Capítulo 7. de Teresa na Confraria do Lixo. (Em escrita _ eterna?!)

7.

(Um intervalo para Marmota).

Odim costuma estacionar a carroça junto da calçada do lado oposto ao Brechó, e se diverte com a fuzarca da Oficina: barras, botões para pregar, zíperes para trocar, panos de todas as cores, tecidos de lã, algodão, linho, seda, elastano e outros sintéticos. Linhas e fios coloridos. Freguesas. Marmota trança de lá para cá, grita ordens aos ajudantes da Oficina e do Brechó. Odim pensa em Marmota como A mulher que junta pedaços.

Olhe só como isso faz sentido: Marmota costura, junta tecidos e panos variados, prega botões e zíperes. Para o Brechó, coleta peças de vestuário: saias, blusas, vestidos, jaquetas, sapatos, bolsas, cintos, brincos, colares, pulseiras, xales, tudo o que encontra. Compra, de ricaças, seminovos em bom estado, quase de graça, e repassa, a preço módico. A vitrine do Brechó, colorida e atrativa, montada por Marmota, leva jeito de loja grã-fina: atrai, convida, sugere. Uma tentação!

Magra e angulosa, ossos graúdos e, ainda assim, cheia das curvas; seios redondos; pernas torneadas. Os ombros largos e quadris estreitos conferem elegância e leveza para a figura de cabelos pintados de vermelho, fartos e lisos, corte chanel, sobrancelhas escuras e delineadas. O rosto de nariz grande e reto seria considerado bonito, se enxergássemos os olhos por atrás dos óculos de lentes grossas. A boca de lábios carnudos, quando Marmota fica aflita – o que ocorre quase sempre –, vira dois traços. Com esses senões, a danada da Marmota é um bocado atraente.

Nos últimos meses, anda atrapalhada. Depois de anos sem namorar, surgiu um pretendente. E o seu coração balança, entre o quase namorado e um antigo noivo.

Carlo, mecânico de profissão, é um italiano grandão, cabelo longo e grosso que usa preso num rabo-de-cavalo, brinco na orelha direita, e a tatuagem de um escorpião exibida no muque do braço esquerdo. Consertou o velho Chevrolet 1953 de Marmota, agora novinho em folha. O bicho-máquina ressurgiu da lataria amassada e enferrujada, brilhando com cheiro de carro novo. Marmota está de paixão pelo histórico carango. E... meu Deus, pelo Carlo! Amor novo, carro novo, querer mais estraga.

Marmota caminha dengosa pela rua Manoel Guedes de mãos dadas com Carlo, sem saber se o seu interesse é nela, ou no Chevrolet, já que a toda hora ele não para de falar do carro, exagerando as qualidades da máquina. Marmota adora o automóvel – parte da história de sua vida –, e gostou muito de rodar nele com o Carlo. Até pagou estacionamento para não deixar o carango na rua. Ela toma um susto quando Carlo abaixa o corpo se aproximando, na hora do cafezinho, voz enrouquecida, e sussurra: Menina, você tem borogodó! Marmota se arrepia ao escutar borogodó, essa palavra mulata, que Carlo arrancou dos morros cariocas. Durante a infância, chegando ao Brasil, morou com a família na Cidade do Rio de Janeiro, em Copacabana.

─ Que é isto, menino? Tá louco? E lá tenho eu borogodó? Queria ter, que inveja das mulatas, do balanceio delas. Sou durinha, germânica pelo lado de minha mãe, sulista pelo lado do meu pai. Borogodó! Tá louco, Carlo, sou magra e ossuda. Você é cego?

─ Magra sim. E o colo formoso, de madona, ai! Dio mio! Mia bela, você rebola, e questo vestito atilato! E as perna da Sofia Loren? E questo quadril? ─ cochicha no ouvido de Marmota. Áqua na mia boca.

─ Sou tudo isso? Minha nossa Senhora, sabia não!

Marmota suspira feliz e espantada. Esse corpão todo é mesmo o seu? Que pena descobrir só agora. Antes tarde do que nunca, vermelha como o aro de seus óculos, sendo observada por um Carlo deliciado. Marmota pensa, Deus meu, estou velha! Carlo me ama tanto assim?! Uma mulher sonha com o amor, até o fim da vida.

─ Amore mio, tira os óculos! – Carlo implora.

─ Pra quê? Preciso deles, não vejo um fio à frente. Sossega, menino! Tá me deixando louquinha!

Carlo estende as mãos, e delicadamente, retira os óculos dela. Dois olhos verdes, grandes e rasgados pulam no mundo, espantados.

_ Usa óculos pra esconder estes olhos? Que maluca!

─ Maluca?! Os óculos, minha salvação. Sou cegueta, dizia meu pai.

─ Já pensou em lente de contato?

Marmota esfrega os olhos. Está sonhando? Carlo, fascinado, não se afasta daquele rosto recém-descoberto. Sem os óculos, a companheira de almoço, igual à Sofia Loren! Carlo, que felizardo, com a sua Marmota-Sofia e o Chevrolet.

Em seguida, ele convida Marmota para assistir La Traviata no Teatro Municipal. Ela aceita, tonta de excitação.

Porém, para fazer sombra a esse italiano romântico, há as lembranças de Gavião, o primeiro e grande amor de Marmota, com quem, ainda muito jovem, quase casou. Era um rapaz alto, magro, nariz adunco, olho preto e grande, meio puxado, sobrancelha de Lobato, cabeleira basta de profeta. Apaixonados, noivaram. O andar quase esvoaçante completava o ar de pássaro. Ah, Gavião, suspira por ele até hoje.

Vivia de músico, ele; violinista, prêmios e fama precoces. A vida para os noivos era uma promessa de dias sempre melhores. Até Gavião se envolver com o tráfico de droga. Ameaçado, trocou São Paulo por uma republiqueta, e sua deliciosa Marmota, por aventuras com um pessoal da pesada. Dizem que por onde andou, passou mafioso para trás. Sem perdão, os meliantes o encurralaram para quebrar suas mãos. Imagine, quebrar e estropiar as duas mãos de um músico, seus mais preciosos bens, de onde emanam seu dom, fazer música? Gavião rouba a melodia do Universo, das estrelas, dos corpos celestes, das galáxias. Dos mares, rios, montanhas, árvores, da paisagem humana e urbana através do violino e da rabeca.

No instante fatídico de perder as mãos, nuvens negras no céu se juntam a uma ventania vinda dos Andes. Cai chuva, e com essa, chovem pássaros. Parecia o filme de Hitchcock. Seres alados chegaram dos quatro pontos cardeais: condores, corvos – que nem são sul-americanos ––, urubus, gaviões, patos e até pardais. E Gavião, o músico trambiqueiro, sumiu no ar num rufar de asas – quer dizer, entre raios e trovões.

Conta-se uma história muito esquisita: o violinista-bandido tinha parte com o Diabo, se transformou num pássaro, voou. Será? Quem acredita nisto? Marmota não, bem sabe da astúcia e malandragem do seu ex. Soube do (eterno) noivo pela voz de terceiros. Retornou a São Paulo, continuando a vida de músico. E vivia também de outras atividades menos nobres, clandestinas: tráfico de droga. Não toma jeito, pensou Marmota, desgostosa.

Nunca mais Gavião procurou sua antiga noiva. Marmota esperava um encontro assim meio ao acaso, daqueles que a gente provoca. Fez planos de assistir a um concerto do Gavião, primeiro violinista de uma das orquestras municipais. Admirava-lhe a estrela, o dom. E achava-o astucioso. Sonhava ainda em se casar com ele e endireitá-lo de vez.

Aí, chegou outra notícia, arrasadora: Gavião juntara os panos com uma herdeira cheia dos recursos, bonita e rica. Golpe do baú, boquejavam os invejosos. Muito sofrimento na ocasião para a ainda jovem e charmosa Marmota. Jura jamais se apaixonar de novo. Nunca mais cair numa esparrela. Ficou com medo dos homens. Coração em frangalhos. Juntou os pedaços para seguir pela vida.

Mas agora, surge a figura alegre e despachada de Carlo fazendo-lhe a corte. Ô mundo esquisito! Canta seu coração, cheio de esperança de escapulir da solidão.