Preto no Branco
O exército tomou suas posições. Na linha de frente, camponeses, saudosos de suas casas e famílias. Logo atrás, a cavalaria, ansiosa pela oportunidade de ter seus feitos lembrados por gerações. Torres guarneciam as laterais e do alto era possível ver o exército inimigo: criaturas sem alma, negros como a escuridão. Protegidos pelos mais valorosos guerreiros, a corte aglutinava-se, temerosa, enquanto sacerdotes entoavam preces. O som de trombetas penetrou o tímpano dos soldados e um surto de adrenalina espalhou-se por seus corpos, a morte nunca parecera tão próxima; em seu encalço, vinha a glória. Num rompante desenfreado, os combatentes correram para abraçá-la. A batalha começara.
Baixas ocorriam de ambos os lados, sangue espalhava-se pelo chão e seu cheiro era levado pela brisa. O som de metal colidindo era ensurdecedor. Não mais protegida, a corte começava a espalhar-se pelo campo de batalha. Era preciso encontrar o rei inimigo e abatê-lo imediatamente, o exército não conseguiria sustentar aquela situação por muito tempo.
Os corpos brancos chocavam-se contra os negros, veloz e ferozmente. Mulheres, clérigos, animais, nenhum foi poupado. Ao fim, o rei branco viu-se sozinho. Seus valorosos soldados jaziam mortos. Procurando por algum aliado, avistou o rei negro, vindo em sua direção. Estudaram-se de longe por um tempo e então aproximaram-se. O fio das espadas reluzia à luz do sol, como pedindo para ser banhado com o sangue inimigo. Uma dança mortal desenhou-se enquanto ambos buscavam uma oportunidade para executar o oponente. Com movimentos precisos, calculados, nenhum abria a retaguarda. A dança tornou-se frenética, ambos circundavam-se e então afastavam-se com rapidez, sem margem para erros. Após permanecerem muito tempo naquela situação, pararam, exaustos. Tiveram enfim uma oportunidade para olharem-se de perto e o que viram os assustou. Cor à parte, eram idênticos. Nos traços, na expressão, nas dimensões. Não querendo acreditar em seus olhos, avançaram novamente, a dança mortal teve seu ato final, ainda mais frenético, ainda inútil. Sem forças pra continuar, os reis caíram sobre seus joelhos. Entreolhando-se pela última vez, chegaram à conclusão de que aquela batalha não teria um vencedor. Afinal, como derrotar um ser tão semelhante?
Sem mais esperanças, agarraram-se ao duro cenário daquela sangrenta batalha. Desfalecendo, perguntaram-se qual fora o sentido daquilo. Dois reinos em ruínas, vidas inocentes desperdiçadas e, afinal, o inimigo não era tão diferente deles. Com um último suspiro, os reis tombaram. Mortos. A batalha estava terminada, nenhum lado sagrou-se vitorioso.
Palmas melancólicas ecoaram pela sala. O enxadrista soviético apertou a mão do enxadrista americano. O empate não interessava a nenhum dos lados. Os jogadores retiraram-se decepcionados, a plateia idem. A lição aprendida a duras penas pelos reis naquela batalha foi ignorada por todos que assistiram à partida. Quanto sangue haveria de ser derramado até que ela fosse aprendida? Se é que um dia seria.