ZÉ DO TIRO E O PÉ-DE-GARRAFA
Eu era ainda pequeno quando meu pai, certa noite, após o jan tar, como era costume, contou-nos esta história fantástica, que aconteceu com um caboclo que morava com a família lá nos confins de Mato Grosso, em um pequeno sítio.
Seu nome ao certo não se sabia porque naquele fim de mundo isso pouco importava; era conhecido apenas como Zé do Tiro, pois era um exímio caçador e dificilmente errava um alvo. Meu pai mesmo não o conhecera, mas quem lhe contou essa história jurava de pés juntos que era conhecido do Zé.
Esse Zé do Tiro era um homem de estatura mediana, forte e de hábitos abruptos, próprios das pessoas que nascem e crescem na roça. Vivia do que cultivava no sítio, criava algumas galinhas, bodes e cabras, além de três vaquinhas magras e de um boi preto. Possuía também um cavalo que lhe servia de transporte quando ía ao povoado abastecer-se e vender algum produto da terra.
Mas, do que o Zé do Tiro gostava mesmo era das caçadas. Essas sim, lhe tomavam boa parte do tempo. Para ele, caçar era um vício, quase como uma doença; mesmo quando não tinha a menor necessidade de carne, lá ía ele mata adentro acompanhado de seu cachorro, levando a carabina ao ombro, facão e faca na cinta e o velho e surrado embornal à tira colo, com as munições, fumo e palha de milho e o binga; no outro ombro levava uma cabaça com água. Às vezes ele saía cedo e só voltava a noitinha, passava o dia todo caçando e ía muito longe na floresta.
_Um dia ocê inda se perde e se encontra com o Pé-de-Garrafa homi! num sei pra quê ocê qué caçá tanto! Tá cheio di carne no varar! _ ralhava com ele a mulher, ao que o Zé do Tiro respondia:
_ Num seja besta muié! Essa coisa de Pé-de-Garrafa num inxiste porque eu nunca vi, e se eu vê eu queimo no chumbo. Demais essas mata é meu terrero, num tem como eu me perdê!
Assim vivia Zé do Tiro e assim os dias passavam, com a pachorra de sempre.
Um dia Zé do Tiro se levantou cedo, como era seu costume, às quatro da madruga, tomou seu café meio amargo, tirou o leite das cabras e das vacas, tratou de outros animais e depois ficou por longo tempo sentado no mourão do curral, matutando. Depois disse consigo:
_ Qué sabê duma coisa? Eu vou é caçá. Tô cum pressentimento que hoje eu vô derrubá uma anta das grande!
Levantou-se, resoluto, fez os preparativos, cuidou de mais algumas coisinhas por ali e, ainda não eram oito horas da manhã, quando Zé do Tiro se embrenhou na mata sob os protestos da mulher que, indignada, dizia-lhe:
_ Ô Zé, o dia nem amanhceu direito e ocê já vai caçá de novo homi?! Será que ocê num enjôa não?! Cum tanta coisa pra fazê e ocê gastando tempo cum essa porcaria de caçada! Tomara que ocê encontra o Pé-de-Garrafa, procê aprendê...!
Mas Zé deu de ombro e lá se foi, levando consigo seu cachorro, a carabina de dois canos e outros apetrechos de sempre. Como ía ficar todo o dia na floresta levava também farinha e um pedaço de carne seca.
_ Si eu encontrá cum esse tar de Pé-de-Garrafa, vô levá o coro dele pra muié fazê de tapete; aí ela vai intendê que eu sô o Zé do Tiro e que num tenho medo di bicho que inxiste e nem de assombração. Resmungava consigo e ria da crença de sua mulher na existência do Pé-de-Garrafa.
Há um ditado dos mais velhos que diz que quando alguém não atende a um conselho, o conselho o atende.
Depois de perambular bastante pela floresta, ele ainda não havia matado nenhuma caça. Já passava das duas horas da tarde e ele começava a fazer o caminho de volta.
De repente, um grito ecoou ao longe na mata, ao que o Zé respondeu pensando tratar-se de algum caçador que estava perdido, mas à medida que respondia aos gritos, os mesmos pareciam mais próximos.
_ Num sei porquê esses caçadô de meia tigela inventa de ir muito longe, depois num sabe vortá. Reclamava.
Zé do Tiro não conhecia a história do Pé-de-Garrafa, porque sempre que alguém começava a falar desse bicho ele saía de perto, irritado, pois não acreditava que esse monstro existisse mesmo. Para ele tudo não passava de crendice e folclore. Por isso mesmo ele não sabia que os gritos, parecidos com os de gente, era a forma como o Pé-de-Garrafa atraía os caçadores, seringueiros e poaieiros desavisados que se distanciavam muito.
Quando os gritos ecoavam já bem perto, o cachorro de Zé do Tiro saiu-lhes ao encontro; porém, não demorou muito e voltou em disparada, com o rabo entre as pernas ganindo de medo, passou por ele e sumiu na mata.
_ O que será? _ pensou o Zé.
_ Num sô fio de pai assustado pra corrê sem sabê do quê.
Assim pensando, escondeu-se atrás de uma palmeira de babaçú e ficou esperando, pronto para atirar.
De repente, Zé do Tiro ficou petrificado com o que via, seu coração quase saía pela boca e suas pernas tremiam sem parar; ele perdeu as forças de tanto medo. Estava, a pouca distância dele a criatura mais aterradora que já havia visto. Um monstro enorme, tinha dois metros e meio de altura mais ou menos; forte como um touro, todo peludo desde os pé até a cabeça. Assemelhava-se a um homem; seus braços eram enormes, seus olhos grandes e vermelhos, sua boca com dentes imensos, era pavoroso; todo preto, rosnava como um tigre e se locomovia sobre uma única perna, mas com uma agilidade espantosa; seu pé era grosso e redondo, como o fundo de uma garrafa, peludo e forte. O bicho exalava um cheiro insuportável.
Zé do Tiro parecia não acreditar naquilo, pensou em correr, mas já era tarde para isso. Em apenas dois saltos o monstro estava em sua frente, rosnando e olhando assustadoramente. Protegido pela palmeira de babaçú o Zé observava seus movimentos. Lembrava-se agora de sua mulher lhe dizendo: _ Um dia ocê inda se encontra com o Pé-de-Garrafa.
_ Deve de sê castigo de Deus. Pensava ele e pedia para todos os santos o ajudarem e fazia mil e uma promessas à Nossa Senhora das Graças.
Repentinamente, o monstro abraçou a palmeira na tentativa de pegar o Zé, que se afastou rapidamente, saltando para trás; essa cena se repitiu muitas vezes durante um bom tempo até que, num movimento mais rápido, o bicho conseguiu fazer com que o Zé do tiro saísse detrás da árvore e avançou para ele com toda fúria. Nesse instante, Zé disparou dois tiros de uma só vez na altura do abdomem do monstro, que se afastou em dois saltos para trás, mas não pelo efeito do tiro e sim porque pareceu assustar-se com o estrondo; na verdade o chumbo nem feriu aquele couro grosso e cabeludo.
Zé mal teve tempo de recarregar a arma e o bicho já estava novamente junto dele, mostrando-lhe aquelas mãos e unhas enormes. Quando apontou a arma novamente para a fera, foi surpreendido por um safanão na espingarda que o fez também rolar pelo chão.
_ Agora eu tô perdido! Pensou, pois a arma lhe escapara das mãos.
Então, mais que depressa, o Zé sacou a peixeira e o facão das bainhas, mas na primeira tentativa de defesa também o facão lhe escapou da mão e voou para longe. Só com a faca e sem poder erguer-se do chão, Zé do Tiro esquivava-se como podia das investidas do bicho. Ouvira dizer certa vez, que o Pé-de-Garrafa começava a devorar as suas prezas a partir dos pés, por isso, ele preferia continuar agachado, mesmo porque a fera não lhe dava o menor tempo para erguer-se.
Por ter apenas uma perna o Pé-de-Garrafa não podia agachar-se muito para agarrar a preza e, percebendo essa desvantagem do bicho, Zé do Tiro mantinha-se meio ajoelhado para não ser pego facilmente; afinal, com a força que demonstrava aquele animal, se o agarrasse seria seu fim.
E cada vez mais o monstro urrava e investia sobre o Zé, de forma pavorosa, mas ele ora desviava para um lado, ora para outro e ora dava-lhe na cara com o chapéu e rolava pelo chão. Num dado momento o bicho desferiu-lhe uma braçada potente, buscando atingir o Zé na cabeça, mas ele aparou-lhe o braço com a faca que, apesar de ferir o monstro quebrou-se em pedaços deixando o Zé desarmado e o bicho mais bravo ainda, disposto a devorá-lo.
Aqueles eram os piores momentos da vida do Zé; via a morte de perto, lutava com ela.
O cansaço já tomava conta do seu corpo, ele mal podia esquivar-se daquele monstro horrendo que queria, a todo custo, devorar o Zé. Na verdade o Zé estava já quase se entregando de tão cansado, só por puro instinto de sobrevivência é que ele encontrava força para se defender.
A tarde já caía e começava a escurecer na floresta; deviam ser mais ou menos quatro horas e o Zé não podia nem piscar o olho senão seria pego; seu chapéu e sua camisa estavam em frangalhos, faltava-lhe o fôlego e aquela fera incansável não desistia.
Por pura graça divina, ao rolar pelo chão para escapar das garras monstruosas, Zé do Tiro tropeçou em sua carabina e a agarrou imediatamente. Ainda bem que havia conseguido recarregá-la antes que o monstro lhe tirasse das mãos porque ele já não sabia para onde havia ido o embornal com as munições. De posse da arma, estudava, entre um esquivo e outro, o melhor ponto para acertar aquele animal terrível, pois da primeira vez o chumbo nem penetrou no couro e, se falhasse desta vez, então, estaria acabado, seria devorado pois não tinha mais forças.
De repente, numa investida mais ousada, o monstro abaixou-se mais para agarrar o Zé, mas ele aproveitou e em menos de um segundo enfiou rapidamente os canos da carabina na boca do bicho e puxou os dois gatilhos de uma só vez. Com o tiro duplo mo animal mordeu os canos da espingarda com tanta força qu ficaram achatados; depois soltou um grito ensurdecedor, espargindo sangue para todos os lados e em seguida olhou para o Zé com aqueles olhos odientos. Gritando horrivelmente saiu em disparada pela mata pulando em sua única perna.
Zé do Tiro não quis nem saber se o monstro iria morrer ali ou não.
agarrou a carabina amassada, achou o facão com o embornal e saiu em desabalada carreira, rumo a sua casa.
Quando cheou, já a noitinha, estava sem fôlego, sem fala e sem forças; aquele cheiro insuportável estava impregnado nele. Zé do Tiro precisou da ajuda da mulher para se lavar. Ficou sem fala por mais de quinze dias e só depois de um mês é que voltou a ouvir de novo e conseguiu sair do quarto para, então, contar o ocorrido e como se salvou.
Desde esse dia nunca mais Zé do Tiro saiu para caçar. Na verdade o trauma foi tamanho que mesmo à roça, que era perto da casa, ele foi mais sozinho.