ENCONTROS E DESENCONTROS

ENCONTROS E DESENCONTROS

Em algum lugar do litoral brasileiro, ano indefinido...

A escuridão da mata fechada não assustava Eçauna.Ela era filha da mãe água e do pai vento, guerreira e corajosa.Moça ainda, só 15 primaveras mas ágil e curiosa como a onça pintada, deixava mãe e pai na tribo de cabelos em pé.

Gostava de sair para pescar à noite, sozinha, pois sabia que assim conseguiria mais peixes e teria menos bocas para dividir o premio.

Naquela noite de lua cheia como de costume, saiu só.O corpo nu roçava na grama alta enquanto corria em disparada até o mar.Sentiu a areia fina e gelada do sereno na planta e no peito dos pés.Lá em cima, a luz da lua banhava seu rosto de menina danada.

Decidiu admirá-la.Sentou na areia fofa e fitou o horizonte, a linha divisória entre o céu e o mar e a brisa suave que a acalmou.Fechou os olhos para aguçar os outros sentidos e aproveitar o que a vida lhe oferecia de bom.Os peixes não perdiam por esperar, pensou ela.

Não entendia como Tupã havia feito tudo aquilo, só para ela e sua tribo, mas agradecia assim mesmo.Tupã era bravo às vezes, e soltava fogo e água em cima deles também.Mas isso logo passava e os pássaros voltavam a cantar na porta da sua oca na manhã seguinte.

Seu irmãozinho Kurumi, um dia sumiu e a mãe chorou e rezou para Tupã por dois dias, até que o pai o achou sentadinho perto de um lobo guará.Estava chorando de fome, mas inteirinho.Foi Tupã quem cuidou dele, ela sabia.

Queria um cachorrinho, e ia pedir também para Tupã.Sabia como é que tinha que fazer.Era só fechar os olhos e...

“Trovão” – ia chover.Outro trovão.Abriu os olhos e se levantou para correr da chuva.Olhou em direção ao mar e viu um clarão, junto com mais outro trovão.Um clarão gigante.Parecia até que acenderam um monte de fogueiras na beira do mar.Uma lufada de ar quente lambeu seu rosto, assustando-a.

Mas curiosa que só ela, não arredou pé.Achou que alguma estrela tinha caído na água e se desesperou.E se as outras estrelas também começassem a cair?Pensou em correr e chamar pai, mas parece que viu alguma coisa.

Viu!Viu sim.Era um...

Um não.Mais um e mais um...Homens, e estavam chegando perto dela, e mais perto, e mais perto, só que ela não conseguia mais correr, nem se mexer.Estava paralisada de medo e de excitação.Quem eram aqueles?Não eram da sua tribo.E por que não estavam nus?Se todos que ela conhecia não se tapavam, a não ser no frio com alguma pele?E o que era aquela bola em suas cabeças?

Os três homens se aproximaram.Lá atrás, na água, o trovão metálico soltava fumaça.”Eles saíram da barriga do trovão!”.Eçauna estava apagando.

Um dos homens se aproximou.Lá dentro da bola em sua cabeça, Eçauna viu um sorriso.Sorriu também.Tudo escureceu.

Pai achou ela dois dias depois no mesmo lugar.Não lembrava de nada.Nem do trovão, nem do clarão, nem dos homens cobertos da cabeça aos pés.

Na aldeia, todos estavam preocupados.Eçauna estava de volta, mas sua cabeça parecia vazia.Parou de correr e pescar, e passava horas olhando para o céu.Mãe perguntava onde ela tinha ido, o que tinha visto, mas ela não lembrava de nada.

Pai voltou na praia onde a encontrou e foi com o cachorro mais esperto da aldeia.Ele cheirou tudo por ali, mas não farejou nada de mais.Pai estava intrigado, mas sabia que sua filha era meio maluca e que o seu sumiço podia muito bem, ser mais uma de suas traquinagens.Foi embora e não viu á dez metros de onde parou, estranhas pegadas gordas e riscadas na horizontal.Todas terminavam perto da beira da água.

Alguns dias depois, mãe correu para acudir Eçauna, que estava vomitando sem parar.Pajé veio com ervas que curam, mas não teve precisão de usar.Logo que entrou na oca e viu a indiazinha pálida deitada na esteira, concluiu.Ela ia ser mãe.

Pai foi atrás de um por um dos homens da tribo, mas nenhum deles havia dormido com sua filha.E só havia eles por ali.

Mãe tentava de toda maneira descobrir, mas Eçauna de nada se lembrava ainda, por mais que quisesse.Pai queria expulsá-la, mas mãe a defendeu e conseguiu que ela não fosse abandonada, graças ao Cacique, que vendo toda aquela briga, intercedeu.

Disse para mãe e para pai não se preocuparem, pois aquela barriga não era de ninguém da tribo, e muito menos de alguém do chão.Ele contou uma velha história que sua avó contava, e que a avó dela contava para ela, do homem da lua que vinha namorar as mulheres da aldeia.Dizia a anciã, que ele caía do céu e saía de dentro da pedra de fogo.O Cacique disse que ele mesmo passara muitas noites acordado, imaginando como sua avó sabia de tudo aquilo, e aliviado por ser homem.

Pediu para mãe e pai não se incomodarem.A criança filha do homem da lua era bem vinda.

Meses depois, Eçauna pariu um lindo menino de pele bem mais clara.Algumas mulheres comentavam e riam, mas ela não se importava.Muitos trouxeram peixes, caça, ervas e raízes fortes, presenteando aquele que era filho das estrelas.

Eçauna era só carinho com o menino e decidiu chamá-lo de Jurandir.Ela o levava em suas caçadas e pescarias, e também nos seus passeios em noite de lua cheia.Ele observava tudo e corria para os braços dela, cobrindo-a de beijos.Tudo era harmonia.

Uma noite, quando Jurandir tinha sete anos, pai, mãe e Eçauna perceberam que ele falava de maneira estranha.Seus olhos estavam esbugalhados e ele desenhava figuras assustadoras na pedra do chão da oca.Eçauna se aproximou dos desenhos e reconheceu a estrela caída.Ela se assustou e agarrou o menino para protegê-lo do desconhecido.

Foram dormir, mas naquela mesma noite, ninguém percebeu o clarão vindo lá de fora.Nem o barulho do trovão.Nada.

No dia seguinte, Eçauna gritou tão alto como nunca tinha gritado antes.Mais alto até do que quando teve que fugir da jaguatirica.

Jurandir tinha desaparecido.

Durante dias e noites todos procuraram por ele, mas foi em vão.Cacique e outros guerreiros andaram muitos dias pelas terras desconhecidas, mas nem sinal do menino,Todos ficaram desolados.

Um dia, um guerreiro veio correndo avisar, que lá para os lados do rio, dois dias de caminhada, um monstro estranho foi encontrado.Todos foram até lá para ver o que era.

O monstro ainda soltava fumaça pelas ventas.Não era de palha, nem de pedra, era cinza como dia de chuva.Cacique chegou mais perto e viu que a barriga do monstro estava rasgada, e lá dentro dela havia dois homens mortos, que ele devia ter devorado.

Eçauna foi até lá na esperança de encontrar Jurandir, mas ele não estava lá.Apenas os dois homens brancos como ele.Ela chegou bem pertinho e viu que um deles era muito parecido com Jurandir, muito mesmo.

De repente, tomou um baita susto.O homem gemeu e abriu os olhos, fazendo com que todos se aproximassem.Aquele homem, mais velho que ela, mas que em tudo, na pele, nos olhos, no cabelo, na boca e no nariz se parecia muito com seu filho, não estava morto.

Ela levantou levemente a cabeça dele e passou um pouco de água em sua boca.Foi o suficiente para que ele acariciando o rosto dela, e num imenso esforço, pronunciasse ao mesmo tempo em que rolava sua primeira lágrima:

-Mãe...Voltei!

wagner silveira
Enviado por wagner silveira em 29/07/2011
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