Quando Esperança morreu...
No tempo em que esperar era preciso, quase uma obrigação, cuidavam todos para que a pequena Esperança, nascida entre as mais diversas atribulações, criasse algum tipo de imunidade, algo que a fizesse forte para sobreviver mesmo quando os mais bravos guerreiros do lugar sucumbissem às provações e desistissem de lutar. Firmou-se um acordo para que mesmo entre os mais famintos, fosse a primeira a ser alimentada e embora recebesse sempre fartas porções, não era raro que vez ou outra, alguns, (especialmente os mais velhos) lhe dessem nacos generosos de seu próprio quinhão. Os mais jovens buscavam mantê-la sempre ao redor de si, seus olhos nos olhos dela, como se a espreitar qualquer intenção de fuga. Cercada de tantos cuidados cresceu forte e um tanto teimosa. Mesmo quando os mais cansados já não se incomodavam com sua presença e, a bem da verdade, chegassem a desejar que fosse insistir com outros, ela teimava em rondá-los em silêncio. Vez ou outra ouviam apenas os ecos de sua risada ou sentiam o cheiro bom que exalava dela, calmo, cálido como uma noite de verão ou sopa quente.
Toda a vida que por ali florescia era dedicada antes a mantê-la viva e, aparentemente, Esperança não tinha com o que se preocupar. Nos raros momentos em que parecia fraquejar, hesitar ou duvidar de si mesma, havia sempre alguém para reafirmá-la. Nutrida por todos e acalentada pela imensa maioria, não tardou a perceber que mantê-la viva era o modo como haviam decidido manterem-se vivos também. Consciente dessa responsabilidade passou a alimentá-los, dividindo com eles substanciosas porções de um preparado que aprendera a cozinhar, em fogo lento, com os mais experientes e a temperar com um pouco disto e daquilo, ingredientes vibrantes que colhia enquanto caminhava com os mais jovens. O elixir tinha um gosto delicado, só comparável ao das mais finas iguarias, diziam uns. Outros afirmavam sem dúvida que era rico e untuoso, semelhante à comida caseira, reconfortante e nutritivo.
Eram tantos os famintos...Curiosamente, os que lhe ensinaram o valor da paciência, passaram a exigir que os servisse sempre mais e mais rápido. Os jovens já não caminhavam, mas pediam por sabores novos, acusando-a de ter perdido a criatividade. Imersos em si mesmos, não perceberam os primeiros sinais de cansaço. Ela passava junto ao fogo mais tempo do que jamais o fizera; andava calada, não sorria e não se alimentava mais. Um dia, deixou de juntar-se a eles.
Zangados com a demora, queixaram-se de seu abandono, sua ingratidão e negligência. No caminho de volta para casa, os mais crédulos e também os que antes desejaram que se afastasse, caíam todos como moscas. Crianças, adultos, ricos, pobres, os que eram sozinhos no mundo e ainda os que tinham com quem se lamentar, iam ficando pela estrada ou se arrastando com imenso desencanto. Só quando a encontraram perceberam que haviam deixado de alimenta-la, de anima-la e de aquecê-la.
Quando Esperança morreu, não havia ninguém junto dela, nem para chorar nem para pedir-lhe que ficasse.
Raquel Domingues Pires – 13 de Outubro de 2012.