O GATO E O PASSARINHO
O gato de nossa casa é um dos mais bonitos animais da espécie. Trata-se de um siamês de pêlo liso, comprido e brilhante, de cor marrom dourada, mesclada de preto no lombo e na ponta da cauda. Tem os olhos azuis tal qual uma loura sueca e bigodes de fios brancos acetinados. Um gato! Ele foi um presente de nossa vizinha, que nos entregou ainda novinho, com cerca de dois meses de vida. Ele cresceu logo. Um mimo. Mimo, este é o seu nome. É um gato dócil, apesar de não gostar muito de brincar com gente. Um de seus hábitos prediletos é deitar-se no nosso colo ou no chão, aos nossos pés, roçar nas nossas pernas e se deixar acariciar com massagens nas costas. Algumas pessoas dizem que ele é mestiço por apresentar o pêlo mais comprido do que o comum para o gênero. Talvez por causa dessa mistura é que ele parece ter desenvolvido a característica de caçador, fato que foi evidenciado logo que se tornou adulto. Foram inúmeras as vezes em que o flagramos, armando bote contra pardais que freqüentam as árvores frutíferas do nosso quintal. E muitas dessas investidas tiveram pleno sucesso, pois as penas restantes denunciavam o “crime”. Paralelamente, o nosso Mimo circulava pelas redondezas à caça de alimentos mais substanciosos - presumíamos - pelo fato de, freqüentemente, ficarem restos de ratos deixados nas cercanias da nossa casa. Essa prática, pela freqüência, tornou-se nociva para o animal assim como para todos de casa. Descobrimos que os resultados das caçadas de Mimo eram colhidos num canal de escoamento a céu aberto, próximo à nossa residência. Outros fatos que também tínhamos que aturar eram as constantes brigas com outros bichanos da vizinhança, talvez pela majestade do nosso bonito exemplar, que devia fazer imenso sucesso entre as gatinhas da área. Por esse motivo, durante alguns dias pensamos em doar o Mimo para amigos que morassem longe de tais fontes, mas logo descartamos essa possibilidade porque o nosso gatinho é realmente um “mimo”.
Quando conversávamos com as pessoas sobre essa atividade natural do gato, que desprezava a ração de carne ou peixe pelos pestilentos camundongos, muitos foram unânimes que o melhor remédio para corrigir esse costume era a castração pura e simples.
A primeira vez que ouvi tal recomendação, o Mimo estava deitado junto aos meus pés. E, assim como ele, que me fitou com o cenho cerrado, talvez já sentindo a lancinante dor - não só da incisão, mas da perda irrecuperável - também senti um frio cortante no baixo ventre, como se tal decisão também me atingisse. Acho que Mimo estava entendendo tudo o que se estava decidindo a seu respeito. Não sei se era só nossa impressão, pela violência que tal prática impinge, mas notei que durante o período em que conjeturávamos sobre a castração do bichano, este passou a ficar mais em casa, reduzindo as suas investidas aos ratos. Talvez fosse só impressão.
Foram oito dias de convalescença na clínica veterinária. Ele voltou triste e arredio e, muitas noites a seguir, ouvimos os seus miados chorosos, como que reclamando a perda lamentável.
Aos poucos, foi arrefecendo os seus impulsos masculinos e as suas caçadas aos esgotos. Passou a solicitar mais as rações e o leite matinal. À noite, porém, dava seus passeios, talvez somente para satisfazer o seu instinto felino, mas não se viu outra vez quaisquer vestígios resultantes de suas explorações noturnas. Outro aspecto também observado foi a sonolência que tomou conta do nosso bichano durante muitos meses. A preguiça era tanta que os pardais faziam a festa no quintal, entrando até na nossa área coberta externa, aonde vinham sempre comer resquícios de comidas e até a ração do próprio Mimo. E ele, passivamente, apenas observava as aventuras dos passarinhos. A audácia dos pardais era tanta que um deles, talvez um filhote desavisado, desconhecendo o perigo que representava um felino nas proximidades, começou a não se incomodar com a presença do gato deitado próximo ao comedouro cheio de ração, e aos poucos foi arriscando suas investidas à cata do delicioso e fácil alimento. Os outros pardais não se arriscavam tanto quando o gato estava por perto. O Mimo apenas olhava o intrépido pardalzinho, que circulava no raio de ação de suas patas. Algumas vezes fazia menção de atacá-lo, movendo uma pata em sua direção, mas desistia do seu intento ao menor sinal de afastamento daquele que já se podia chamar de amigo. Parecia brincadeira de criança. Com o tempo, o pardalzinho começou a simplesmente desprezar a presença de Mimo, muitas vezes vinha até fazendo alvoroço no seu vôo rasante, pousava em cima dele e caminhava até o comedouro sobre o lombo do preguiçoso felídeo. Inúmeras vezes os vimos brincando, com o gato tentando pegar o pardalzinho em pleno vôo, mas logo desistia, e o pardal pousava e caminhava sobre ele e ficava a “fuxicar” o seu pêlo com o bico, como que catando pulgas. Enquanto isso, os outros pardais iam se aproveitando do descuidado gato e enchiam os papos com a ração, deixando os rastros resultantes da farra e que são frutos do adjetivo peculiar ao seu gênero. Notava-se, ainda, que o nosso Mimo já estava tão acostumado com a presença diária do pássaro no horário matinal, que só se recolhia ao seu local de dormida, após a sessão de brincadeiras que realizava com o simpático passarinho. Vez por outra observamos o Mimo impaciente ante o atraso do companheiro de folia para as estripulias diárias. Era uma relação de amizade sem censuras. – Ah, se as pessoas fossem amigas como aqueles dois - pensávamos. Foram vários meses de feliz relacionamento, tanto que o pardalzinho já se tornara adulto, mas para Mimo ele continuava o mesmo inocente amigo de antes. Um dia, viajamos todos e esquecemos de abastecer a vasilha com a ração de Mimo. Dois dias depois, ao retornarmos, encontramos o Mimo deitado ao lado de restos de penas de pardal, próximo ao seu comedouro. E o pardalzinho, o amigo do gato, não apareceu mais...
Obs (Republicado com novo título)