Capítulo 2. de _ Teresa na Confraria do Lixo _ (romance infanto juvenil, tentativa)
2.
(...) pra espantar o susto da filha.
A mãe de Judite morreu no parto, e a menina, prometida aos orixás, pela avó que a criou, Maria Conga. A nascitura seria a sacerdotisa virgem esperada pelas profecias. Adolescentes, Judite e Gil se apaixonaram. Conceberam Júlio nas margens do Rio das Velhas, sob o olhar nostálgico das iaras, as moças dos rios.
Maria Conga farejou o despertar da paixão dos jovens. Preocupada adivinhou _ aquele amor não teria freios. Quando Judite lhe revela a gravidez, a avó treme e corre a consultar os orixás nos búzios e borra de café. O que vai acontecer à minha neta? Virgindade perdida ela será punida? E essa agora de engravidar? Meiga e cheirosa, Judite foi perdoada. O fruto esperado e proibido, no entanto, seria castigado no lugar da mãe. Belo perdão! Amarga Maria Conga, guardando consigo o segredo, pois acredita que na vida tudo pode ser mudado.
Durante a gravidez de Judite, os tambores no Terreiro Maculelê rufaram com maior intensidade. Que os orixás perdoassem e protegessem a mãe, o pai e a cria. Maria Conga pediu proteção em especial a Omolu, a entidade africana responsável pela saúde e pela peste, pela vida e pela morte.
Júlio nasceu perfeito, consagrado no dia de seu nascimento, a Omolu. Cresceu saudável e inteligente, sabedor do apadrinhamento. Aos sete, os seus cabelos branquearam da noite para o dia. Um susto pontual como chuva de verão. Chuva vem e vai, o branco dos cabelos de Júlio veio para morar. Então, correu a fama da sabedoria do pequeno de cabelo branco. Gente de longe correndo atrás de Júlio pedindo ajuda e milagre, solução para as mais difíceis causas. O menino, como qualquer outro de sua idade, corria em bando pelo cerrado, como seus pais faziam quando crianças. Acostumar-se aos cabelos brancos, nunca se acostumou. Não só a estranheza do branco fora de hora. As consequências.
Aos treze, Júlio ainda se arrepia com o povo que nunca mais o largou, na ânsia de conselho e proteção. Esperto, aprendeu a driblar os curiosos.
─ Quem sou eu pra ajudar, minha gente? Sou só um menino ─ ele costuma afirmar, com verdade e modéstia, enquanto os pais reclamam:
─ Deixem em paz este garoto, pessoal!
Um dia, no início de 2001, Júlio sentiu imensa vontade de subir o morro que, acredita-se, abrigou há séculos um vulcão vivo, com erupções. Em sua breve vida muitas vezes subiu e explorou aquele morro com amigos, familiares, grupos escolares. Jamais ninguém sentiu sequer o cheiro da fumaça do vulcão. Agora no topo do Morro dos Orixás, para acalmar a respiração acelerada pela subida, o menino senta-se na grande pedra arredondada nas laterais, reta em cima, cortada por linhas angulosas e curvas, contendo estranhos e atraentes desenhos. Esta pedra é tida como sagrada, por sua gente. Júlio sabe, a pedra foi consagrada a Omolu desde Francisca Aranha, bisavó de sua bisavó, Maria Conga.
Omolu, invisível a olhos humanos, apareceu a Júlio em seu melhor traje: fios de palha e ouro cobrindo o rosto, escondendo a devastação deixada pela varíola. Júlio em choque: a primeira vez que via o padrinho em sua carne e ossos. É um sonho..., pensa.
Cuidando para a voz não sair feito trovão, e assustar ainda mais o afilhado, Omolu conta do castigo imposto a ele, no lugar da mãe, antes mesmo de nascer. Destino inscrito no céu dos orixás. Revela ao afilhado, de sopetão, o segredo guardado por Maria Conga durante todos esses anos:
─ Júlio, ocê carrega o risco de morrê cedo, menino.
Ao ouvir a profecia, o sangue de Júlio gela, o transformando em uma estátua, foi o que sentiu naquele instante. Lágrimas escorrem contra a vontade, não quer mostrar seu terror ao padrinho, que, garantem muito corajoso, e ao mesmo tempo fica aliviado, que ela saiba, as estátuas não choram.
─ Quer mudar esse destino, mô-fio? Sua mãe mudou o dela.
─ Como padrinho?! Quero viver! Tanta coisa pra fazer! Curar gente como o senhor, padrinho. Ser seu ajudante aqui na terra. Vou estudar pra doutor médico! Se morrer cedo... Não posso morrer agora, Oxalá me livre!
─ Vida longa procê, mô-fio. Oxalá lhe guarde! Seu cabelo branqueou muito cedo! Foi um sinal. Vá pra São Paulo, isso pode mudar seu destino. Vá sozinho. Já escutou falar dessa cidade grande?
─ Escutei, sim, padrinho, passa imagens de São Paulo na TV, e escuto casos de gente que vai pra lá e não volta ─ e completa, relutante ─ Cidade grande e perigosa pra um menino do meu tamanho. Depois de Bagagem, minha cidade, só conheço Água Suja, aqui pertinho, nas festas de Santo Antônio.
─ Num tem escolha, mô-fio. ─ É preciso! ─ enfatiza Omolu, percebendo o medo do menino. ─ Ocê me respeitou e escutou a vida toda. Sou seu padrinho, ainda num sabe? É pro seu bem.
─ Padrinho, que quer de mim?
─ A ida pra São Paulo pode ajudar ocê virar de menino em homem, crescer depressa é a sua salvação, já pensou? Se conseguir, ocê será um homem livre pra crescer, estuda, casa, ter filho e ser doutô. Em São Paulo, ocê vai viver na pele a escravidão, que num acabou. A mardita continua nesse mundo de outras maneiras. Lembra que ocê ainda num está livre de morrer cedo. Seguindo o caminho de seus antepassado, pode escapar deste destino cruel. Num prometo nada, esperança dou.
─ Sou pequeno, Omolu, tenho treze...
─E vassuncê só tem um ano menos que eu, quando os tambor dos negro aqui no Brasil me chamou da África. Pensa foi fácil pra mim?
Por fim, Omolu afasta o véu de palha e ouro revelando a Júlio as marcas que rastreiam seu rosto. Júlio se dá conta de que lembram os desenhos da pedra onde estão sentados, conversando essas coisas tão esquisitas.
─ Vê? Peguei a peste no navio. Os homem brutos e fedidos que prendiam e arrastavam a gente jogavam balde de água salgada em riba dos corpo lanhado pra desinfetá. Nosso povo morria que nem mosca.
Júlio nem tem tempo de se comover com as marcas de Omolu que, para além das palavras, contam sua sina. A ideia de morar em São Paulo sozinho o aterroriza. Sozinho? Não chora, os olhos secaram. Como deixar a escola, os pais amorosos, a terra natal, os amigos? Por outro lado, o coração dispara de excitação, ao pensar em lançar-se naquela grande aventura, avalizada pelo orixá da peste e da cura. O mais importante, a esperança de escapar do destino de morrer cedo. Pisca, e já não vê o padrinho. Como veio, some num triz.
Num repente, Júlio enxerga a cratera do antigo vulcão, vê um fogo amarelo e vermelho, a lava fervente escorrendo morro abaixo. Por um instante, sufoca com a fumaça, pula para trás. O medo do vulcão aceso se dissipa, pois esse some como Omolu – miragem, sonho? Juraria ter ouvido, em seguida, barulho da madeira seca de arbustos estalando, queimando. E o topo do morro retorna ao silêncio, feito também do cricri dos grilos, do cantar dos pássaros, do arrastar de lagartos, e do vento. Imerso em incertezas, Júlio tateia as marcas da pedra, lembrando as cicatrizes de Omolu,. Somente quando começa a escurecer, desce o morro de volta para casa.
Conta aos pais o encontro com Omolu. A mãe estremece, o pai chora. Não contestam o desejo dos orixás, o filho nasceu especial, o cabelo branqueando antes do tempo. Nasceu com a marca da estrela de cinco pontas nas costas da mão esquerda – a marca do Rei Salomão –, a estrela salomoa, do povo do cerrado. Judite e Gil vêm de famílias negras cheias de fé, não duvidam de que muitas coisas aguardam o filho, vida afora. Muitas vezes cismaram ao ver Maria Conga olhar pensativa para o bisneto.
Os tambores do Terreiro Maculelê, regidos por Maria Conga, retumbam noite após noite pedindo benevolência e bênçãos dos orixás para o jovem guerreiro. Com a fé que os orixás, os santos e os anjos, Jesus, Nossa Senhora e a Vida cuidariam dele, nosso pequeno Ulisses parte, levando a roupa do corpo, uma matula com alguma comida, uma jaqueta preta de couro amarrada na cintura, para usar se esfriar ou chover. E a estrela salomoa, marca que sempre teria consigo. Em vez de seguir por mar – que no cerrado não há mar –, parte de ônibus, para tratar de escapar da morte precoce.