O livro dourado de capa azul ou o ato de apaixonar-se...

Certa vez, na estante de uma biblioteca universitária cheia de livros variados, uma jovem esforçou-se para alcançar um exemplar que estava na última prateleira e haja paciência, pois além de distante, estava imprensado entre outros livros dificultando ainda mais a operação de retirá-lo. Mas afinal, a jovem conseguiu realizar seu intento. Mas o que a atraíu para aquele livro especificamente?

.

Na lombada do livro estava escrito o título em uma caligrafia artesanalmente trabalhada: "Contos de um futuro próximo" de "William Shakespeare". A capa do exemplar era dourada, com ornamentos em pedraria brilhosa e possuía bordas de veludo vermelho. Parecia um livro de contos de fadas, saído dos mesmos contos. A jovem olhava com admiração imaginando ser aquele um livro raro.

.

Passado o encantamento pela capa, a jovem o levou para a mesa de leitura e começou a folheá-lo, lendo com avidez cada capítulo, cada parágrafo, cada frase. Seus olhos marejavam-se de lágrimas eivados de emoção legítima, seu coração sentia cada verso contido naquelas páginas e acelerava impetuoso, seus lábios desenhavam-se em um sorriso de felicidade e encantamento. E assim foi durante três meses, em doses diárias, semanais, sorvendo cada momento, deliciando-se com os enredos ali traçados.

.

Depois desse tempo, um dia a jovem chegou à biblioteca e desesperou-se, pois não conseguia mais encontrar o exemplar do livro que enfeitiçara seus sentidos, seduzira sua sensibilidade, cativara sua inteligência e acariciara seu bom humor. Onde estaria? Haveria alguém furtado-o da biblioteca?

.

Lágrimas de tristeza rolavam por seu rosto, a dor da perda dilacerava seu coração, estava inconformada e inconsolável, quando ao passar pela décima vez por uma mesa reconheceu a caligrafia das páginas, a marcação dos números e a textura do papel onde lera tantas histórias. Pegou aquele exemplar muito mais por instinto e quando o avaliou melhor viu que não possuía mais a capa dourada, mas apenas uma capa azul simplória, cujo título na lombada era "contos de uma verdade jamais dita, mas sentida" de autoria de "Anônimo sem Sobrenome".

.

Naquele momento seu mundo pareceu desabar. Estivera todo aquele tempo envolvida por uma "falsa obra", sem a grandiosidade shakespeareana, sem o reconhecimento literário dos grandes autores, sem uma capa que traduzisse o conteúdo que alimentara sua imaginação e paixão pela leitura durante todo aquele tempo. Fora enganada, uma raiva súbita lhe percorria as veias, sentia seu sangue borbulhar...

.

Como poderia ter-se deixado levar tão facilmente por escritos de um "sem nome"? Recolocou o livro sobre a mesa e virando as costas com desdém, deixou a biblioteca para onde jamais retornou.

.

O livro de capa azul voltou para a estante, esquecido, obscurecido pelos julgamentos, pelos atos de indiferença, pela falta de paixão sincera. Não importara quanto prazer e emoção propiciara àquela jovem leitora, pois no final era apenas um livro de capa azul e não um "William Shakespeare". Perdera seu valor, perdera seu encanto como que no estalar de dedos, na efemeridade da vida, na inconsistência de atos humanos que se esvaem com o vento de outono...

.

Tristes leitores...