Onde os relógios não se atrasam
Era uma vez, um mundo onde os relógios nunca atrasavam e as pessoas sempre sabiam para onde ir. La, as pessoas viviam a vida sem expressão, pois seus horários já estavam determinados. Um mundo triste, sem guerras, sem graça, onde a hora de nascer era programada e ajustada com a hora de morrer. La, cada pessoa nascia para viver por 80 anos. Era um lugar onde só se permitiam as mortes naturais. Viviam 20 anos para aprender, viviam 40 anos para trabalhar e reproduzir, e tinham então, 20 anos para esperar a morte. E foi aos 17 que ele conheceu a garota de bochechas rosadas.
Em um lugar em que a vida era programada, ela era diferente. O sorriso era mais vivo, como se soubesse porque sorrir. O olho sabia porque brilhar. Ele ia até ela todos os dias para conversar. Até a voz era diferente. Era macia. Ele ria como ela, nunca como ela. Não sabia porque, mas não conseguia ser como ela.
E o tempo andou, não correu e nem se arrastou, pois aquele era o mundo onde os relógios nunca se atrasavam. Eles tinham agora 20. Então eles se apaixonaram, um pelo outro. E nem isso fizeram igual. Enquanto ele sorria para o futuro, ela olhava, ainda que com seus olhos brilhantes, agora com expressão perdida, pois não via nada. E por mais que não pudesse se ver em seu rosto, ela envelhecia mais rápido. Ela era diferente, não nasceu para 80 anos, apenas para 40.
40. Metade do tempo, metade dos sorrisos, metade das lagrimas, metade de felicidades e tristezas. Ela não sabia ser igual ao resto.
Ele então jurou que viveria para mudar isso. Ele jurou que iria curar ela. Dedicaria seus anos de trabalho para ela e apenas para ela. Para salvar ela.
Ele jurou e pensou cumprir. Passou anos tentando curar ela. Ela, que em um mundo sem expressão e onde os relógios nunca atrasam, tinha o único sorriso vivo que ele realmente viu. Ela que seria a única capaz de derramar uma lágrima verdadeira.
"Não terei o luxo de sentir durante 80 anos. Não tenho tempo, tenho apenas 40 anos para sentir. Não posso deixar de sentir com força, com vontade."
Mas esse era um mundo onde os relógios nunca atrasavam, nem para ela. E o tempo veio, 20 anos depois de ouvir a promessa daquele que ela amou, amou por 20 anos como amaria por 60. Ele não pode curar ela, ninguém poderia.
Antes dela partir, ele chorou, e pela primeira vez, sentiu de verdade, chorou e implorou perdão por ter falhado. "Falhei na promessa de lhe curar, dediquei anos para você e nada consegui." chorou ele. "Não, não dedicou seus anos à mim, dedicou a uma cura. Era o que você procurava, eu só procurei você. Eu só tive você. E por isso valeu. Mas você ainda não viveu. Resta para você ainda metade da vida, viva. Não por mim, por você. Ainda à tempo, 40 anos é mais do que se imagina. Viva intensamente com calma, não supervalorize o tempo." disse ela, antes de fechar os olhos pela ultima vez. Os olhos que brilhavam como nenhum outro.
Ainda restavam a ele 40 anos. 40 anos para viver, talvez sozinho, talvez por um motivo, talvez por ele. Talvez para sorrir, talvez para chorar. Talvez para comemorar, talvez para lamentar. Mas ele sabia, eram para viver.
Pois aquele era o mundo onde os relógios nunca atrasavam.