Chalalá, Cap. III
O primeiro dia na Câmara foi melancólico. A posse até que tinha proporcionado algum entusiasmo. Chalalá emocionou-se ao ver a galeria repleta de moradores e vizinhos e no plenário, no andar inferior, um grande número de cadeiras ocupadas por sua “equipe” de frente, os garotos e meninas mais assíduos em sua casa. Mas o escritório ao qual era agora conduzido trouxe-lhe uma sensação de medo e solidão. Havia quatro mesas na sala onde entrou, todas elas com telefone. Computador apenas em duas. Em uma das mesas achava-se uma mulher de uns 36 anos que deveria ser funcionária da casa. Ela se levantou assim que Chalalá se despediu de seu acompanhante. Um sofá de couro marrom, de dois lugares, próximo à porta, uma mesinha de tampo redondo com um pequenino jarro de flores e um cinzeiro de vidro, dois aparelhos de ar condicionado e uma persiana azul na única janela de abrir, alta e de madeira, na parede maior contrária à porta de entrada. Ao lado da janela, uma estante de madeira escura, com cerca de 2 metros de largura por 1,50m de altura, em cujas prateleiras viam-se livros velhos e empoeirados, classificadores sem papéis em arquivo, dois exemplares usados de um mesmo Código de Obras e um Caldas Aulete de capa dura e folhas amareladas. Além de um outro cinzeiro, também de vidro, um rádio portátil provavelmente necessitando de reparos e uma taça de porcelana contendo flores artificiais.
- Bom dia, Vereador. Meu nome é Marilda, sou funcionária da câmara e estou aqui para servi-lo.
- Muito prazer, Marilda. Como vai você?
- O prazer é meu em conhecê-lo, Vereador. Eu vou bem. Seja bem-vindo.
- Muito obrigado. É o meu primeiro dia hoje e devo lhe confessar que não tenho a menor idéia do que faz um vereador. Espero contar com a sua ajuda. Posso?
- Claro, Vereador. Estou aqui pra isso. O senhor não é o único. Muitos chegam aqui e não sabem bem como começar. Estou na Câmara há 16 anos. Acho que posso colaborar com alguma coisa.
- Tenho certeza que sim.
- Esta sala não é muito ampla. Mas poderá ser o local para o senhor receber alguns visitantes e acomodar parte de sua equipe de trabalho. As condições na Câmara, de um modo geral, não são lá muito confortáveis, falou Marilda pausadamente, embora procurasse disfarçar o nervosismo. Mas não deixou de achar engraçada a boina azul na cabeça inclinada de Chalalá, que a mantinha assim por alguns instantes sempre que via uma pessoa pela primeira vez.
- Espero não ter que receber muita gente, comentou Chalalá, não tendo certeza se era realmente isso o que queria dizer.
- A outra sala é que deverá ser o seu escritório propriamente dito. Nela então o senhor poderá receber pessoas em caráter particular, disse Marilda, apontando para uma porta de madeira envernizada onde se lia numa placa de plástico na cor azul a inscrição Gabinete do Vereador.
Só então Chalalá se deu conta de que na parede menor, situada um pouco além do sofá de couro, e entre este e uma das mesas, havia esta porta envernizada de pequena largura, como se fosse a de um banheiro, encimada por uma luz vermelha que se encontrava apagada. Ficou olhando demoradamente a porta como se estivesse em dúvida quanto a temer ou não a luz vermelha sobre ela. Parecia ameaçá-lo.
- O senhor não quer conhecer o seu escritório?, perguntou-lhe sorrindo Marilda.
- Ah, sim. Claro. Vamos lá.
Um pouco menor que a sala anterior, o compartimento destinado a escritório abrigava uma espaçosa mesa de madeira, com tampo de vidro de boa espessura, e sobre ela dois aparelhos de telefone; a confortável cadeira da mesa, revestida em couro, com braços largos e costas altas; um sofá de quatro lugares ao longo da parede em frente à mesa; quadros na parede do sofá; e duas poltronas entre o sofá e a mesa. A mesa formava um L com uma mesa menor sobre a qual ficavam o computador e a impressora
Embora os móveis não fossem novos e o ambiente não estivesse adequadamente limpo, Chalalá achou tudo aquilo muito requintado e até luxuoso. Considerava normal que isto estivesse à disposição de um vereador. Considerava anormal que fosse ele. A vontade que tinha era a de voltar para casa. Logo que chegasse, a terapia recomendável seria pintar o seu ambiente de trabalho. O que por certo não conseguiria.
Voltou à sala anterior e esperou que Marilda se dirigisse à sua mesa. Sentou-se em seguida numa cadeira em frente sem tirar os olhos da persiana azul na única janela da sala.
- O senhor já sabe com quem vai trabalhar?
- Uma das pessoas será certamente você, Marilda. A menos que não queira.
- Oh, muito obrigado, Vereador. Pode contar comigo. É que o senhor dispõe de 26 cargos em comissão.
- Tudo isso? Bacana, hein! Mas o que é um cargo em comissão?
- São cargos de DAS, isto é, de Direção e Assessoramento Superior, destinados a pessoas da extrema confiança do parlamentar. Normalmente são os de rendimentos mais elevados, inferiores apenas aos do vereador, informou Marilda.
- Também não tenho idéia de com quem poderei contar. Sei que, por enquanto, você é a única. É claro que tinha uma vaga noção disso tudo. Mas agora vejo que é verdadeiro e estou certo de que terei que chegar aos detalhes. Isso incomoda um pouco.
- Entendo, vereador. Mas a gente se habitua a tudo, não é mesmo?
- É, parece que sim, concordou Chalalá meio sem querer.
- Dentre os cargos de DAS, talvez o de maior importância seja o de Chefe de Gabinete. Muitos vereadores trazem a esposa para ocupá-lo.
Chalalá foi se inteirando do dia-a-dia na Câmara com Marilda, ainda que superficialmente: pontos principais de alguns regimentos, certos pormenores administrativos, aspectos processuais, algumas prerrogativas do parlamentar (selos, passagens de avião, assinaturas de revistas, carro oficial, etc.) e outros itens. Os serviços gerais, tais como a limpeza do escritório e o preparo e oferecimento de café e água, eram terceirizados. A segurança também.
Chalalá teve a informação de que poderia apresentar projetos de lei nas sessões do Plenário, nos dias e horários estabelecidos, todos eles traduzindo preferencialmente os interesses da comunidade.
A conversa com Marilda estendeu-se por cerca de duas horas e meia. Era quase uma e meia da tarde quando Chalalá decidiu retirar-se, o que fez Marilda suspirar aliviada. Pois, há muito queria comer algo. Por sua vez, Chalalá disse que almoçaria com Romana e que passaria a tarde tomando providências quanto à interrupção de suas atividades particulares. No dia seguinte sim, começaria efetivamente o seu trabalho na Câmara. Saiu levando consigo documentos administrativos, alguns regimentos da casa e a lista de cargos disponíveis, com a recomendação de Marilda para que desse uma olhada nesses papéis.
Em casa almoçou com Romana, mas não foi depois cuidar dos quadros que deixariam de ser concluídos, pelo menos num curto espaço de tempo, uma vez que teria que se dedicar aos afazeres da sua nova ocupação. Preferiu pedir ao filho do escrivão que fosse chamar os outros garotos e meninas, com mais assiduidade em sua casa, para lhes informar como tinha sido o seu primeiro dia na Câmara. Queria contar com a intuição dos menores para as ações que precisaria desencadear.
A “equipe” exortou Chalalá a reunir o pessoal da rua no fim-de-semana para os agradecimentos e a manifestação de alguns esclarecimentos, bem como o anúncio de algumas idéias que até lá eles se encarregariam de formular.
Chalalá disse-lhes que teria a possibilidade de empregar 26 pessoas. Mas que não teria como fazer isso porque não saberia quem indicar.Um dos garotos lembrou que na pelada, após o par-ou-ímpar, a escolha iniciava-se pelos que jogavam mais bola, e que todos sabiam quem era. Na verdade os melhores já haviam demonstrado a sua competência, sendo por isso os primeiros a serem escolhidos. Uma menina explicou então que poderia haver uma espécie de concurso, pois assim os inscritos poderiam mostrar a sua competência. E a escolha se faria entre os 26 melhores colocados. Todos acharam a idéia brilhante. Chalalá foi o mais efusivo, pois teve a comprovação do poder da intuição das crianças.
O concurso foi organizado por dois moradores da circunvizinhança: Astolpho Benevides Chalita, professor de Física em uma das universidades do estado, e D. Brígida Ivonete Pimenta, mãe de Claúdia, 14 anos, a “Pimenta Magenta”, assim chamada pelos sedosos cabelos ruivos que lhe cobriam o pescoço. Magenta era a maior amiga de Cirlene, 15 anos, a menina que teve a idéia do concurso. D. Brígida lecionava Língua Portuguesa em escolas de 1º e 2º Graus. Para que maiores tumultos fossem evitados, em função dos altos índices de desemprego e da popularidade de Chalalá, e considerando-se o caráter, pode-se dizer, doméstico do processo de escolha, em que pese ter sido aberto ao público, à inscrição foi realizada em apenas um dia. Mesmo assim houve 130 inscritos. D. Brígida conseguiu que uma das escolas particulares em que trabalhava cedesse cinco salas para a realização das provas de Português e de Matemática, as duas únicas disciplinas do processo seletivo. Os 26 primeiros colocados, a maioria moradores do bairro em que Chalalá vivia e arredores, formaram então a sua equipe de trabalho. Tomaram posse cerca de um mês depois de Chalalá ter sido nomeado.