Memórias lancinantes
"Não cruze os braços diante de uma dificuldade,
pois o maior homem do mundo morreu de braços abertos!"
(Bob Marley)
Dir-se-ia que, naquele instante imóvel, eu teria toda a razão do mundo para apertar o gatilho. Não era só um mero estuprador de criança que estava sob a mira, mas sim o fero indivíduo que, além de violentar a inocência de minha filhinha, ainda tirou dela o direito de ver a luz do dia e me roubou a razão de viver.
Naquele momento de total agitação, cada lágrima que me molhava o rosto resplandecia uma doce lembrança. Cada tremor que percorria todo o meu corpo representava uma verdadeira erupção de ódio. A vontade assaz grande de consumar o homicídio já dominava minha ignota razão.
Mas, de súbito, entre todas as cenas que se repetiam em minha mente - qual uma retrospectiva vital - lembrei-me de meu pai e de seu olhar baço. Ele, já ausente desse mundo, dizia que um homem não é digno de honra ao derramar sangue humano. Dizia ele que Alexandre Magno, Napoleão ou César não merecem em nada as honras que lhes são concedidas. Dizia ele, quase balbuciando, que um homem, ao derramar sangue, só é digno quando usa o próprio sangue para o bem de todos e, com as pálpebras inundadas, finalizava: "assim como o maior de todos os homens que morreu crucificado."
E, a partir daquela memória, comecei a perceber que, por mais que eu saciasse meu ódio, minha sedenta necessidade de vingança ao matar aquele ser nefando, minha infante querida nunca mais retornaria. Nada do que eu fizesse ali iria trazer-me a alegria de ver novamente o brilho cintilante daqueles olhinhos pretos, castos e resplandecentes.
Então, como todo bom filho, segui o conselho paterno. Coloquei a arma no chão e parti. Porém até hoje não entendo o que ocorreu logo em seguida, pois o estuprador apanhou rapidamente a arma e, quando pensei que finalmente reencontraria minha filha, o indivíduo atirou contra a própria cabeça, a sustentar um olhar merencório.
Não perco meu tempo em uma busca, que suponho ser infindável, de uma explicação para aquilo. Pois já dizia o autor inglês: "há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe nossa vã filosofia." O que eu procuro mesmo é um chão para pisar, um ar que me agrade e uma razão para minha vida. Tudo é tão vago, meus amigos, sem minha filha.
E, quando um dia Deus decidir que já é hora de eu partir, quero que escrevam o seguinte em minha lápide: "Nenhum homem é grande o bastante para derramar sangue humano."