natureza de um rato é compreender seu pequeno espaço no subsolo e conviver com o que é jogado como resto pelos seres da superfície. Comer o lixo era uma forma de manter o mundo de cima sustentável. Os ratos do beco dos desajustados não passam de pensadores e aventureiros medíocres que não querem submeter a essa verdade.

Depois de ouvir aquilo, senti toda a raiva do mundo. Uma vontade de tornar-me um desajustado e conhecer o mundo iluminado da superfície. A grande mãe não queria que saíssemos da nossa comunidade porque talvez ela não fosse capaz de viver em um mundo novo. Mais claro que aquela eterna escuridão.

Os dias se passaram e sempre voltava ao beco, mesmo que os outros não gostassem. Um dos habitantes, um rato preto com ar pretensioso, conversava comigo sobre meu lar e de como era um paraíso privilegiado. Estava cansado de viver naquele lugar e queria mais sossego. Respondi pra ele dá dificuldade que é ser aceito pela grande mãe. Era um lugar cheio de disciplina. Logo ele deu-me um presente e pediu gentilmente pra entregar a grande mãe. Era um pedaço de carne bem cheirosa. Qualquer um conseguia sentir o seu sabor delicioso apenas com seu cheiro a metros de distância.

Todos me recebem com aquele olhar ludibriados com o naco. Conto toda a história do meu novo amigo. Ela diz que não vai aceitar o presente e pede para que eu coma na frente de todos a deliciosa carne. Devoro cada pedaço com desejo e brutalidade.

A mãe, no alto de sua sabedoria e gordura, começa a pregar novamente. Ela diz que já teve a minha idade e sabe o que existe no mundo da superfície. Pouco depois, começo a passar mal. Meu corpo endurece como pedra e minha visão fica turva. A mãe sabia que a carne tinha o veneno dos homens. Ela sentia no apetitoso cheiro o gosto amargo da mentira. Apesar de limpar a sujeira da superfície, os gigantes faziam de tudo para acabar com nossa existência.

Sinto o peso da culpa. A comunidade me olha como um traidor. Pela minha curiosidade quase matei nossa mãe e agora envenenei meu corpo. A mãe diz, que a única forma de salvá-los é subir até a superfície e encontrar a cura. Finalmente vou visitar o lugar que sempre quis ir.

Antes da partida, a mãe revela que na vida não adianta viajar tão longe pra descobrir a verdade. Ela sempre fica no lugar mais fácil de pegar. Nós que complicamos em jornadas sem sentido e acabamos presos em armadilhas. A mentira é apetitosa e pomposa. A verdade é simples.

Agora meus olhos ardem com tanta luz. Os gigantes gritam assustados com a minha chegada. Não entendo o medo deles. Sou um corpo mínimo e indefeso. Talvez meu corpo represente algo demoníaco. Não tenho velocidade para fugir. Meu sangue está todo contaminado.

Finalmente consigo enxergar. O homem vem em minha direção como um deus furioso e o cetro em sua mão acerta minha cabeça. Durmo serenamente relembrando as palavras sábias da grande mãe. Meu sacrifício foi necessário. Meu legado é o exemplo para os novos ratos do beco.