(O Corvo, Princesas Desencantadas, Fadas Fugazes e Outros Desencontros...) A Princesa e um Desencanto...

Como nos conta o conto, antes do sol nascer, bem antes mesmo dos primeiros e pálidos fulgores da aurora, Cristabel, subitamente - como num susto - acordou... sonhara novamente o mesmo estranho sonho – que, de tão estranho, era quase um pesadelo... já era a terceira vez que sonhava-o, devia querer dizer algo! Olhou para o seu marido, adormecido ao seu lado, e pensou que ele certamente saberia o quê... o Rei era sábio... ...Rei... ...poucas vezes se referia à ele como Rei, mas era isso o que Carlos era, um Rei... o que levava Cristabel à uma pequena e cinzenta nuvem de descontentamento... seu marido era o Rei, mas ela não era a Rainha... não nasceu de nobres e, segundo as leis, a Rainha deveria sair de um berço nobre... portanto, Cristabel casou-se com um Príncipe, por isso era Princesa... mas, por ser filha de um vendedor de verduras, jamais seria uma Rainha... seria – para todo o sempre – Princesa Cristabel, A Encantada!.. ...Encantada... título que era dado às plebeias que se casavam com nobres... um meio de torná-las aparentemente especiais... “-Vejam Cristabel! A filha do feirante que casou-se com o Príncipe! –Á! Mas ela é encantada! Nós nunca teremos esse destino!”... um meio de desencorajar esse tipo de casamento... de evitar que o sangue “azul” se misturasse ao tão comum “vermelho”...e, para evitar que essa “contaminação violeta” se espalhasse irremediavelmente pelos mais altos escalões do Reino, as leis – sempre elas – determinavam que o filho do Rei sempre nasceria Príncipe, mas um Príncipe deveria nascer da Rainha para tornar-se Rei...

E Cristabel não era Rainha, e ainda não tinha dado filhos à Carlos... em três anos de casamento, esperou seis filhos, destes, perdeu cinco e um nasceu morto... Ela temia que o Rei procurasse consolo em outros braços... essa possibilidade lhe dava calafrios, pois ele poderia anular seu casamento com Cristabel – que não lhe dava filhos – e se casar com outra – que, além de mais fértil, lhe garantiria um filho que pudesse ser seu herdeiro, se fosse uma mulher da Nobreza... o que fez Cristabel pensar em Alicia, Rainha de um reino vassalo... viúva, bonita, elegante, mãe de três filhos e que tem se aproximado perigosamente de Carlos, com intenções óbvias... ...que excelente maneira de terminar seu conto de fadas: devolvida e desonrada... ...Cristabel queria tomar uma atitude quanto à isso, só não sabia o quê! Achava que o sonho fosse a resposta... tinha, apenas, que interpretá-lo... mas, como?

Os primeiros raios-de-sol da manhã iluminaram o rosto de Cristabel, trazendo-lhe o consolo da lembrança de sua primeira manhã como princesa, logo após sua noite de núpcias, quando o dia raiou tão belo quanto agora... isso lhe trouxe determinação... e precisava de tantas forças quanto fossem necessárias...

“-Madame Salovar!” – pensou – “-A bruxa do Reino certamente não negaria à esposa do Rei a mera interpretação de um sonho!”... Madame, como era conhecida, não era uma bruxa comum – dessas que vivem em florestas ou voando em vassouras... ela era da Nobreza... “Condessa Salovar de Valiens”, na realidade... aprendeu “A Grande Arte” – como chamava – com a sua mãe, uma bruxa da floresta, por quem o então Conde de Valiens – seu pai – se apaixonara... era filha de uma Encantada... uma Encantada, como Cristabel... o que lhe deu a certeza de seu auxílio...

Valiens ficava à meio dia de carruagem... contando com a volta e mais um dia de hospedagem – uma visita tão rápida levantaria desconfianças – somavam dois dias inteiros... seria prudente ficar três?.. Cristabel precisava elaborar um bom motivo para essa pequena viagem... Carlos e ela já não eram tão próximos como no dia em que se casaram – nesses tempos, passavam dias vendo-se apenas ao anoitecer e ao amanhecer – mas ele não gostava que Cristabel se ausentasse – o Povo poderia se agitar, se algo acontecesse à sua tão preciosa Princesa Encantada... e não é prudente provocar a agitação do Povo...

Cristabel partiu três dias depois, dizendo ao marido que iria pedir auxílio à bruxa para assegurar uma próxima gravidez saudável e um filho vivo – Carlos jamais se oporia a isso... mesmo que não pudesse ser seu herdeiro, um filho era um filho... além do mais, um Príncipe valoroso, sempre engrandece um reino...

Saiu numa comitiva pequena e discreta – não fora acompanhada por mais do que o cocheiro, duas aias e meia dúzia de soldados de confiança (nem mesmo um cavaleiro a acompanhara, como era exigido pelo protocolo)... ainda era manhã, bem cedo... Cristabel passou a viagem recordando do sonho – que tornara a se repetir nas três noites anteriores – para que o contasse à bruxa em todos os detalhes – não podia esquecer-se de nada! Chegaram muito depois do anoitecer, pois vieram por um caminho mais longo, porém mais discreto do que as estradas principais – o Rei não queria que soubessem que a Princesa pedira auxílio a uma bruxa... mesmo que o Povo confiasse nela (Carlos sempre a consultava sobre o tempo certo de plantar e de colher), ainda era uma bruxa, e bruxas e Princesas jamais deviam se misturar (não era de bom agouro para o Povo)...

Ao chegar, foram recepcionados pelos os guardas do Condado nos portões da propriedade, que abriram-no sem perguntas e guiaram a comitiva até a Mansão Rosa, a casa da Condessa... lá, ela esperava a Princesa na porta... era como se sua chegada tivesse sido avisada, embora nenhum mensageiro tivesse sido mandado... Cristabel não se surpreendeu... afinal, tratava-se de uma bruxa! Ela saiu de sua carruagem e acenou para a Madame...

“-Bem vinda, Vossa Alteza!” – saldou a bruxa – “-É uma honra receber a Princesa Encantada em minhas terras!” – e, dirigindo-se à criadagem, ordenou que levassem seus pertences e acomodassem no maior quarto disponível na mansão...

“-Entre, Princesa!” – convidou a Condessa – “-Sei que está cansada da viagem, mas prefiro que conversemos agora, pois sei que também está ansiosa por respostas!”

Entraram... a Madame a conduziu até um grande salão, com uma imensa lareira – nem mesmo o palácio possuía uma lareira tão grande... pararam diante de uma porta, estranhamente forrada com veludo vermelho... então, Madame Salovar pegou em suas mãos e falou:

“-É a minha obrigação alertar Vossa Alteza de que as respostas que procura podem não ser fáceis de aceitar... nem, tampouco, trazer a solução que quer sem algum tipo de sacrifício... e, uma vez que saiba o que quer, terá total responsabilidade para com esse conhecimento, que pode colocar nas suas mãos as ferramentas para fazer o que tem de fazer... e terá de ser por você mesma, sem intermediários ou mandatários! Então, tendo dito isso, eu pergunto: Depois que eu tiver esclarecido suas dúvidas, o que Vossa Alteza fará com as respostas?”

Sacrifícios? O que aquela bruxa, nascida em berço-de-ouro, sabia de sacrifícios... Cristabel tinha nascido pobre, perdera a mãe antes mesmo de desmamar, havia passado necessidades ao lado de seu pai e irmãos, cresceu conhecendo a miséria de perto, não a miséria fútil dos poetas, embelezada pelas palavras rimadas... mas, a miséria real, aquela que pode matar... a Princesa olhou para o fogo na grande lareira e lembrou-se dos anos em que sentiu frio, dos dois irmãos que perdeu para fome e da irmã, que perdeu para a maldade... pensou em como quase tirou a vida, depois que sua paixão de infância se casou com a filha do mascate... pensou em como conheceu Carlos, o então Príncipe, que a impediu de pular de um penhasco... em como se apaixonaram quase que imediatamente... em como ele escondeu que era um Príncipe, enquanto vinha cortejá-la em segredo... em quando ele a pediu em casamento, revelando seu título e surpreendendo à todos... em como eles enfrentaram o Rei, a Corte e até mesmo o Povo, para ficarem juntos... lembrou-se do dia de seu casamento, daquela linda manhã, após sua noite de núpcias... e, sobretudo, lembrou-se de como tudo isso se dissolveu com o tempo, até se transformar em ansiedade, pesadelos, e à ameaça de voltarem todos – o pai, as duas irmãs que lhe restaram e ela mesma – à miséria... fazendo com que ela recorresse à uma bruxa... Cristabel olhou nos olhos da Condessa e disse determinada: “-O que for necessário, Madame! O que for necessário!”... a Condessa de Valiens sorriu para a Princesa, abriu a porta e entraram... antes de fechá-la, falou, como quem fala a alguém: “-Não nos incomodem!”... Cristabel não entendeu, pois não havia ninguém lá...

O aposento parecia-se com uma biblioteca circular, com assentos no centro... Madame e a Princesa sentaram-se num grande sofá, tão vermelho quanto todo resto, desde os tapetes até o teto e a mobília, em madeira ardentemente acastanhada....

“-Agora, conte-me os sonhos que anda tendo!” – pediu Madame Salovar, para espanto de Cristabel...

“-Como você s...” – perguntaria, se não tivesse sido interrompida pela Condessa...

“-Sei tudo o que preciso saber! E, pelo visto, é necessário que eu saiba como foram seu sonhos segundo suas próprias palavras!”

“-Eu não entendo mas, que seja!” – disse a Princesa, antes de começar à explicar o sonho: “-Quando o sonho começa, estou perdida em um bosque que não conheço, procurando por algo que não sei o que é, pois nunca está claro... mas, sei que preciso achar... em algum momento, eu chego em uma clareira, onde se encontra uma fonte muito bonita... então, sento-me nela para descansar e beber água, quando percebo, nesse momento, um homem – que não era um homem... não sei explicar isso – de longos cabelos negros... ele está chorando... quando pergunto por que ele chora, ele aponta para uma menina... uma menina estranha, de pele azul e vestida de violetas... ela segura um bebê no colo... um bebê com uma pequena coroa na cabeça... ela me oferece o bebê... e, quando eu o seguro no colo, vejo a minha aliança de casamento em sua boca... quando ergo olhar, eu percebo que estou na sacada do palácio, com o bebê no colo, e todo o Povo abaixo... a menina se aproxima de mim e me dá um tapa no rosto... então acordo...”

Madame Salovar pára por um instante, como se estivesse em transe... então, voltando ao normal, segura na mão da Princesa e diz...

“-Ouça, Cristabel,” – foi a primeira vez em que ela a chamou pelo nome – “antes de dizer-lhe o que quer dizer esse sonho, tenho que lhe contar uma estória... Você sabe quem foi a primeira Encantada?”

“-Mais ou menos...” – respondeu Cristabel –“quer dizer, não exatamente... me explicaram isso quando recebi o Título, mas não tudo... ela se chamava Esmeralda, não é? O que isso tem à ver com o meu sonho?”

“-Tudo! Você sabia que ela era realmente Encantada? Ela foi encantada por uma fada, ainda bebê, o que lhe deu uma grande beleza e um grande charme... o que fez com que o príncipe se apaixonasse perdidamente por ela.”

“-Uma fada? Ora, Madame, não sou mais uma criancinha, para acreditar em fadas....” – riu-se a Princesa...

“-Eu disse que poderia não ser fácil de aceitar! Mas você tem que abrir a sua mente para o invisível, pois é ele que vai lhe guiar para o seu Príncipe perdido...”

“-Meu Príncipe não está perdido! Ele morreu, no dia em que Carlos pôs aquela coroa na cabeça!”

“-Não, minha criança, ele só está dormindo... e, como num conto de fadas, você terá de acordá-lo novamente... mas, antes, você se lembra da fonte do seu sonho?”

“-Sim, - respondeu Cristabel – “o que tem ela?”

“É a fonte da Princesa! Não fica longe daqui! Foi onde o Príncipe e Esmeralda se conheceram! Você deve ir lá e encontrar-se com o ‘homem-que-não-é-um-homem’... ele lhe mostrará como achar a fada!”

“-Fada? Homem-que-não-é-um-homem? A Senhora tem ideia de como isso tudo soa absurdo?”

“-Sim, tenho! Mas, quem disse que o absurdo não é, necessariamente, verdade? Veja você, Princesa... se alguém lhe dissesse, cinco anos atrás, que você se tornaria uma Princesa de verdade você acharia um absurdo!”

“-Sim, a Madame tem razão quanto à isso! Mesmo assim, envolviam-se coisas reais, não criaturas de faz-de-conta!”

“-Então, façamos o seguinte: amanhã à noitinha, iremos à Fonte da Princesa... então veremos o que acontece, certo?”

“-Certo, não me custa um passeio!”

Fábio Dougherty
Enviado por Fábio Dougherty em 24/10/2012
Código do texto: T3949724
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