A Arca de Absalão; ou A Verdade Sobre a Arca de Noé
Absalão era um homem que se podia conceituar como justo.
Era um estudioso, e quando repetia aos sábios que os lados de um quadrado eram iguais, tornava-se realmente difícil entendê-lo.
Dos seus 60 anos de idade, a maior parte havia dedicado à arte da guerra, na qual eram aplicados conceitos técnico-científicos. Particularmente, era apaixonado pela organização das forças de combate e no uso de armas avançadas, tais como lança de grande alcance, setas orientadas e a última novidade bélica: o lançador de pedras!
Era um verdadeiro líder.
Com o avanço da idade e o correspondente aumento da sabedoria, Absalão também se preocupava com assuntos humanos os quais, porém, o perturbavam um pouco. O Criador já não era reverenciado como no seu tempo; os filósofos eram ridicularizados; havia uma inversão completa na política, acreditava-se mais na energia e estultice dos jovens do que na ponderação e sabedoria dos mais idosos. Um dia andava Absalão pela ravina quando de repente, -
PUFF! - uma nuvem de fumaça apareceu, acompanhada de uma voz tonitruante:
- ABSALÃO!!!
Absalão prostrou-se. Só podia ser o Criador! E era! Em Pessoa!
-ABSALÃO! -voltou a voz- NÃO ESTOU CONTENTE COM OS HOMENS. ESTÃO POLITIZADOS, GUERREIAM ENTRE SI E SÓ DEFENDEM INTERESSES PRÓPRIOS. O TRINÔMIO ADÃO-EVA-COBRA DEU NISSO... FAREI CHOVER POR 40 DIAS E 40 NOITES ATÉ COBRIR A TERRA DE ÁGUA, O QUE SERÁ CONHECIDO COMO DILÚVIO... MAS QUERO QUE UMA NOVA HUMANIDADE NASÇA DE UM HOMEM INTELIGENTE, PRÁTICO E COM OBJETIVOS. VÁ E CONSTRUA UM BARCO PARA VOCÊ E SUA FAMÍLIA E COLOQUE NELE UM CASAL DE CADA SER VIVO. VOCÊ TERÁ 4 MESES PARA ESTE EMPREENDIMENTO. MEU CONTATO COM VOCÊ SERÁ O ARCANJO GABRIEL, QUE COSTUMAM CHAMAR DE MINISTRO DE DEUS. PUFF!!-
E a nuvem se foi...
Absalão ergueu-se lívido. O Criador o elegera gerador de uma nova humanidade! Todas as suas idéias seriam propagadas para o futuro. Absalão pouco conhecia de barcos ou de navegação mas nem pensaria em discutir a grande oportunidade que o Criador lhe oferecera. Mas precisava resolver um problema técnico-científico - construir um barco enorme e objetivo! Absalão provaria que era capaz de salvar a humanidade com a sabedoria dos mais velhos e a energia dos mais jovens.
Rebuscou a memória.
Conhecia um engenheiro naval chamado Neul, ou seria Neus? Não! Noé! Sim, era este o nome! Noé poderia construir-lhe o barco. Ele, Absalão seria o coordenador do Empreendimento e Noé seria o técnico.
Famoso por sua objetividade, logo já conversava com Noé.
- Meu caro, quero encomendar-lhe um barco - e dos grandes!
- Perfeitamente, meu senhor, mas de que tipo e para que espécie de carga e navegação?
- Ora, Noé, isto são detalhes. É um barco para grande carga e águas pesadas. Quero fazer uma longa viagem com a família e levarei tudo.
- Esta bem, senhor, aqui mesmo temos floresta com madeira de densidade de 0.8 g/cm3 em quantidade suficiente.
Se a carga é grande, faremos o centro de gravidade baixo e o centro de empuxo alto, de modo a obter grande estabilidade. Acho que com 10 bons carpinteiros, que consigo arranjar na aldeia, e um mês de trabalho duro, estaremos com o barco pronto.
- Perdão, Noé, não queria interrompê-lo, mas como pode ter certeza desta densidade da madeira?
Sabe se os homens são realmente competentes?
Se trabalharão com eficiência?
- Senhor, a unidade a que me referi chama-se densidade, e os homens são carpinteiros, já meus velhos conhecidos...
- Não, não, Noé, disse Absalão com um sorriso de condescendência. Este empreendimento é grande e a co-ordenação é minha. Serei o presidente e você será o técnico. Combinado?
- Combinado, senhor, o barco é seu e quem manda é o senhor, replicou Noé, dando de ombros. Levantou-se para
cumprimentar Absalão e retirou-se.
Absalão ficou pensando: "Puxa, não havia pensado nisso!
São precisos carpinteiros para cortar as árvores e construir o barco! É preciso selecionar bem estes homens, pois o Empreendimento não pode falhar. Ah! Já sei! Meu auxiliar na Cruzada Santa das Três Pedras fez uma ótima seleção de lanceiros. Roboão é o seu nome. Hoje está selecionando beterrabas para uma indústria, mas virá trabalhar comigo por um salário um pouco maior.
- Mas, chefe, se o técnico disse 10 carpinteiros precisaremos de no mínimo 15! O senhor sabe, faltas, doenças, férias, turnover... e para selecionar bem 15 homens temos que explorar um universo de pelo menos 150 a 200 candidatos. Levarei algum tempo para isso e precisarei de auxiliares.
- Confio em você, Roboão. Já fez um bom trabalho para mim e tem grande experiência com Pessoal.
Real-mente achei Noé muito simplista. Convide quem você achar melhor para realizar o recrutamento e seleção dos homens para a tarefa. Mantenha-me informado.
- Certo, chefe, sairei em campo imediatamente. Obrigado pela confiança. Nesta noite Absalão dormiu satisfeito. Em menos de 24 horas após receber a missão do Senhor já tinha o técnico e
o especialista em pessoal. Dormiu embalado pela algazarra que ainda faziam os 20 membros de sua família na festa de inauguração do Empreendimento.
O segundo dia amanheceu tranqüilo e claro. O Presidente foi acordado por Roboão com boas notícias:
- Chefe, já tenho cinco homens anunciando no povoado - é a fase de recrutamento. De acordo com o mercado estamos oferecendo cinco dinheiros.
- Mas, Roboão, não será pouco? Minha mulher ganha 9 dinheiros cosendo para fora...
- Deixe comigo, chefe. No recrutamento da última batalha pagamos 8 dinheiros para valentes combatentes, e economizamos um bom bocado. Estes são apenas carpinteiros que não podem ser comparados aos combatentes ou à sua senhora. Temos assim 5 recrutadores e 10 examinadores para a fase de seleção menos de
10 % dos candidatos esperados!
- E quanto ganharão?
- O salário desta equipe varia de 8 a 12 dinheiros pois são especialistas. Chefe, um probleminha a mais:
Não quero responsabilidade com o numerário e não sou bom de contas. O trabalho com o pessoal já é o bastante. Não acha melhor termos um homem para a gerência do Empreendimento?
- Bem lembrado, Roboão, mas não conheço nenhum e deve ser um homem de confiança.
- Chefe, se me permite, quero lembrar-lhe o Judas, que se ocupava do dinheiro das forças de combate.
- Não. Não. Roboão. Esse negócio de dinheiro com pessoal das armas não dá certo. Pensemos em outro!
Deve ser um especialista na coisa, você me compreende?
- Então, chefe, poderemos fazer uma seleção entre candidatos.
Sairei em campo.
O Empreendimento crescia de vento em pôpa. As equipe de recrutamento e seleção já estavam em plena
operação. As finanças já tinham um responsável. Mas, onde colocar esse pessoal? Absalão partiu com seu habitual
dinamismo e logo adquiriu uma grande cabana, já com divisórias e tapetes, e contratou imediatamente o pessoal da zeladoria e segurança. Eram todos velhos conhecidos das forças de combate.
Iniciou-se assim, a operação em grande escala.
- Senhor Presidente - falou timidamente a graciosa telefonista, está aqui o Dr. Noé com alguns desenhos e...
- Minha filha, já lhe disse para não interromper. Diga ao Noé que passe depois do almoço.
Absalão continuou a entrevista com o futuro gerente do material, Jacob, seu velho conhecido de carreira.
- Pois é, amigo Jacob, preciso cercar-me de gente de confiança, para o sucesso do Empreendimento. Material é uma área delicada e não tolerarei desvio de estoque!
- Certo, chefe! sabe que pode confiar em mim! Nunca sumiu uma flecha ou lança no meu tempo, mas o armazenamento de madeira exige um almoxarifado adequado. Para o controle vou precisar de alguns arquivos, armários, arquivos Cardex, prateleiras e pessoal de apoio.
-Justo, Jacob! Encomende as prateleiras na carpintaria do povoado e fale com Roboão para o recrutamento do pessoal necessário.
Neste momento entrou Cloé, a secretária executiva do Presidente.
- Senhor Presidente, acaba de chegar um relatório da Segurança, indicando certos nomes que não devem ser
contratados...Há suspeitas de que alguns não são muito confiáveis...
- Ótimo trabalho de Primus. Jamais lhe faltou a intuição! Precisamos estar alertas!
- Ah! outra coisa, senhor Presidente. o Dr. Noé telefonou novamente. Parece aflito para a aprovação de alguns desenhos.
-Ora, esse Noé! Sempre querendo me confundir com idéias de madeira, centros de fluxo...ele sabe que sozinho não posso me responsabilizar pela aprovação desses desenhos. Diga-lhe que nomearei um grupo de trabalho do barco, o GT-Bar, para dar-me um parecer. O homem é bom de projetos, mas nada entende de custos ou de administração por objetivos. Teremos tudo nos eixos tão logo chegue meu chefe de administração. Ele vai colocar ordem e método
nessa turma: Quero ver produção!
Quinze dias se passaram e o organograma proposto já se encontrava na mesa do Presidente: Uma Diretoria das Coisas (DC), uma dos Investimentos (DI) e uma de Barco (DB). O DB já havia montado um laboratório especializado para a medida da densidade da madeira, análise de fungos e cupins, e já estavam instalados os equipamentos para medir a elasticidade e flexibilidade.
Em apenas quinze dias a Administração havia elaborado as provas de seleção para arquivista e desenho naval, provas de seleção para selecionadores de pessoal de Seleção e Recrutamento, pessoal de apoio, etc...
Roboão, como um cumprimento ao chefe, havia mandado comprar uma charrete último tipo, de seis rodas e boléia
separada, acompanhada de charreteiro, naturalmente. Houve um pequeno atrito com Jacob, (chefe do material), mas como eram companheiros de batalhas, o incidente foi esquecido e contornada a auditoria. Naquela noite, o Presidente estava cansado, mas não esquivou-se de receber Noé em sua residência.
- Sr. Presidente, desculpe-me interromper seu descanso, mas o projeto já esta pronto e as pessoas do GT-Bar ainda
não foram nomeadas. O material já está especificado, mas o laboratório ainda não emitiu o laudo de aprovação da madeira e não conseguiu os carpinteiros para o corte. Se o senhor pudesse me autorizar a trazer os carpinteiros conhecidos do povoado...
- Não se preocupe, Noé. Falarei amanhã com o DB e apressarei a contratação do pessoal. Você sabe, apesar de Presidente, não posso mudar as regras da Organização autorizando diretamente seus carpinteiros. Da chefia vem o exemplo do cumprimento às normas. Não se preocupe que o Empreendimento está nas mãos de profissionais - os melhores! Boa noite, Noé.
Noé afastou-se sem entender muito bem. Havia sido contratado para fazer um barco. Agora estava às voltas com normas, instruções, exames de seleção...Balançou a cabeça. As coisas deviam ser complicadas mesmo.
Mas o Presidente era um homem capaz senão, não seria Presidente! Partiu otimista para sua cabana. Se o Presidente disse, é porque tudo vai indo muito bem.
Vigésimo quinto dia.
Manhã linda. Cloé anuncia a chegada de Roboão.
- Entre logo, meu velho. Sente-se. Aceita um leite de cabra?
- Sim, chefe. Obrigado. Por falar nisso, segundo a lei, mandei distribuir leite de cabra pela manhã e a tarde, a todos.
Já está até codificado o material para o computador. Fizemos pequenas despesas para chegar a esses resultados:
Tivemos que adquirir 200 cabras, alugar um pasto e contratar 5 pastores. Jóia, chefe! Dá 40 cabras por pastor, e só ganham 10 dinheiros!
- Você é um bicho na administração do pessoal, Roboão. Falarei ao seu Diretor para propor sua promoção na próxima vez. Como vai sua avaliação?
- Realmente não sei, chefe, É confidencial...
- Darei um jeito para que seja boa. Afinal, já temos 500 pessoas no efetivo, e todas passaram por você. E você ainda
conseguiu comprimir o quadro, que era de 800 pessoas! Quanto economizamos, em média?
- Nessas 300 pessoas, cerca de 4000 dinheiros, chefe - respondeu Roboão com um sorriso de falsa modéstia, e
pensou consigo mesmo: " Quem sabe? talvez fosse aumentado para 30 dinheiros!"
- Roboão, não quero incomodá-lo e nem por sombra desfazer o belíssimo trabalho de sua equipe, mas Noé me disse que ainda não foram contratados os carpinteiros para o corte...
- Ora, chefe! Noé é um sonhador! Só pensa nos seus desenhos. Já lhe expliquei a complexidade da contratação. Por exemplo: aumentamos a oferta de salário para 6 dinheiros, porém todos os candidatos foram reprovados no primeiro psicotécnico. Não adianta contratar pessoal sem aptidão psicoprofissional para o corte da madeira. Também não adianta aumentar ainda mais a oferta de salário. Não podemos elevar demais nossos custos... E depois, se não passaram neste teste simples, imagine nos outros... - Realmente você tem razão. Noé desconhece os rudimentos de Administração. Toque como você achar melhor. Se o contratei, é porque tenho total confiança em seu trabalho.
Finalmente, a primeira reunião da Diretoria. Era o momento solene das grades decisões de cúpula do Empreendimento. Todos com sua melhores túnicas sentaram-se à Plenária com suas pastas de executivos. O Presidente, satisfeito, relatava que o Empreendimento era o orgulho do povoado. Havia muito trabalho e emprego
para todos. Aproveitando o clima de satisfação, o DC informou que havia feito convênio com a Escola de Carpintaria, pois a
mão-de-obra necessária estava aquém do desejável. Além disso havia criado o Departamento de Recursos Humanos, com a missão de retreinar os carpinteiros em técnicas de construção naval, além de apoiar todos os demais departamentos, capacitando, de quebra, datilógrafas, secretárias e auxiliares administrativas. Criara também o
Departamento de Segurança e Higiene do Trabalho, por força de lei. O ambulatório já atendia 20 pessoas por dia!
Todos se olharam admiradíssimos pelas inovações revolucionárias, e tão logo o Presidente emitiu o primeiro elogio,
todos parabenizaram o DC por suas brilhantes idéias.
Cloé aproveitou para informar que os preços dos cabeleireiros do povoado haviam subido demais depois do início do Empreendimento, e que inclusive o Clube local estava criando problemas na admissão de novos associados. Todos esperaram o Presidente se manifestar, e quando ele delegou ao Relações Públicas a missão de conversar com os cabeleireiros e com o Clube para conter esses abusos, a Reunião Plenária quase foi interrompida pelo burburinho causado pelas reações de indignação de todos os presentes devido à falta de cidadania dos dirigentes do povoado.
Quando a calma foi restabelecida, o DB ponderou timidamente que faltava pessoal para desenho, e que a eficiência
dos carpinteiros era baixa. Havia só um - disse ele - que conseguira cortar três árvores, duas das quais, bichadas, segundo o relatório do Controle de Qualidade. Noé estava tentando suprir a falta desenhando em folhas de bananeira e cortando as árvores à noite, depois do expediente. A proposta era então aumentar o salário de Noé para
15 dinheiros.
O DC explodiu, seguido de perto pelo DI:
- Esses sabichões! pensam que sabem tudo! Atrapalham a organização, trabalham mal e ainda querem aumento!
Sr. Presidente, sou de opinião que devemos aumentar a equipe de recrutamento e apertar nos exames de seleção!
Nossa equipe técnica deixa muito a desejar!
- Perdão - retrucou o DB - o laboratório funciona! Vejam como detectou as árvores bichadas. Acontece que não temos o apoio necessário. O senhor desvia recursos para a área de Operação do barco, recrutando timoneiros, veleiros etc...
- Mas e lógico! - interveio o Presidente - Temos que agir com antecedência no treinamento. Afinal, treinar é investir no futuro!
O DB achava correta essa linha de pensamento do Presidente, desde que o treinamento fosse direcionado para as prioridades. Mas achou melhor não comentar nada. Todos conheciam muito bem o temperamento do Presidente e sabiam que, quando contrariado, seus modos brandos desapareciam completamente. Muitos já havia sido demitidos - comentava-se - nesses acessos de cólera.
Octogésimo dia.
Absalão passeava na ravina. Estava orgulhoso. Era Presidente de um Empreendimento que contava com 1200 pessoas. As vezes Noé e suas preocupações lhe vinham à cabeça. Mas eram todas infundadas. Não passava de um tecnocrata pessimista. Felizmente havia o Diretor de Barco para despachar com Noé - um aborrecimento a menos!
Subitamente... PUFF !! - uma nuvem de fumaça.
O ministro do Senhor - exclamou Absalão prostrando-se.
- ABSALÃO, PONHA GENTE DE MAIS PESO NO TOPO, CASO CONTRÁRIO O EMPREENDIMENTO AFUNDARÁ ! PUFF !!
Absalão correu a cabana de Noé.
- Noé, Noé! ponha um convés no alto do mastro! vou colocar as pessoas mais pesadas em cima!
- Mas Presidente, isto é impossível! Sempre o convés e embaixo e o mastro aponta para cima! Se aumentarmos a massa em cima, o centro de gravidade ficará muito alto e o barco emborcará...
- Não estou falando do suprimento de comida, droga! O ministro de Deus mandou colocar as pessoas mais pesadas
em cima e isso que vou fazer!
Noé não retrucou. O Presidente estava nervoso. Talvez Cloé - que acumulava as funções de gerente de treinamento e dominava as técnicas de persuasão - pudesse fazê-lo ver mais claro.
Noé correu à secretaria Geral, mas lá encontrou o Comandante de Operação do Barco, que esperava há mais de uma hora. Com ele estavam o subcomandante nível 3, o imediato, o pré-imediato, dois assistentes e três assessores.
- Noé -; disse o comandante - o seu projeto não anda! Como vou treinar meus homens sem barco? Vim pedir a autorização do Presidente para adquirir um simulador de barco, caso contrário não me responsabilizo! O DI diz que a curva de aproveitamento de meus treinandos não bate com a curva histórica do Manual de Navegação. E com essa mania de se meter no departamento dos outros, ele acaba tumultuando. Preciso de mais instrutores! Já reparou
quantas pessoas de apoio tem o Departamento de Apoio?
Noé balançou a cabeça e retirou-se vagarosamente. Realmente o que ele conseguira ? Uma meia dúzia de desenhos em folhas de bananeira. Isto em 80 dias! Ele havia prometido ao Presidente que faria o barco em 30 dias! Estava acabrunhado e sentia-se incompetente. O que estaria errado consigo? Já lhe haviam dito que com o tempo tudo
estaria bem, que não se precipitasse, que não deveria andar mais depressa que a Organização. Mas - lembrava-se - havia sido contratado exatamente por seu espírito prático e descomplicado! O Presidente entrou furioso, desabafando em Cloé.
- Veja! só faltam 40 dias e a Divisão de Importação diz que há crise de transporte e a madeira só chegará no prazo
médio de 10 dias! O pessoal de PO mais o de O&M e o CPD fez tudo para diminuir o caminho por onde deverá vir a madeira.
- Noé ligou há pouco e disse que há uma empresa, a P.E.R.T.O., especializada em transporte rápido, senhor...
- Noé, Noé! Não estou mais agüentando esse sujeitinho que tem sempre solução para tudo! Para ele parece tudo muito fácil, como se não houvesse uma estrutura por trás do Empreendimento! Se não faltasse tão pouco tempo, eu o substituiria imediatamente! Ele só tem atrapalhado, retardado e confundido os executivos que tocam a obra!
Cloé conhecia bem o Presidente, e sabia que um copo de leite quente o acalmaria.
- Quero uma reunião de emergência com os diretores. Vou despedir o Setor de Carpintaria e contratar outro.
Se não fosse o Roboão e sua equipe de recrutamento, não sei o que seria... - Senhor... - disse Cloé timidamente -
Faltam 40 dias para o quê?
- Para o Dilúvio, minha filha, para o Dilúvio!
Absalão rabiscou algumas linhas num papel.
- Passe este Telex:
"DE: ABSALÃO
PARA: SENHOR
SOLICITO PRORROGAÇÃO PRAZO RESTANTE 40 DIAS: DIFICULDADES INTRANSPONÍVEIS. CRISE INTERNACIONAL DE
MADEIRA. PROSTRAÇÕES.
ABSALÃO.
O ruído monótono da teleimpressora deixava Absalão ainda mais nervoso, mas a resposta veio finalmente:
PARA: ABSALÃO
CONCEDIDO PRAZO CINCO DIAS IMPRORROGÁVEIS. ELEVAÇÃO DE ÁGUAS EM ANDAMENTO.
Absalão desesperou-se e partiu para a reunião. Pelo telefone interno, Cloé iniciou a telefofoca do Dilúvio.
Octogésimo segundo .
Primus adentra o gabinete do Presidente.
- Chefe, tenho aqui um relatório dizendo que há desvio de cipós de amarração do almoxarifado. A listagem do computador não bate com a auditoria.
- Que inferno! Coloque sua equipe em campo! Jacob está fora de suspeita por ser meu amigo. Verifique o pessoal da Carpintaria.
Mande um memorando ao Roboão para aumentar a equipe de segurança.
Cloé! ponha o Roboão na linha!
- Roboão, aqui é o Presidente! Já recrutou os carpinteiros?
- Infelizmente não passam nos testes, chefe. Até afrouxamos as provas, mas o reconhecimento de tipos genéticos
de cupins reprova todo mundo! É por isso que a madeira do estoque está bichada, segundo relatório do Departamento do Material.
- Presidente - interrompeu Cloé - é urgente! Há dois pastores na ante-sala dizendo que há crise de leite nas cabras,
e não haverá distribuição aos funcionários por uma semana. O Suprimento não estocou capim para a época de
seca...Qual a sua decisão?
Centésimo dia.
Reunião da Diretoria.
- Sr. Presidente - falou o DI - dentro de uma semana vencem nossos empréstimos internacionais com os povoados vizinhos e o Caixa não é suficiente. Nosso Empreendimento economicamente vai bem, mas financeira-mente estamos à beira de uma crise. Sugiro uma redução do pessoal.
- Toda vez que se fala em redução de pessoal, todos olham para mim! - desabafou o Comandante de Operações -
Sem meus homens não há Operação do Barco, que nem sairá do porto. E meu simulador ainda nem foi aprovado!
- Sr. Presidente - tentou timidamente o DB - acho que o Comandante tem razão: Não prometemos ao Ministro que o barco estaria logo pronto?
- Mas como, sem material?! - gritou o DC - Por acaso posso fabricar madeira? Seu laboratório não acha boa madeira
local e há crise de transporte! Os carpinteiros são incompetentes! E esse tal de Noé? Que fez ele até agora? E ganha 10 dinheiros!
- Senhores - falou gravemente o Presidente, enquanto todos o olhavam esperançosos:
- a situação do Empreendimento é razoável, mas temos que tomar uma atitude mais séria quanto ao projeto do barco.
Presidente, não quero interrompê-lo, mas em nossos arquivos não existiam as normas do Empreendimento. Isso é falta grave, e sou obrigado a demitir Noé. Gostaria que o senhor providenciasse, através do Roboão.
Noé ficou realmente furioso com a notificação. Nem exigiu a fração do 13º salário a que tinha direito.
Estava disposto a sair daquela terra e o caminho mais fácil era pelo rio. Partiu para a floresta e reuniu cinco amigos.
- Companheiros, vamos cortar essas árvores bichadas mesmo, construir um barco e sair daqui!
- Mas Noé, não somos carpinteiros nem sabemos construir barcos...
- Não importa. Ensinarei a cortar a madeira, e tenho os desenhos. Seremos uma equipe motivada com o objetivo de construir um barco e partir para uma vida melhor em outras terras!
Levaremos uns bichos a bordo para comermos no caminho. Só falta meter mãos à obra!
A madeira começou a ser cortada. Lascas voavam para todos os lados. As partes mais bichadas eram isola-das e deixadas de lado. Mosquitos voavam ao tombar as árvores. Em poucos dias o casco do barco começava a tomar forma.
Centésimo vigésimo quinto dia.
O Presidente acordou preocupado. A madeira tinha chegado. mas só havia três carpinteiros. Sua charrete tomou o caminho mais rápido para o escritório, para fugir ao mau tempo. O céu estava carregado. Nuvens negras pairavam no horizonte, anunciando tempestade. Foi direto ao Telex, mas Cloé só chegava às 9 horas. Correu ao CPD .
- Que há por aqui? O expediente ainda não começou? Quem é você?
- Sou uma digitadora senhor. O pessoal não gostou muito do Plano de Reclassificação de Cargos e Salários, e eu acho que se a nova Política de Promoções for mesmo implantada, não vai sobrar ninguém!
Absalão voltou ao escritório. No caminho encontrou Primus muito aflito que lhe disse ter ouvido um zum-zum acerca de um tal Plúvio, que poderia ser um terrorista, por seus modos muito estranhos de agir, mas que sua equipe já estava providenciando o. seu afastamento.
Absalão ficou branco e voltou ao telex.
- Rápido, Cloé, rápido!
DE: ABSALÃO
PARA: SENHOR
DIFICULDADES COM PROJETISTA ATRASARAM EMPREENDIMENTO SOLICITO PRORROGAÇÃO DO PRAZO.
A resposta veio imediata.
DO: SENHOR
PARA: ABSALÃO
PRORROGAÇÃO NEGADA. ELEVAÇÃO DAS ÁGUAS EM ANDAMENTO.
Absalão ia praguejar quando um relâmpago violentíssimo seguido de um trovão ensurdecedor estourou nos céus.
Vários vidros se partiram, e começou a chover. Absalão correu para fora, seguido de Jacob. Chovia torrencialmente.
- Veja, chefe - gritou Jacob - há um barco descendo o rio! Olhe a prôa...Não dá para ler direito...
Absalão colocou as mãos em concha sobre os olhos e leu:
ARCA...DE...NOÉ...
TGA I – Faculdade ITOP – Prof. Jair Júnior Parriul
Fazer o relacionamento do texto abaixo com as teorias estudadas na disciplina TGA I.
A ARCA DE NOÉ
L’arche de Noé.
Tradução e adpatação: J.B.Xavier
Absalão era um homem que se podia conceituar como justo.
Era um estudioso, e quando repetia aos sábios que os lados de um quadrado eram iguais, tornava-se realmente difícil entendê-lo.
Dos seus 60 anos de idade, a maior parte havia dedicado à arte da guerra, na qual eram aplicados conceitos técnico-científicos. Particularmente, era apaixonado pela organização das forças de combate e no uso de armas avançadas, tais como lança de grande alcance, setas orientadas e a última novidade bélica: o lançador de pedras!
Era um verdadeiro líder.
Com o avanço da idade e o correspondente aumento da sabedoria, Absalão também se preocupava com assuntos humanos os quais, porém, o perturbavam um pouco. O Criador já não era reverenciado como no seu tempo; os filósofos eram ridicularizados; havia uma inversão completa na política, acreditava-se mais na energia e estultice dos jovens do que na ponderação e sabedoria dos mais idosos. Um dia andava Absalão pela ravina quando de repente, -
PUFF! - uma nuvem de fumaça apareceu, acompanhada de uma voz tonitruante:
- ABSALÃO!!!
Absalão prostrou-se. Só podia ser o Criador! E era! Em Pessoa!
-ABSALÃO! -voltou a voz- NÃO ESTOU CONTENTE COM OS HOMENS. ESTÃO POLITIZADOS, GUERREIAM ENTRE SI E SÓ DEFENDEM INTERESSES PRÓPRIOS. O TRINÔMIO ADÃO-EVA-COBRA DEU NISSO... FAREI CHOVER POR 40 DIAS E 40 NOITES ATÉ COBRIR A TERRA DE ÁGUA, O QUE SERÁ CONHECIDO COMO DILÚVIO... MAS QUERO QUE UMA NOVA HUMANIDADE NASÇA DE UM HOMEM INTELIGENTE, PRÁTICO E COM OBJETIVOS. VÁ E CONSTRUA UM BARCO PARA VOCÊ E SUA FAMÍLIA E COLOQUE NELE UM CASAL DE CADA SER VIVO. VOCÊ TERÁ 4 MESES PARA ESTE EMPREENDIMENTO. MEU CONTATO COM VOCÊ SERÁ O ARCANJO GABRIEL, QUE COSTUMAM CHAMAR DE MINISTRO DE DEUS. PUFF!!-
E a nuvem se foi...
Absalão ergueu-se lívido. O Criador o elegera gerador de uma nova humanidade! Todas as suas idéias seriam propagadas para o futuro. Absalão pouco conhecia de barcos ou de navegação mas nem pensaria em discutir a grande oportunidade que o Criador lhe oferecera. Mas precisava resolver um problema técnico-científico - construir um barco enorme e objetivo! Absalão provaria que era capaz de salvar a humanidade com a sabedoria dos mais velhos e a energia dos mais jovens.
Rebuscou a memória.
Conhecia um engenheiro naval chamado Neul, ou seria Neus? Não! Noé! Sim, era este o nome! Noé poderia construir-lhe o barco. Ele, Absalão seria o coordenador do Empreendimento e Noé seria o técnico.
Famoso por sua objetividade, logo já conversava com Noé.
- Meu caro, quero encomendar-lhe um barco - e dos grandes!
- Perfeitamente, meu senhor, mas de que tipo e para que espécie de carga e navegação?
- Ora, Noé, isto são detalhes. É um barco para grande carga e águas pesadas. Quero fazer uma longa viagem com a família e levarei tudo.
- Esta bem, senhor, aqui mesmo temos floresta com madeira de densidade de 0.8 g/cm3 em quantidade suficiente.
Se a carga é grande, faremos o centro de gravidade baixo e o centro de empuxo alto, de modo a obter grande estabilidade. Acho que com 10 bons carpinteiros, que consigo arranjar na aldeia, e um mês de trabalho duro, estaremos com o barco pronto.
- Perdão, Noé, não queria interrompê-lo, mas como pode ter certeza desta densidade da madeira?
Sabe se os homens são realmente competentes?
Se trabalharão com eficiência?
- Senhor, a unidade a que me referi chama-se densidade, e os homens são carpinteiros, já meus velhos conhecidos...
- Não, não, Noé, disse Absalão com um sorriso de condescendência. Este empreendimento é grande e a co-ordenação é minha. Serei o presidente e você será o técnico. Combinado?
- Combinado, senhor, o barco é seu e quem manda é o senhor, replicou Noé, dando de ombros. Levantou-se para
cumprimentar Absalão e retirou-se.
Absalão ficou pensando: "Puxa, não havia pensado nisso!
São precisos carpinteiros para cortar as árvores e construir o barco! É preciso selecionar bem estes homens, pois o Empreendimento não pode falhar. Ah! Já sei! Meu auxiliar na Cruzada Santa das Três Pedras fez uma ótima seleção de lanceiros. Roboão é o seu nome. Hoje está selecionando beterrabas para uma indústria, mas virá trabalhar comigo por um salário um pouco maior.
- Mas, chefe, se o técnico disse 10 carpinteiros precisaremos de no mínimo 15! O senhor sabe, faltas, doenças, férias, turnover... e para selecionar bem 15 homens temos que explorar um universo de pelo menos 150 a 200 candidatos. Levarei algum tempo para isso e precisarei de auxiliares.
- Confio em você, Roboão. Já fez um bom trabalho para mim e tem grande experiência com Pessoal.
Real-mente achei Noé muito simplista. Convide quem você achar melhor para realizar o recrutamento e seleção dos homens para a tarefa. Mantenha-me informado.
- Certo, chefe, sairei em campo imediatamente. Obrigado pela confiança. Nesta noite Absalão dormiu satisfeito. Em menos de 24 horas após receber a missão do Senhor já tinha o técnico e
o especialista em pessoal. Dormiu embalado pela algazarra que ainda faziam os 20 membros de sua família na festa de inauguração do Empreendimento.
O segundo dia amanheceu tranqüilo e claro. O Presidente foi acordado por Roboão com boas notícias:
- Chefe, já tenho cinco homens anunciando no povoado - é a fase de recrutamento. De acordo com o mercado estamos oferecendo cinco dinheiros.
- Mas, Roboão, não será pouco? Minha mulher ganha 9 dinheiros cosendo para fora...
- Deixe comigo, chefe. No recrutamento da última batalha pagamos 8 dinheiros para valentes combatentes, e economizamos um bom bocado. Estes são apenas carpinteiros que não podem ser comparados aos combatentes ou à sua senhora. Temos assim 5 recrutadores e 10 examinadores para a fase de seleção menos de
10 % dos candidatos esperados!
- E quanto ganharão?
- O salário desta equipe varia de 8 a 12 dinheiros pois são especialistas. Chefe, um probleminha a mais:
Não quero responsabilidade com o numerário e não sou bom de contas. O trabalho com o pessoal já é o bastante. Não acha melhor termos um homem para a gerência do Empreendimento?
- Bem lembrado, Roboão, mas não conheço nenhum e deve ser um homem de confiança.
- Chefe, se me permite, quero lembrar-lhe o Judas, que se ocupava do dinheiro das forças de combate.
- Não. Não. Roboão. Esse negócio de dinheiro com pessoal das armas não dá certo. Pensemos em outro!
Deve ser um especialista na coisa, você me compreende?
- Então, chefe, poderemos fazer uma seleção entre candidatos.
Sairei em campo.
O Empreendimento crescia de vento em pôpa. As equipe de recrutamento e seleção já estavam em plena
operação. As finanças já tinham um responsável. Mas, onde colocar esse pessoal? Absalão partiu com seu habitual
dinamismo e logo adquiriu uma grande cabana, já com divisórias e tapetes, e contratou imediatamente o pessoal da zeladoria e segurança. Eram todos velhos conhecidos das forças de combate.
Iniciou-se assim, a operação em grande escala.
- Senhor Presidente - falou timidamente a graciosa telefonista, está aqui o Dr. Noé com alguns desenhos e...
- Minha filha, já lhe disse para não interromper. Diga ao Noé que passe depois do almoço.
Absalão continuou a entrevista com o futuro gerente do material, Jacob, seu velho conhecido de carreira.
- Pois é, amigo Jacob, preciso cercar-me de gente de confiança, para o sucesso do Empreendimento. Material é uma área delicada e não tolerarei desvio de estoque!
- Certo, chefe! sabe que pode confiar em mim! Nunca sumiu uma flecha ou lança no meu tempo, mas o armazenamento de madeira exige um almoxarifado adequado. Para o controle vou precisar de alguns arquivos, armários, arquivos Cardex, prateleiras e pessoal de apoio.
-Justo, Jacob! Encomende as prateleiras na carpintaria do povoado e fale com Roboão para o recrutamento do pessoal necessário.
Neste momento entrou Cloé, a secretária executiva do Presidente.
- Senhor Presidente, acaba de chegar um relatório da Segurança, indicando certos nomes que não devem ser
contratados...Há suspeitas de que alguns não são muito confiáveis...
- Ótimo trabalho de Primus. Jamais lhe faltou a intuição! Precisamos estar alertas!
- Ah! outra coisa, senhor Presidente. o Dr. Noé telefonou novamente. Parece aflito para a aprovação de alguns desenhos.
-Ora, esse Noé! Sempre querendo me confundir com idéias de madeira, centros de fluxo...ele sabe que sozinho não posso me responsabilizar pela aprovação desses desenhos. Diga-lhe que nomearei um grupo de trabalho do barco, o GT-Bar, para dar-me um parecer. O homem é bom de projetos, mas nada entende de custos ou de administração por objetivos. Teremos tudo nos eixos tão logo chegue meu chefe de administração. Ele vai colocar ordem e método
nessa turma: Quero ver produção!
Quinze dias se passaram e o organograma proposto já se encontrava na mesa do Presidente: Uma Diretoria das Coisas (DC), uma dos Investimentos (DI) e uma de Barco (DB). O DB já havia montado um laboratório especializado para a medida da densidade da madeira, análise de fungos e cupins, e já estavam instalados os equipamentos para medir a elasticidade e flexibilidade.
Em apenas quinze dias a Administração havia elaborado as provas de seleção para arquivista e desenho naval, provas de seleção para selecionadores de pessoal de Seleção e Recrutamento, pessoal de apoio, etc...
Roboão, como um cumprimento ao chefe, havia mandado comprar uma charrete último tipo, de seis rodas e boléia
separada, acompanhada de charreteiro, naturalmente. Houve um pequeno atrito com Jacob, (chefe do material), mas como eram companheiros de batalhas, o incidente foi esquecido e contornada a auditoria. Naquela noite, o Presidente estava cansado, mas não esquivou-se de receber Noé em sua residência.
- Sr. Presidente, desculpe-me interromper seu descanso, mas o projeto já esta pronto e as pessoas do GT-Bar ainda
não foram nomeadas. O material já está especificado, mas o laboratório ainda não emitiu o laudo de aprovação da madeira e não conseguiu os carpinteiros para o corte. Se o senhor pudesse me autorizar a trazer os carpinteiros conhecidos do povoado...
- Não se preocupe, Noé. Falarei amanhã com o DB e apressarei a contratação do pessoal. Você sabe, apesar de Presidente, não posso mudar as regras da Organização autorizando diretamente seus carpinteiros. Da chefia vem o exemplo do cumprimento às normas. Não se preocupe que o Empreendimento está nas mãos de profissionais - os melhores! Boa noite, Noé.
Noé afastou-se sem entender muito bem. Havia sido contratado para fazer um barco. Agora estava às voltas com normas, instruções, exames de seleção...Balançou a cabeça. As coisas deviam ser complicadas mesmo.
Mas o Presidente era um homem capaz senão, não seria Presidente! Partiu otimista para sua cabana. Se o Presidente disse, é porque tudo vai indo muito bem.
Vigésimo quinto dia.
Manhã linda. Cloé anuncia a chegada de Roboão.
- Entre logo, meu velho. Sente-se. Aceita um leite de cabra?
- Sim, chefe. Obrigado. Por falar nisso, segundo a lei, mandei distribuir leite de cabra pela manhã e a tarde, a todos.
Já está até codificado o material para o computador. Fizemos pequenas despesas para chegar a esses resultados:
Tivemos que adquirir 200 cabras, alugar um pasto e contratar 5 pastores. Jóia, chefe! Dá 40 cabras por pastor, e só ganham 10 dinheiros!
- Você é um bicho na administração do pessoal, Roboão. Falarei ao seu Diretor para propor sua promoção na próxima vez. Como vai sua avaliação?
- Realmente não sei, chefe, É confidencial...
- Darei um jeito para que seja boa. Afinal, já temos 500 pessoas no efetivo, e todas passaram por você. E você ainda
conseguiu comprimir o quadro, que era de 800 pessoas! Quanto economizamos, em média?
- Nessas 300 pessoas, cerca de 4000 dinheiros, chefe - respondeu Roboão com um sorriso de falsa modéstia, e
pensou consigo mesmo: " Quem sabe? talvez fosse aumentado para 30 dinheiros!"
- Roboão, não quero incomodá-lo e nem por sombra desfazer o belíssimo trabalho de sua equipe, mas Noé me disse que ainda não foram contratados os carpinteiros para o corte...
- Ora, chefe! Noé é um sonhador! Só pensa nos seus desenhos. Já lhe expliquei a complexidade da contratação. Por exemplo: aumentamos a oferta de salário para 6 dinheiros, porém todos os candidatos foram reprovados no primeiro psicotécnico. Não adianta contratar pessoal sem aptidão psicoprofissional para o corte da madeira. Também não adianta aumentar ainda mais a oferta de salário. Não podemos elevar demais nossos custos... E depois, se não passaram neste teste simples, imagine nos outros... - Realmente você tem razão. Noé desconhece os rudimentos de Administração. Toque como você achar melhor. Se o contratei, é porque tenho total confiança em seu trabalho.
Finalmente, a primeira reunião da Diretoria. Era o momento solene das grades decisões de cúpula do Empreendimento. Todos com sua melhores túnicas sentaram-se à Plenária com suas pastas de executivos. O Presidente, satisfeito, relatava que o Empreendimento era o orgulho do povoado. Havia muito trabalho e emprego
para todos. Aproveitando o clima de satisfação, o DC informou que havia feito convênio com a Escola de Carpintaria, pois a
mão-de-obra necessária estava aquém do desejável. Além disso havia criado o Departamento de Recursos Humanos, com a missão de retreinar os carpinteiros em técnicas de construção naval, além de apoiar todos os demais departamentos, capacitando, de quebra, datilógrafas, secretárias e auxiliares administrativas. Criara também o
Departamento de Segurança e Higiene do Trabalho, por força de lei. O ambulatório já atendia 20 pessoas por dia!
Todos se olharam admiradíssimos pelas inovações revolucionárias, e tão logo o Presidente emitiu o primeiro elogio,
todos parabenizaram o DC por suas brilhantes idéias.
Cloé aproveitou para informar que os preços dos cabeleireiros do povoado haviam subido demais depois do início do Empreendimento, e que inclusive o Clube local estava criando problemas na admissão de novos associados. Todos esperaram o Presidente se manifestar, e quando ele delegou ao Relações Públicas a missão de conversar com os cabeleireiros e com o Clube para conter esses abusos, a Reunião Plenária quase foi interrompida pelo burburinho causado pelas reações de indignação de todos os presentes devido à falta de cidadania dos dirigentes do povoado.
Quando a calma foi restabelecida, o DB ponderou timidamente que faltava pessoal para desenho, e que a eficiência
dos carpinteiros era baixa. Havia só um - disse ele - que conseguira cortar três árvores, duas das quais, bichadas, segundo o relatório do Controle de Qualidade. Noé estava tentando suprir a falta desenhando em folhas de bananeira e cortando as árvores à noite, depois do expediente. A proposta era então aumentar o salário de Noé para
15 dinheiros.
O DC explodiu, seguido de perto pelo DI:
- Esses sabichões! pensam que sabem tudo! Atrapalham a organização, trabalham mal e ainda querem aumento!
Sr. Presidente, sou de opinião que devemos aumentar a equipe de recrutamento e apertar nos exames de seleção!
Nossa equipe técnica deixa muito a desejar!
- Perdão - retrucou o DB - o laboratório funciona! Vejam como detectou as árvores bichadas. Acontece que não temos o apoio necessário. O senhor desvia recursos para a área de Operação do barco, recrutando timoneiros, veleiros etc...
- Mas e lógico! - interveio o Presidente - Temos que agir com antecedência no treinamento. Afinal, treinar é investir no futuro!
O DB achava correta essa linha de pensamento do Presidente, desde que o treinamento fosse direcionado para as prioridades. Mas achou melhor não comentar nada. Todos conheciam muito bem o temperamento do Presidente e sabiam que, quando contrariado, seus modos brandos desapareciam completamente. Muitos já havia sido demitidos - comentava-se - nesses acessos de cólera.
Octogésimo dia.
Absalão passeava na ravina. Estava orgulhoso. Era Presidente de um Empreendimento que contava com 1200 pessoas. As vezes Noé e suas preocupações lhe vinham à cabeça. Mas eram todas infundadas. Não passava de um tecnocrata pessimista. Felizmente havia o Diretor de Barco para despachar com Noé - um aborrecimento a menos!
Subitamente... PUFF !! - uma nuvem de fumaça.
O ministro do Senhor - exclamou Absalão prostrando-se.
- ABSALÃO, PONHA GENTE DE MAIS PESO NO TOPO, CASO CONTRÁRIO O EMPREENDIMENTO AFUNDARÁ ! PUFF !!
Absalão correu a cabana de Noé.
- Noé, Noé! ponha um convés no alto do mastro! vou colocar as pessoas mais pesadas em cima!
- Mas Presidente, isto é impossível! Sempre o convés e embaixo e o mastro aponta para cima! Se aumentarmos a massa em cima, o centro de gravidade ficará muito alto e o barco emborcará...
- Não estou falando do suprimento de comida, droga! O ministro de Deus mandou colocar as pessoas mais pesadas
em cima e isso que vou fazer!
Noé não retrucou. O Presidente estava nervoso. Talvez Cloé - que acumulava as funções de gerente de treinamento e dominava as técnicas de persuasão - pudesse fazê-lo ver mais claro.
Noé correu à secretaria Geral, mas lá encontrou o Comandante de Operação do Barco, que esperava há mais de uma hora. Com ele estavam o subcomandante nível 3, o imediato, o pré-imediato, dois assistentes e três assessores.
- Noé -; disse o comandante - o seu projeto não anda! Como vou treinar meus homens sem barco? Vim pedir a autorização do Presidente para adquirir um simulador de barco, caso contrário não me responsabilizo! O DI diz que a curva de aproveitamento de meus treinandos não bate com a curva histórica do Manual de Navegação. E com essa mania de se meter no departamento dos outros, ele acaba tumultuando. Preciso de mais instrutores! Já reparou
quantas pessoas de apoio tem o Departamento de Apoio?
Noé balançou a cabeça e retirou-se vagarosamente. Realmente o que ele conseguira ? Uma meia dúzia de desenhos em folhas de bananeira. Isto em 80 dias! Ele havia prometido ao Presidente que faria o barco em 30 dias! Estava acabrunhado e sentia-se incompetente. O que estaria errado consigo? Já lhe haviam dito que com o tempo tudo
estaria bem, que não se precipitasse, que não deveria andar mais depressa que a Organização. Mas - lembrava-se - havia sido contratado exatamente por seu espírito prático e descomplicado! O Presidente entrou furioso, desabafando em Cloé.
- Veja! só faltam 40 dias e a Divisão de Importação diz que há crise de transporte e a madeira só chegará no prazo
médio de 10 dias! O pessoal de PO mais o de O&M e o CPD fez tudo para diminuir o caminho por onde deverá vir a madeira.
- Noé ligou há pouco e disse que há uma empresa, a P.E.R.T.O., especializada em transporte rápido, senhor...
- Noé, Noé! Não estou mais agüentando esse sujeitinho que tem sempre solução para tudo! Para ele parece tudo muito fácil, como se não houvesse uma estrutura por trás do Empreendimento! Se não faltasse tão pouco tempo, eu o substituiria imediatamente! Ele só tem atrapalhado, retardado e confundido os executivos que tocam a obra!
Cloé conhecia bem o Presidente, e sabia que um copo de leite quente o acalmaria.
- Quero uma reunião de emergência com os diretores. Vou despedir o Setor de Carpintaria e contratar outro.
Se não fosse o Roboão e sua equipe de recrutamento, não sei o que seria... - Senhor... - disse Cloé timidamente -
Faltam 40 dias para o quê?
- Para o Dilúvio, minha filha, para o Dilúvio!
Absalão rabiscou algumas linhas num papel.
- Passe este Telex:
"DE: ABSALÃO
PARA: SENHOR
SOLICITO PRORROGAÇÃO PRAZO RESTANTE 40 DIAS: DIFICULDADES INTRANSPONÍVEIS. CRISE INTERNACIONAL DE
MADEIRA. PROSTRAÇÕES.
ABSALÃO.
O ruído monótono da teleimpressora deixava Absalão ainda mais nervoso, mas a resposta veio finalmente:
PARA: ABSALÃO
CONCEDIDO PRAZO CINCO DIAS IMPRORROGÁVEIS. ELEVAÇÃO DE ÁGUAS EM ANDAMENTO.
Absalão desesperou-se e partiu para a reunião. Pelo telefone interno, Cloé iniciou a telefofoca do Dilúvio.
Octogésimo segundo .
Primus adentra o gabinete do Presidente.
- Chefe, tenho aqui um relatório dizendo que há desvio de cipós de amarração do almoxarifado. A listagem do computador não bate com a auditoria.
- Que inferno! Coloque sua equipe em campo! Jacob está fora de suspeita por ser meu amigo. Verifique o pessoal da Carpintaria.
Mande um memorando ao Roboão para aumentar a equipe de segurança.
Cloé! ponha o Roboão na linha!
- Roboão, aqui é o Presidente! Já recrutou os carpinteiros?
- Infelizmente não passam nos testes, chefe. Até afrouxamos as provas, mas o reconhecimento de tipos genéticos
de cupins reprova todo mundo! É por isso que a madeira do estoque está bichada, segundo relatório do Departamento do Material.
- Presidente - interrompeu Cloé - é urgente! Há dois pastores na ante-sala dizendo que há crise de leite nas cabras,
e não haverá distribuição aos funcionários por uma semana. O Suprimento não estocou capim para a época de
seca...Qual a sua decisão?
Centésimo dia.
Reunião da Diretoria.
- Sr. Presidente - falou o DI - dentro de uma semana vencem nossos empréstimos internacionais com os povoados vizinhos e o Caixa não é suficiente. Nosso Empreendimento economicamente vai bem, mas financeira-mente estamos à beira de uma crise. Sugiro uma redução do pessoal.
- Toda vez que se fala em redução de pessoal, todos olham para mim! - desabafou o Comandante de Operações -
Sem meus homens não há Operação do Barco, que nem sairá do porto. E meu simulador ainda nem foi aprovado!
- Sr. Presidente - tentou timidamente o DB - acho que o Comandante tem razão: Não prometemos ao Ministro que o barco estaria logo pronto?
- Mas como, sem material?! - gritou o DC - Por acaso posso fabricar madeira? Seu laboratório não acha boa madeira
local e há crise de transporte! Os carpinteiros são incompetentes! E esse tal de Noé? Que fez ele até agora? E ganha 10 dinheiros!
- Senhores - falou gravemente o Presidente, enquanto todos o olhavam esperançosos:
- a situação do Empreendimento é razoável, mas temos que tomar uma atitude mais séria quanto ao projeto do barco.
Presidente, não quero interrompê-lo, mas em nossos arquivos não existiam as normas do Empreendimento. Isso é falta grave, e sou obrigado a demitir Noé. Gostaria que o senhor providenciasse, através do Roboão.
Noé ficou realmente furioso com a notificação. Nem exigiu a fração do 13º salário a que tinha direito.
Estava disposto a sair daquela terra e o caminho mais fácil era pelo rio. Partiu para a floresta e reuniu cinco amigos.
- Companheiros, vamos cortar essas árvores bichadas mesmo, construir um barco e sair daqui!
- Mas Noé, não somos carpinteiros nem sabemos construir barcos...
- Não importa. Ensinarei a cortar a madeira, e tenho os desenhos. Seremos uma equipe motivada com o objetivo de construir um barco e partir para uma vida melhor em outras terras!
Levaremos uns bichos a bordo para comermos no caminho. Só falta meter mãos à obra!
A madeira começou a ser cortada. Lascas voavam para todos os lados. As partes mais bichadas eram isola-das e deixadas de lado. Mosquitos voavam ao tombar as árvores. Em poucos dias o casco do barco começava a tomar forma.
Centésimo vigésimo quinto dia.
O Presidente acordou preocupado. A madeira tinha chegado. mas só havia três carpinteiros. Sua charrete tomou o caminho mais rápido para o escritório, para fugir ao mau tempo. O céu estava carregado. Nuvens negras pairavam no horizonte, anunciando tempestade. Foi direto ao Telex, mas Cloé só chegava às 9 horas. Correu ao CPD .
- Que há por aqui? O expediente ainda não começou? Quem é você?
- Sou uma digitadora senhor. O pessoal não gostou muito do Plano de Reclassificação de Cargos e Salários, e eu acho que se a nova Política de Promoções for mesmo implantada, não vai sobrar ninguém!
Absalão voltou ao escritório. No caminho encontrou Primus muito aflito que lhe disse ter ouvido um zum-zum acerca de um tal Plúvio, que poderia ser um terrorista, por seus modos muito estranhos de agir, mas que sua equipe já estava providenciando o. seu afastamento.
Absalão ficou branco e voltou ao telex.
- Rápido, Cloé, rápido!
DE: ABSALÃO
PARA: SENHOR
DIFICULDADES COM PROJETISTA ATRASARAM EMPREENDIMENTO SOLICITO PRORROGAÇÃO DO PRAZO.
A resposta veio imediata.
DO: SENHOR
PARA: ABSALÃO
PRORROGAÇÃO NEGADA. ELEVAÇÃO DAS ÁGUAS EM ANDAMENTO.
Absalão ia praguejar quando um relâmpago violentíssimo seguido de um trovão ensurdecedor estourou nos céus.
Vários vidros se partiram, e começou a chover. Absalão correu para fora, seguido de Jacob. Chovia torrencialmente.
- Veja, chefe - gritou Jacob - há um barco descendo o rio! Olhe a prôa...Não dá para ler direito...
Absalão colocou as mãos em concha sobre os olhos e leu:
ARCA...DE...NOÉ...
TGA I – Faculdade ITOP – Prof. Jair Júnior Parriul
Fazer o relacionamento do texto abaixo com as teorias estudadas na disciplina TGA I.
A ARCA DE NOÉ
L’arche de Noé.
Tradução e adpatação: J.B.Xavier