Chalalá Gonçalves Azul, Cap. I
Vivia sempre com uma boina azul, que tinha por dentro, encoberto por um plástico que talvez lhe esquentasse a cabeça, um fundo azul-claro, com curiosas estrelinhas brancas, parecendo representar um pedacinho do céu. Era magro, moreno claro, a barba sempre por fazer, mas nunca inteiramente barbado, cabelos lisos e negros, compridos, sempre penteados. Um pouco alto, olhos vivazes, de um azul que combinava com a boina. Cordial e prestativo, poucas vezes arredio. Pedia para jogar no gol na hora da pelada, embora fosse melhor na linha. Jamais disputava o par-ou-ímpar. Marcava as faltas contra seu próprio time, nunca contra o adversário.
Várias vezes deu a bisnaga do café da manhã para um dos garotos lá de cima da rua, onde o morro começava.
- Mas, Chalalá, aquele garoto, logo depois que você lhe deu a bisnaga outro dia, ele a vendeu.
- Tem nada não, falo com ele amanhã.
No outro dia, o garoto veio e Chalalá lhe deu mais uma vez a sua bisnaga do café da manhã. Isso se repetiu algumas outras vezes até que o garoto desistiu de pegar bisnagas com o Chalalá. Talvez por ter se cansado ou por ter ficado envergonhado, já que Chalalá começava a ficar cada vez mais estimado por todos na rua. Era avesso a elogios. Estava sempre no meio da maioria dos garotos e mesmo das meninas. E nunca era ele quem os chamava. Os pais, a princípio, se mostraram desconfiados. Mas depois, vendo que o culto ao Chalalá tornava-se cada vez mais unânime, e não tendo conhecimento de nenhum fato que pudesse representar uma contra-indicação para a aproximação entre seus filhos e esse homem de 26 anos, ficaram mais descansados. E resolveram até aderir. Chalalá chegou a visitar alguns. E deixou uma boa impressão. Houve quem se sentisse até em situação de desconforto mediante uma certa erudição demonstrada pelo rapaz, sobretudo porque em nenhum momento puderam notar que ele tivesse tido essa intenção. Cordialidade, fineza e educação eram facilmente identificáveis na postura de Chalalá, sem que ele fizesse o menor esforço para que isso fosse percebido. Por vezes discordou das posições de seus interlocutores, mas sempre com elegância e com argumentos convincentes. Não foram poucas as vezes em que os adultos mudaram de opinião depois de uma conversa com o Chalalá. Mesmo que aquela indefectível boina azul incomodasse um pouco, assim como a barba por fazer, o rosto magro, as roupas baratas, esse aspecto, isso sim, que não era lá dos mais recomendáveis.
Ninguém sabia onde Chalalá trabalhava. Não falava nunca, mas vivia da pintura de quadros. Isso lhe rendia o suficiente para uma vida decente com a companheira. Morava com uma mulher seis anos mais nova que ele. Mais baixa também que ele, loura, cheinha, olhos claros, rosto bonito. Parecia ter nascido em Friburgo. Talvez fosse descendente de alemães. Por isso as meninas chamavam-na de galega, coisa a que os garotos não se atreviam. Como Chalalá, tratavam-na de Romana, sem saber se era esse de fato o seu nome. Não tinham filhos. Ela fazia doces, que passou a vender na vizinhança depois que o casal se tornou conhecido no bairro.
A casa de Chalalá parecia um mercado, um lugar público. Era uma confusão só. Os garotos e meninas do bairro, seus maiores amigos, entravam e saiam à hora que queriam. No início, alguns pegavam pequenos objetos (lápis, chaveiros, blocos, agendas, livros, discos, etc.), levavam para as suas casas e só devolviam os objetos quando os pais obrigavam-nos a fazê-lo. Chalalá sabia de tudo isso, mas não ligava.
Um dia um pai trouxe seu filho pela orelha até à casa de Chalalá.
- Devolva a agenda que você trouxe da casa do Sr. Chalalá sem o seu consentimento. Vamos logo, menino, disse o pai quase berrando.
- Calma, Sr. Nestor, tá bem, calma. E obrigado, Sr. Nestor, muito obrigado, interferiu Chalalá com um leve sorriso.
- Esse moleque precisa aprender desde logo que isso não é coisa que se faça.
No final da tarde do dia seguinte, quando Gustavinho, filho do Sr. Nestor, foi à casa de Chalalá namorar o quadro do barco azul sobre um mar de nuvens brancas, em retoques finais no cavalete do pintor, lá estava sobre a mesinha com vários paninhos e preparados de tinta a agenda azul de capa dura que Gustavinho levara. O menino leu a dedicatória de Chalalá na primeira folha quando o pintor entrou no atelier.
- E a orelhinha, tá vermelha ainda?, perguntou Chalalá.
- É pra mim, Chalalá?
- Claro, Gustavinho, você sempre quis ter uma agenda. E você vale muito mais do que ela, não é certo?
- E papai? Você viu como ele é.
- Deixe que ele veja a dedicatória. Se ele quiser, vou procurá-lo. Mas não vai ser preciso.
E a fama de Chalalá crescia. Começava a alcançar outros bairros. As pessoas, já não só meninos e meninas, vinham procurá-lo para entrevistas, bate-papos. Começou a ser convidado para proferir palestras em escolas de níveis elementar e médio. Logo chegaria às universidades, pensavam alguns. Quando escutava algo nesse sentido, tornava-se mais arredio. Incomodava-o a perspectiva de tais compromissos. Preferia soltar pipa no final da tarde ou conversar na esquina até tarde da noite, sentado sobre os meios-fios que haviam sobrado da pavimentação da rua e se transformado em bancos.
Foram vários os acontecimentos que contribuíram para que Chalalá tivesse a consideração e estima que tinha. E por isso cada vez mais pessoas compravam seus quadros e os doces de sua mulher, sem que nenhum dos dois fizesse grandes esforços para vendê-los. Como no dia em que Chalalá imobilizou com um golpe de tae-kwon-do um adolescente que tirara uma bolsa de uma senhora na calçada depois de derrubá-la com um empurrão. Isso sem que a boina azul saísse-lhe da cabeça, como nos filmes americanos. A bolsa foi devolvida à senhora e as pessoas próximas à cena ficaram surpresas quando viram que Chalalá soltou o ladrão ao perceber que dois policiais se aproximavam.
- Vai à luta, irmão, que os homens estão chegando. É que a moça era minha tia, sacou?, mentiu Chalalá, a voz quase um sussurro, num contraste marcante com a força que suas mãos acabavam de exercer sobre os punhos do ladrão.
- Qual é, branquelo...? Mas... aí, cara, a gente se encontra... , falou rapidamente o assaltante, saindo em desabalada carreira logo em seguida.
Chalalá deu depois algumas explicações aos policiais, a senhora já tinha há muito se evaporado e tudo ficou por isso mesmo.
Houve também o dia em que Chalalá voltava a pé, por volta das dez e meia da noite, de um bairro próximo onde falara numa escola para uma platéia de alunos de Segundo Grau. Boina azul, rosto magro, barba por fazer, roupas baratas, sandálias de dedo. O homem que acabara de ser intensamente ovacionado era agora desrespeitosamente interpelado por dois policiais.
- Você aí, cara, documentos, falou secamente um dos policiais.
- Pois não, senhores, respondeu Chalalá, demorando-se a retirar do bolso da calça a carteira de identidade.
- Rápido, rápido, camarada. E sem essa de “pois não, senhores”. Parece um viado, falou o outro policial, mais gordo e mais alto, um bigode mal aparado, bochechas oleosas e salientes, olhos brilhando intensamente.
- Está aqui, está aqui. Pronto.
- E a carteira de trabalho, mê irmão?
- Não tenho. Sou pintor, respondeu Chalalá, o mais afavelmente que pôde.
- Ah, qual é, cara? Tu tá de sacanagem, falou o gordo ao mesmo tempo em que se aproximou de Chalalá para lhe desferir uma forte bofetada que quase o derruba. Chalalá se reequilibrou e, instintivamente armando a base, os dois pés afastados e plantados no chão, inclinou ligeiramente o corpo, sabendo que seu pé direito iria alcançar inapelavelmente o rosto do gordo. Mas ao ver a mão do outro policial dirigindo-se ao coldre e segurando a arma, Chalalá achou melhor recompor-se e não reagir.
- Vamo pra delegacia, seu babaca. Tu vai explicar isso ao delega, certo?, exprimiu-se o gordo debochadamente.
Na delegacia o pintor foi recebido pelo cenho franzido do escrivão, cujo filho ia quase que diariamente à casa de Chalalá, com o conhecimento do pai, para ter orientações sobre desenho artístico. Ao ver uma das faces do preso ainda meio avermelhada, o escrivão perguntou aos policiais:
- O que houve?
- O cidadão aqui estava em atitude suspeita e não tinha documentos, falou o policial mais comedido, percebendo, pela reação do escrivão, que não tinham procedido corretamente.
- Pô, cara, vocês só fazem merda mesmo, hein? Esse aí é o Chalalá, professor do meu filho e pessoa por demais conhecida e estimada no bairro onde mora e arredores. É melhor o Dr. Delegado nem ficar sabendo disso. Deixem isso comigo e, por favor, podem ir embora. Vou levar o Sr. Chalalá em casa e lhe pedir muitas desculpas por mim e por vocês dois, seus... Vão andando, vão andando.
- Não precisa, senhor escrivão, não precisa. Essas coisas acontecem. E só acontecem com quem vive, ponderou Chalalá.
No dia seguinte, não se sabe como, Chalalá descobriu o endereço do policial gordo e dirigiu-se até sua casa à noite, no horário em que, como soube, provavelmente o encontraria. Levou um buquê de rosas e um de seus quadros.
A porta foi aberta por Joelzira, a esposa do policial. Rosto jovial, embora com aparência de cansado, corpo esbelto, um pouco baixa, morena bonita.
- O Fonseca ainda não chegou, a mulher falou olhando as flores pelo papel transparente e tentando adivinhar o que continha o embrulho sob o braço de Chalalá. Mas ele não demora.
- Se a senhora não se importar, gostaria de esperar um pouquinho.
- Claro, fique à vontade. Aceita um café?, perguntou a mulher, querendo na verdade saber o nome de quem vinha visitar seu marido.
No mesmo instante soou a campainha.
- Oh, deve ser ele.
Fonseca entrou e deparou-se logo com a figura de Chalalá, que se levantou para cumprimentá-lo.
- Como vai, Fonseca?, perguntou Chalalá no tom mais amistoso possível.
Fonseca não conseguiu disfarçar o embaraço. Olhou para a esposa, parecendo esperar que ela dissesse o que ele deveria dizer, e depois para Chalalá, levando alguns instantes para responder. A mulher parecia intrigada.
- O senhor por aqui?, perguntou finalmente Fonseca. Definitivamente não o esperava. Como soube meu endereço?
- Terei prazer em explicar depois. Vim apenas presentear-lhe com um dos meus quadros. Tomei a liberdade, e quero desculpar-me por isso, de trazer algumas flores para a sua esposa. É o mínimo que eu podia fazer.
No dia seguinte Fonseca pediu para não ir trabalhar. Passou a manhã no quarto trancado. A mulher não sabia, mas esteve quase todo o tempo chorando. Na mesinha de cabeceira, do lado da cama de casal, o vidro de doce de leite baixo e gordo em que armazenava a caipirinha, agora quente. No tampo de madeira da mesinha, gotas de caipirinha quase molhando também o Nextel desligado. Se o tenente me der esporro, foda-se. Só vou amanhã.