Cuidado com a filosofia

Encontrei-me perdido entre a cafeteira e a filosofia. De certo não havia mais nenhum outro lugar confortável que eu pudesse ir. Organizei as notas na gaveta e escrevi uma carta à governanta. O leitor pode ficar curioso quanto à filosofia e isto, em si, é um bom sinal. Fui convocado, abandonei meu emprego e carreguei mulher, criança e bagagem para o interior. A casa agora é mais espaçosa e a filosofia esgueira-se pelos cantos. Mas decidimos colocá-la no quarto dos fundos, onde não assustasse as visitas. Quando morávamos na cidade e os amigos e parentes nos visitavam, era necessário esconder depressa a filosofia. Sem saber o risco que corriam, os visitantes se sentavam, bebiam e conversavam banalidades.

Um dia, numa pequena reunião para os amigos mais íntimos, a filosofia se soltou. Subiu nos móveis, pulou em cima do sofá e acabou bem no meio da sala. Foi terrível! Algumas pessoas ficaram estarrecidas. Cochichavam e reclamavam balançando os ombros. Foram embora sem experimentar a sobremesa.

Difícil é reverter a situação quando a filosofia escapa do quartinho. Quando a porta se abre e a deixa passar, geralmente só conseguimos contê-la com a ajuda de alguém que já a conhece. Foi exatamente o que aconteceu outro dia. Conversávamos no portão com o vizinho quando ela veio de mansinho. Encostou-se na grade e quis passar correndo pelo portão da garagem. Mas nosso vizinho, por obra da Divina Providência, também tinha uma filosofia - mais platônica, diga-se de passagem - e soube lidar bem com aquela situação. Disse-me que as filosofias eram assim mesmo, e que eu deveria ir ver como ele mantém a sua a salvo, no sótão.

Aceitei o convite depois de fazer o mesmo, ou seja, o convidei para ver o quartinho lá dos fundos. Entramos. Segui na frente levando a filosofia de volta ao seu lugar. Quando chegamos ao aposento ilustre, meu vizinho derreteu-se. Parabenizou-me. "É disso que precisamos!" - deu um tapa no meu ombro. Em verdade, nunca imaginei que meu vizinho também cultivasse uma filosofia, pois geralmente àqueles que o fazem são reclusos, quase eremitas, nos dias de hoje. Ou são artistas. Artistas no sentido pejorativo do termo. São malabaristas manetas que também possuem um só bastão. Arremessam o bastão e em seguida o pegam, como se isto fosse grande vantagem. Ou fosse inédito. São apenas exibicionistas sem coragem para cuspir fogo. Porém, Cleber, meu vizinho tinha outro perfil. Era o prefeito e possuía uma popularidade de dar inveja a qualquer governo assistencialista.

A esta altura, a minha filosofia - que é mais aristotélica, por assim dizer - já tinha conseguido fazer um cúmplice. Sem perceber a passagem do tempo, operávamos algo impensável: uma vez por semana nos sentávamos na varanda, cada um com a sua filosofia, a debater sobre os últimos e os primeiros acontecimentos.

A cafeteira dá seu sinal. Desperto e abro as janelas. Lá embaixo está Cleber acenando com um outro ao lado. Coloco o rosto entre as grades e ouço seu grito: "este aqui é Roberto, mais um meu jovem! Mais um coitado!".

Me vesti rapidamente e desci. Aperto a mão do novo amigo e descubro que a sua filosofia - que é mais kantiana, talvez - o acompanha há muitos anos. Disse-me que sofreu muito durante seu exílio na universidade e prometeu não enviar seu filho ou aconselhar qualquer outro a seguir este caminho. E depois dos devidos preâmbulos, descubro que Roberto mora na primeira casa da rua, uma casa amarela. Pergunto como cuida da sua filosofia e qual o tipo de alimento que dá a ela. Me responde com tristeza que naquela casa de cinco quartos não há um só lugar para manter a filosofia e que estava construindo um novo quarto para tal fim.

Do mesmo modo que Roberto apareceu, mais tarde a vizinhança se contaminou. Não sei se foram as filosofias que, perambulado por aí, acabaram fazendo amizades ou inimizades. A verdade porém é que a varanda já não suportava mais o peso delas. Um mês depois nos mudamos para a casa amarela do Roberto, quando o quartinho ficou pronto, lá nos fundos do seu quintal. Bebemos algumas doses de whisky na inauguração e pregamos uma placa de madeira na porta, para alertar aos desavisados, "Cuidado com a filosofia!".

Guilherme Pedrosa Lima
Enviado por Guilherme Pedrosa Lima em 04/12/2012
Código do texto: T4018998
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