Quem matou a Rainha Má?¹

Era uma vez um reino encantado muito distante chamado... Brasil. Na verdade, não era bem um reino e também não era lá tão encantado. Mas, mesmo assim, foi o lugar que Rainha Má resolveu visitar nas suas férias. Às 14 horas de uma segunda-feira, a monarca desembarcou na capital federal. Esforçando-se para ser simpática, resolveu elogiar o país:

— Oh my God! Rio de Janeiro continues beautiful!

— Majestade, aqui é Brasília! — corrigiu o assessor.

— Whatever! — Respondeu a rainha pouco interessada.

Se no início a estadia da rainha parecia coisa simples, com o tempo, o calor dos trópicos, os insetos, os maus hábitos à mesa e, sobretudo, o excesso de português mal falado acabaram por tirar a máscara de boazinha que a monarca havia vestido.

As situações constrangedoras entre ela e o país se acentuavam a cada dia. Certa vez, ao chegar a uma festa beneficente e sem o menor interesse pela língua medíocre da população local, a rainha se dirigiu a uma garçonete:

— A glass of water, please!

— Desculpe, madame! Não consigo entender!

— Don’t you speak English?

— No, sorry! — respondeu a moça com seu inglês de segundo grau.

— ¿Hablas español?

— Sí, pero no!

— Vous parlez français?

— Hã?

Irritada com a ignorância da moça, a rainha ofereceu a ela uma maçã. Terra de sapo que nunca vira príncipe, a garçonete até hoje dorme nas filas de algum hospital público, a espera de algum jovem que a possa despertar.

Essas e outras posturas faziam com que a rainha fosse odiada por todos os que a rodeavam. Mas a gota d’água veio quando a Rainha Má perguntou ao espelho se havia nessa terra alguém mais belo do que ela. Sincero, o espelho apontou duas centenas de mulatas, morenas, louras, asiáticas que desfilariam seus belos corpos no carnaval carioca.

— Pois tenho certeza de que eu poderia ser rainha de qualquer escola que quisesse. Poria todas elas no chinelo. Ou melhor, no scarpin.

— Impossível! — respondeu o espelho.

— Veremos.

A bruxa procurou várias escolas de samba e em algumas foi chamada para ser passista, outras destaque, mas em nenhuma rainha de bateria. Os motivos? Alva demais, sem samba no pé, pouco carismática...

— Ok. Aceito ser destaque. Mas quero vir no carro abe-alas.

— Feito!

Na noite de carnaval a rainha veio glamorosa. Sua fantasia de penas de fênix australiana era certamente a mais bela que já pisara na Sapucaí.

Aconteceu, porém, que no dia do desfile, enquanto a Rainha Má desfilava seu bronzeado artificial no sambódromo, um tiro abafado pelo som da bateria atravessou suas costas fazendo com que ela caísse morta do carro alegórico.

No dia seguinte começaram as investigações. Mas quase nenhuma pista havia que pudesse elucidar o crime.

— Bala perdida! — asseguravam os moradores habituados com essa forma comum de crime.

E assim, pululavam teorias da cabeça das pessoas, enquanto a polícia pouco ou nenhum esclarecimento dava. Foi, então, que um famoso detetive e seu fiel escudeiro aportaram no Brasil interessados pelo ocorrido: Sherlock Holmes e Watson.

Os dois se apresentaram à polícia local, a fim de saber quais pistas haviam sido encontradas.

— Têm fotos do local do crime? — perguntou o detetive inglês.

— Só as que saíram na imprensa.

— Mas vocês não preservaram o local?

— Ah, detetive, era o desfile do grupo especial. Não podia parar por um simples assassinato.

— Posso ver o corpo?

O delegado acenou que sim e pediu a um guarda que acompanhasse o detetive e seu amigo até o necrotério. Mesmo sem vida, Watson não pôde deixar de admirar a beleza do corpo a sua frente, ficou ali, absorto em pensamentos necrófilos até que Holmes o chamou à realidade.

— O que acha Watson?

— Linda!

— Hã?

— Quer dizer... sinistro!

— Me refiro às perfurações.

— O que tem?

— Certamente são de um rifle.

— E?...

— Ora, arma de longo alcance. Pode ter sido dado de qualquer lugar do sambódromo. Até do viaduto que fica próximo à entrada.

— Como sabe que há um viaduto na entrada? — Perguntou Watson curioso.

— Porque já estive lá outras vezes.

— Em um caso?

— Não Watson, desfilando.

— Gosta de samba?

— E de mulatas.

Desinteressado pela discussão, o legista prosseguiu:

— Vejam! Nossa única pista.

— O que é isso? — perguntou Watson.

— Um diamante. Estava na fantasia da rainha.

— Muito bonito! Esse país sempre produziu belas gemas.

— Sinto em desapontá-lo, amigo — disse Holmes — mas esse diamante não é brasileiro. Isso aqui só pode ter vindo de um lugar...

Dois dias depois, os dois ilustres ingleses chegavam ao antigo reino da Rainha Má. Procuraram informações com várias pessoas até encontrarem o lugar que tanto procuravam: a casa dos sete anões.

Os dois entraram e, por sorte, os sete estavam tomando seu café da manhã. Um dos pequenos homens os convidaram a entrar e a tomarem sopa com eles. Os dois aceitaram.

— Acaso vocês andaram vendendo diamantes à Rainha Má? — perguntou Holmes.

— Por que querem saber, hã? Não estou gostando disso, não...

— Calma, Zangado! — ponderou um dos baixinhos.

— Ok. O senhor, que parece mais calmo, poderia nos responder?

O jovem corou-se de tal forma que com algum esforço era possível ver as veias que apareciam em seu rosto.

— Nem adianta perguntar, esse aí é tímido demais — disse o Mestre.

— E aquele ali? — Apontou Watson para um baixinho no canto da mesa.

— Atchin!

O rosto todo molhado do doutor Watson mostrava ter sido ele a vítima daquele espirro incontrolável.

— Desculpe! — disse o anão, pronto para espirrar novamente.

— Algum de vocês pode nos dizer se fizeram comércio com a Rainha Má? — perguntou Watson enquanto limpava os óculos.

— Eu posso! — levantou a mão um anão.

— Pois diga!

Antes que pudesse responder o anão caiu em sono profundo.

— Vamos acorde! — gritava Watson, sacudindo o homem.

— Tá bom! — tomou o Mestre a palavra — Eu digo. Nunca vendemos diamantes à Rainha Má.

— E para quem costumam vender? — perguntou Holmes, enquanto Watson sorvia uma colher de sopa.

— Eca! Um fio de cabelo, seus anões porcos! — disse Watson, irritando todos os anões presentes.

— Sinto muito, senhor Holmes. Mas a ofensa de seu amigo nos impede de continuarmos o diálogo.

— Como ofensa? Espirram na minha cara, me dão sopa de cabelo...

Irritados os anões puseram os visitantes para fora. Watson pensou em reagir, mas o amigo o segurou:

— Calma, Watson. Já temos outra pista.

— Temos?

— Sim, vamos!

Watson saiu da casa ainda irritado por não ter dado uma lição naqueles baixinhos invocados. Mas Holmes, mais observador foi o primeiro a chama a atenção para o cabelo encontrado por Watson na sopa.

— Um nojo!

— Certamente, mas olhe bem!

De fato o cabelo não poderia ser de nenhum dos anões. Era longo e claro demais.

— Será de Branca de Neve?

O reino em que Branca foi morar após o casamento com o príncipe não era muito longe dali. Em menos de três horas os dois ingleses chegavam ao castelo e eram recebidos pela belíssima princesa.

— Em que posso ajudá-los?

— Senhora, por acaso visitou os anões recentemente? Sabemos que alguém comprou um diamante deles...

— Não, desde que me casei não os vi mais.

— Hum! E será que esse fio de cabelo não é da senhora?

Branca pegou o fio e o examinou por um tempo.

— Detetive. Isso não é fio de cabelo. É crina de cavalo — respondeu a princesa nervosa.

— Por que a senhora está nervosa?

— Por nada!

— Acaso conhece um cavalo assim?

— Talvez. O cavalo do príncipe encantado do príncipe... Mas não. Ele nunca me trouxe diamantes.

— E onde está o príncipe?

— No Brasil. Mas detetive...

A dupla de detetives não esperou que a princesa concluísse sua fala. Ainda no final daquela noite, pegaram um avião para o Rio.

Na tarde do dia seguinte desembarcaram no Brasil. O delegado responsável pelo crime os esperava no saguão do aeroporto.

— Alguma novidade, senhores?

— Mais ou menos — respondeu Holmes — Acaso já ouviu falar de cavalos encantados?

— Sim. Mas não vivem bem aqui. Cá preferimos animais de tração, a mula sem cabeça ou o boi tatá.

— Sabia que o marido da Branca de Neve está no Brasil?

— Claro. Veio para o carnaval e ficou um pouco mais. Está num hotel aqui perto.

— Pode nos levar lá? — perguntou Holmes já entrando no carro do policial, sem que esse pudesse recusar.

Mas nem precisaram chegar ao hotel para encontrarem o príncipe. O príncipe sobre um belo cavalo branco desfilava pelas praias cariocas.

— Alteza, queremos falar com o senhor!

— Quem são vocês?

Holmes apresentou a si, a Watson e o delegado.

— O que querem de mim?

— É sobre o diamante que sua alteza deu à Rainha Má! — Holmes não tinha certeza absoluta de sua afirmação. Mas conhecia as pessoas e diante de afirmações eram mais difícil mentirem.

— Bem, foi só um presente...

— Vocês eram amantes?

— Por favor, não falem nada à Branca!

— O senhor traiu sua esposa com a madrasta dela? — perguntou Watson repleto de sua moral vitoriana.

— Ora, cá entre nós, o espelho tem mal gosto. A Rainha é muito melhor do que a Branca de Neve.

— Quando a viu pela última vez? — perguntou o delegado que se sentia completamente avulso na investigação.

— No mesmo dia em que ela morreu. Eu dei a ela o diamante e depois ela foi arrumar-se...

— Em frente ao espelho mágico?

— Evidente. Ela só confia na opinião daquele espelho idiota.

— Sabe onde ele está?

— No mesmo hotel em que a rainha estava hospedada.

No quarto da rainha, uma fênix depenada estava jogada sobre o sofá coberta por uma pele de lobo mau. Certamente fora dela que saíra as penas deslumbrantes que fantasiaram a rainha no desfile. Mas quem teria traficado essa ave tão rara? Do outro lado, o espelho olhava a todos esnobemente. Holmes aproximou-se do objeto, mas antes que pudesse perguntar qualquer coisa o espelho se adiantou:

— Já sei o que vai perguntar: e não sei quem matou a Rainha.

— Mas você não é aquele que tudo sabe?

— Claro que não. Esse é o Google.

— E você não viu nada naquele dia? — perguntou Watson.

— Vi.

— O quê?

— As belas mulatas do desfile. Sabem como gosto desse lance de “as mais belas”. Agora, se me derem licença, vou assistir a corrida de unicórnios. Fiz algumas apostas e...

— No Brasil? — perguntou o delegado que curtia os ilegais jogos de azar.

— Sim. Agora se me dão licença...

Holmes e Watson saíram cabisbaixos. Nunca tinham entrado em um mistério e não o resolveram. Mas desse eles tinham desistido. Na manhã seguinte partiriam de volta para Londres.

Porém, nem bem amanheceu e o delegado de polícia chamou a imprensa e apresentou o assassino: o caçador!

— Mas como descobriu que foi ele, delegado? — perguntou Holmes, magoado por não ter sido ele quem desvendara o caso.

— Elementar, meu caro Holmes! O senhor mesmo disse que o disparo pela precisão e distância foi feito por algum atirador hábil. Mas quem nos contos de fada teria tanta precisão? Somente o caçador. Além disso, o tráfico de animais mágicos: cavalo encantado em copacabana, corrida de unicórnios, fênix com pele de lobo mau... Somente um caçador desesperado para presentear sua amante gananciosa poderia fazer isso com tanta facilidade.

— Mas por que ele matou a rainha?

— Ciúmes, caro Holmes! Ao ver o diamante dado pelo príncipe à rainha, desconfiou que ela o traíra e pôs fim a vida dela.

Holmes teve de aceitar, o detetive fora brilhante e fechara todas as pontas do mistério. Com o orgulho ferido, o detetive voltou no final da tarde para a Inglaterra. Magoado, Holmes ainda teve tempo de fazer uma enorme banana para o Brasil. Também ele passaria a desprezar aquele país.

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¹ Texto produzido para o Desafio dos Escritores, cujo tema era reler um conto infantil com base na vilã Odete Roitman de Vale Tudo.

Rangel Luiz
Enviado por Rangel Luiz em 18/11/2012
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