O espírito lebracho

Ele podia ouvir o som do vento rodopiando indócil no alto da velha figueira e aquilo trouxe algum conforto.

Lembrava de quando era um garoto comum descalço e exímio apanhador de pássaros.

A dor do martírio sufocava-o e ele esquecia-se de respirar, o gosto metálico de sangue na boca.

Era para ser apenas um castigo leve, de acordo com a lei, e ele demorou a entender que ia morrer.

O céu estava azul, mas ele não ficou triste; rezava aflito aos deuses para desmaiar logo e ser levado embora, longe do sofrimento.

Hu Tianbao foi espancado na frente dos familiares por ter cometido um crime contra a honra.

Três meses atrás ele conheceu o jovem magistrado imperial recém chegado à montanhosa Fuzhou e apaixonou-se profundamente, selando o seu próprio destino.

O rapaz era bonito como Pan An e forte como um tigre branco, o cabelo longo amarrado e preso em forma de rabo de cavalo.

A tradição do povo do sul respeitava o amor pelo mesmo sexo e casamentos de homem com homem ainda ocorriam em cidades do interior,longe dos olhos das autoridades; os noivos não dispensavam os seis rituais e as três xícaras de chá.

Nos últimos tempos, porém, o mundo havia mudado.

Um homem de elevada posição,em especial, devia agora ocultar seus desejos, considerados licenciosos e imorais, e Hu Tianbao sabia disso.

No início ele resistiu ao charme encantador do Oficial.

E em todas as ocasiões nas quais se pegava pensando no magistrado Hu afastava gentilmente aquela inquietação na alma, como quem espanta uma mosca azul de perto de si.

De noite agarrado ao travesseiro,entretanto,Tianbao chorava; o coração atormentado por amor.

‘’Que mal há se eu só olhar para ele?’’

Perguntou-se Hu.

E foi assim que ele começou a acompanhar de modo discreto o Oficial.

O rapaz tinha a voz grave e poderosa nos tribunais; Hu sentiu os joelhos tremerem, um fogo assomou o peito, o rubor subiu à face.

Logo sua presença insistente se fez notar, chamando a atenção de algumas pessoas, e ele teve medo dos boatos e fofocas, mas ninguém se atreveu a falar nada.

Um dia o magistrado foi à casa dos banhos e Hu Tianbao,num arroubo, perdeu o controle de si, abandonou-se ao desejo;deu um jeito de enfiar-se lá dentro e espreitando o Oficial, viu ele nu, a pele de lótus, os músculos de dragão,as coxas torneadas.

Hu observava o magnífico rapaz, enlevado, e um sorriso abriu-se no canto da boca.

Bruscamente o magistrado enfim tomou conhecimento da sua pessoa.

Espantado,interrogou a Hu Tianbao, cheio de suspeitas; não sabia dizer qual delas lhe desagradava mais.

Hu negou-se a responder, o semblante fechado.

Foi trancafiado na prisão por ordem do Oficial e decidiu então confessar seu crime.

‘’Senhor eu cometi um delito de atentado ao pudor contra a sua nobre pessoa.

Eu não consigo esquecer o seu rosto, embora saiba que não tenho nenhuma chance com você.

Tampouco consigo me controlar para evitar ser tão audacioso’’

A face do magistrado transfigurou-se de ódio e vergonha;ele compreendeu o que se passava.

Um insulto terrível daqueles à sua honra não merecia menos que a morte.

Hu Tianbao foi arrastado no chão de terracota.

Rasgaram suas vestes e ele apanhou como um cachorro; urinou-se, havia sangue misturado com suor em toda parte.

Escutou o murmúrio do povo, chamando-o de ‘’lebracho’’, depreciativo e debochado, tudo isso diante de sua mãe e avó.

Naqueles dias os amantes de rapazes e adeptos do amor da ‘’manga cortada’’ eram conhecidos por sua má fama e muitos nomes impublicáveis, e com freqüência comparados a coelhos e lebres lascivas.

A escuridão enfim caiu sobre Hu e ele foi levado à mansão dos mortos.

Hu Tianbao levantou tristemente o olhar para lorde Yama, o senhor do mundo subterrâneo.

Sentado no trono negro, envolto em vestimentas rubras, ladeado por dois mastins de quatro olhos, lorde Yama encarou Hu.

O espírito de Hu se sentiu desamparado e resignou-se com sua sina, mas o senhor da morte apenas riu.

-Lebracho, teu crime foi cometido por amor.

E no amor não existe castigo.

Os outros juízes do submundo riram e Hu percebeu surpreso, que não estavam zangados com ele.

Lorde Yama disse:

-Espírito lebracho, eu te nomeio ‘’Da Ye’’(pai e senhor) dos homens que amam outros homens.

Hu Tianbao renasceu então sob a forma de uma divindade padroeira do amor do mesmo sexo e ascendeu à sagrada montanha Kunlun.

Casou-se com um jovem celestial tão bonito quanto uma estrela e apareceu em sonhos aos anciãos de Fuzhou.

‘’Vocês devem construir um templo para mim, e queimar incenso em minha homenagem.

O lorde do submundo me atribuiu a responsabilidade de governar os assuntos da paixão entre homens’’.

E daquele momento em diante um pequeno templo oficial foi erguido próximo a uma figueira; no interior do santuário, a imagem de Hu abraçado ao seu consorte celestial encorajava os amores masculinos proibidos.

Bastava rezar para ele em segredo e depois esfregar um pedaço de tripa de porco e açúcar na boca do ídolo.

Baseado no conto sobre ‘’Tur Er Shen’’ que aparece na coletânea do ‘’Zibuyu’’ (O que Confúcio não diz), do poeta e erudito da Dinastia Quing Yuan Mei