OS CINCO IRMÃOS CHINESES (em prosa)

OS CINCO IRMÃOS CHINESES

--- Capítulo Um ---

Em uma aldeia junto ao Mar da China, morava uma família chamada Li. O sobrenome Li [que alguns escrevem Lee] é muito comum entre os chineses e eles têm o costume de botar primeiro o sobrenome e depois o nome próprio, ao contrário do que nós fazemos.

Pois estes Li eram descendentes de um dragão. Entre os chineses, os dragões são criaturas não apenas bondosas, como se podem transformar em seres humanos, só que embaixo da água. Quando em terra, eles são dragões, com um longo corpo de serpente, mas com patas e asas; no mar, eles viram seres humanos, de fato, pessoas muito bonitas e respiram perfeitamente embaixo d’água.

A mãe dos Lis, que se chamava Li Shinzen, tinha se apaixonado por um destes dragões, que a levara até seu palácio de madrepérola no fundo do mar, onde havia uma bola de ar entre as paredes e por isso, ela também podia respirar sem a menor dificuldade, só que não podia ficar morando lá todo o tempo, porque, durante o dia, o palácio desaparecia e o seu marido se transformava em dragão. Assim, ele sempre a conduzia até a superfície, um pouco antes do nascer do sol e a deixava na praia em segurança, antes de se transformar novamente em um dragão e sair voando atrás do carro do sol.

Ao longo dos anos, Shinzen teve cinco filhos com o dragão: Li Chang, Li Cheng, Li Ching, Li Chong e Li Chung, que foram criados por seus avós, porque o pai sabia ser perigoso criar as crianças embaixo do mar e só se viam de vez em quando, até que um dia o dragão precisou partir para outra guerra e achou melhor que se mudassem para uma província distante, onde passaram a viver muito bem em uma choupana, um chalé de madeira coberto de capim santa-fé, comprado com taéis de ouro fornecidos pelo dragão, até que este morreu em uma batalha travada contra os tubarões. Como os meninos já estivessem grandes, cada um foi aprender uma profissão para se manterem. Li Chang se tornou pescador; Li Cheng pastor de cabras no alto da montanha; Li Ching tornou-se lenhador; Li Chong virou ferreiro e Li Chung aprendeu artes marciais e se alistava como guarda das caravanas ou para proteger os mercadores nas feiras.

O que ninguém sabia, a não ser os da família, é que os filhos haviam herdado os poderes mágicos do pai; só que, como a mãe era humana, cada um deles tinha herdado um único poder.

Li Chang era capaz de engolir quanta água quisesse, até mesmo o mar, como o pai fazia, para abrir um caminho no fundo, pelo qual passeava de braço dado com Li Shinzen, enquanto lhe mostrava as maravilhas do leito do oceano.

Li Cheng podia passar horas e horas sem respirar e não se sufocava de jeito nenhum, do mesmo modo que seu pai dragão podia voar muito, muito alto, até onde não houvesse mais oxigênio, por isso ficava muito à vontade no alto da montanha, onde quase não havia ar.

Li Ching tinha o pescoço de ferro, por baixo de uma camada de tinta cor-de-pele, que passava sempre que ia sair de casa, do mesmo modo que o pescoço do dragão seu pai, que não podia ser cortado, ou então que disfarçava, enrolando um lenço grande ou um pano em volta do pescoço.

Li Chong não se queimava, por maior que fosse o calor e nem se importava com as chamas da forja da ferraria: chegava a pegar os ferros em brasa com as mãos, quando não havia ninguém olhando; e assim fazia os objetos mais delicados com os dedos, enquanto todos pensavam que ele os fazia com o malho e as tenazes.

Finalmente, Li Chung, o mais parecido com o pai, era invulnerável, nem pau, nem pedra, nem bronze, nem ferro, nada podia fazer nele sequer um arranhão, do mesmo modo que os dragões têm o couro e as asas invulneráveis e só podem morrer se uma lança lhes for enfiada pela boca até o fundo da garganta, porque não são invulneráveis por dentro. Por dentro eles são gente e só criam as cascas, patas e asas de dragão durante o dia.

Assim, os cinco irmãos chineses, Li Chang, Li Cheng, Li Ching, Li Chong e Li Chung viviam muito confortavelmente e cada um trazia o que ganhava para sua mãe Li Shinzen, embora apenas viessem de noite, escondidos, para que ninguém soubesse quantos eram.

Outra coisa que ninguém sabia era que os cinco eram perfeitamente iguais, embora não fossem gêmeos. Todos usavam um chapéu de bambu em forma de cone, batas e calças de brim azul e sandálias de sola de madeira, tinham olhos estreitos e oblíquos, nariz de bolinha, caras redondas e sorriam de um jeito que os dois dentinhos de cima apareciam por fora da boca. Além disso, todos tinham cabelos pretos e lisos, que usavam bem compridos, mas presos em uma longa trança que chegava até a cintura.

Quando pequenos, tinham tamanhos diferentes, mas ao crescerem, ficaram todos exatamente da mesma altura. Como eram iguais, evitavam serem vistos juntos em público, era outro segredo de família, porque o seu pai dragão, antes de partir para a última guerra, ordenara que mantivessem isso em segredo e, além de serem obedientes, acreditavam que isto poderia vir a ser útil algum dia. Quando meninos, só brincavam dentro de casa e depois de adultos, moravam em lugares bem distantes, de tal modo que todos pensavam que Li Shinzen era uma viúva com um único filho e tinham muita pena dela, porque os chineses antigamente gostavam de ter famílias bem grandes e é por isso que existem tantos chineses hoje em dia.

--- Capítulo Dois ---

Todas as madrugadas, antes que os vizinhos se levantassem, os cinco irmãos saíam para o trabalho, um a um, procurando não ser vistos perto de casa, assim o segredo da família era mantido.

Li Chang saía para a praia empurrando um carrinho de mão com quatro cestos para colocar os peixes que pegasse.

Li Cheng saía noite escura para a montanha, depois pegava as cabras em uma caverna protegida por um cercado e subia a montanha com elas. Quando o tempo estava bom e havia frutas e raízes que pudesse comer lá em cima, ele chegava a passar várias semanas sem voltar para casa.

Li Ching também saía muito cedo e ia até a floresta, onde se encontrava com seus companheiros de trabalho. Ninguém sabia que ele tinha o pescoço de ferro, por isso achavam que ele era muito corajoso quando subia pelas árvores para cortar os galhos ou a ponta, para facilitar o corte; só ele sabia que, se caísse, não poderia quebrar o pescoço.

Li Chong também saía bem cedo para a ferraria, acendendo um fogo muito forte. Ele tinha ajudantes para soprar o fole, a fim de manter o fogo bem quente ou para lhe alcançar ferramentas, pedaços de ferro ou baldes de água para resfriar o ferro em brasa, mas era bem cedo que ele fazia os trabalhos mais delicados, sem que ninguém visse como ele usava as mãos sem se queimar.

Li Chung saía ainda mais cedo, para acompanhar as caravanas, que são longas filas de camelos, cavalos, burros ou mulas carregados de mercadorias para vender bem longe, acompanhando os mercadores, que eram os negociantes e às vezes, ficava meses fora de casa. Quando não havia caravanas, ele trabalhava como guarda na feira e usava um capacete e armadura e até mesmo luvas de malha de aço para que ninguém notasse como ele era parecido com Li Chang, o vendedor de peixes. Ninguém estranhava que o guarda usasse essas coisas e elas o deixavam mais imponente, de modo que raramente precisava mesmo de brigar.

Por sorte, a casa deles ficava retirada da aldeia, de modo que só quem passasse pela estrada ou algum vizinho muito bisbilhoteiro poderia observar as idas e vindas dos irmãos. Era mais seguro assim e eles não queriam que ninguém soubesse dos poderes que tinham, porque poderiam pensar que eram bruxos e isto não seria nada bom para eles, ainda mais se descobrissem que seu pai era um dragão. Li Shinzen, a mãe deles, só se mudara para a aldeia um pouco antes de ficar viúva, ninguém sabia quem tinha sido seu marido e ela tivera o cuidado de nunca mostrar os cinco filhos ao mesmo tempo, se bem que, quando pequenos e ainda moravam com os avós, tinham alturas diferentes e formavam uma escadinha; eram quase iguais, mas ninguém estranhava, porque todos os chineses verdadeiros, que são chamados de Han, são mesmo parecidos uns com os outros.

--- Capítulo Terceiro ---

O que acontece quando uma pessoa pode engolir toda a água que quiser e é um pescador? Li Chang saía sempre de madrugada, na hora em que os chineses acreditam que há "maus espíritos" andando por toda a parte e têm medo de sair de casa. Como o pai dele era um dragão, ele era meio espiritual também e não tinha medo. Se bem que nunca tinha encontrado qualquer espírito andando por aí de madrugada, fosse bom ou fosse mau.

Seja como for, lá ia o Li Chang empurrando seu carrinho de mão com dois cestos e mais uma vara atravessada nos ombros com outros dois cestos grandes pendurados. Podia estar escuro, mas ele conhecia o caminho. Podia estar chovendo, mas ele engolia a chuva que estava na frente dele e quando chegava embaixo de uma árvore, cuspia tudo de volta... Até chegar à praia.

Quando ele chegava, primeiro olhava em volta, para ver se não havia ninguém por perto, já que alguém que não acreditasse em maus espíritos podia estar espiando para ver o que ele fazia. Satisfeito de estar sozinho, Li Chang se ajoelhava na beira da praia e só então começava a beber o mar. Infelizmente, com o tempo se acostumou a não encontrar ninguém, esqueceu as precauções e isto ainda veio a lhe causar um sério problema.

Ele engolia o mar em largas tragadas, tanto que uma boa parte do mar ficava a seco. Apareciam peixes, estrelas do mar, pepinos do mar, algas marinhas, conchas e caramujos, mexilhões e siris, todo tipo de seres marinhos, às vezes até mesmo baleias e golfinhos, todos pulando por falta da água. As baleias e golfinhos não precisavam, mas os outros bichos morriam se ficassem fora da água muito tempo. Apareciam até mesmo os cascos de navios naufragados. Li Chang então entrava mar a dentro, sem molhar os pés e começava a catar os peixes maiores. Assim que enchia os seus quatro cestos, corria bem depressa para a praia e cuspia o mar de volta. As águas corriam como uma cascata, parecia impossível que tanta água coubesse dentro dele. Mas logo os navios naufragados ficavam cobertos de novo. A seguir as baleias e golfinhos saíam nadando. Daí a pouco os peixes que ele não havia pegado e as outras criaturas marinhas se recuperavam da falta de água e tudo voltava ao normal.

Como Li Chang fazia tudo muito depressa, nem dava tempo para o resto do mar vir ocupar aquele trecho diante da praia e não ficava nenhum sinal, embora o seu poder mágico fizesse com que as ondas se acumulassem no horizonte. Mas ele sempre escolhia a maré baixa, quando as águas correm mesmo para o alto-mar. Nem os peixes, nem os polvos, nem as mães-d'água, nem as estrelas do mar, nem os pepinos do mar, nem os corais, nem os moluscos de concha sofriam, porque a falta de água era muito rápida. E não ficava o menor sinal na praia de que alguma coisa fora do comum tinha acontecido.

Depois Li Chang ia até em casa, separava os peixes melhores para a mãe e saía pelos fundos, cruzava uma colina e ia até outra parte da praia. A essa altura, os irmãos já tinham saído também, cada um para o seu trabalho. Ele dava a volta e caminhava pela praia como se tivesse ido pescar mais longe. Já estava ficando claro, e quando ele tomava o caminho da aldeia, empurrando o seu carrinho carregado, passava pelos outros pescadores que estavam descendo, carregando suas redes para entrarem na água, abrir as redes e puxarem de volta para a praia com tudo o que podiam trazer, que depois dividiam entre si.

Ele sempre levava uma rede enrolada no pescoço, como se a tivesse usado para pescar e a molhava bem antes de voltar, só assim os outros não desconfiavam. Mas é claro que não gostavam de que ele já estivesse de volta com os melhores peixes, enquanto eles recém estavam indo. Mas não podiam fazer nem dizer nada, porque eles mesmos não saíam mais cedo por medo dos maus espíritos (que não existiam). Pelo menos, Li Chang nunca tinha encontrado nenhum.

Depois disso, ele ia até a aldeia vender o peixe na feira e ganhava um bom dinheiro, além de dar os peixes que sobravam de presente para os pobres. Quando os outros pescadores chegavam, ele já estava voltando para casa. Mas é claro que eles sabiam que muita gente já tinha comprado o que queria de peixes para esse dia e assim achavam que Li Chang os estava prejudicando e ficavam com raiva dele. Mas o resto do povo da aldeia gostava dele e o intendente do mandarim sempre estava lá para comprar os melhores peixes, garantindo que ele fosse protegido pelo mandarim. Li Chang voltava para casa e passava o dia sozinho com a mãe, a Li Shinzen. Quando um de seus irmãos estava em casa, ele ia dormir durante o dia, mas os vizinhos que passavam viam um homem igual a ele cultivando a horta, cortando lenha ou consertando o telhado e pensavam realmente que fosse filho único.

--- Capítulo Quarto ---

Li Chang vivia muito bem com seu trabalho de pescador, escolhia os melhores peixes para entregar à sua mãe Li Shinzen e vendia o resto por um bom dinheiro. Mas os outros pescadores começaram a criar rancor e a comentar que ele deveriam ser um bruxo, porque além de conseguir sempre pescar mais do que eles, ainda andava no escuro da noite sem ser atacado pelos maus espíritos.

Outros perguntavam diretamente por que ele conseguia pescar tanto, qual era o segredo, mas ele só dizia que, além de chegar primeiro, ia pescar nas enseadas ao longo da costa, em que havia mais peixes do que na praia junto à aldeia, em que todos pescavam diariamente. Como é que poderia contar a verdade? E se contasse, quem o haveria de acreditar? Mas os boatos corriam sobre a razão de tanta sorte, só que as histórias sobre os maus espíritos eram ainda mais comuns e as pessoas continuavam com medo de sair à noite.

Porém um dia, Wang Kaipei, o filho mais velho do Mandarim Wang Shihtzu, que era o governador da província, um rapaz que vivia fazendo estripulias e se embriagando, jogando e brigando, bebeu ainda mais que de costume e fez uma aposta com os amigos de que seria capaz de descobrir o segredo de Li Chang.

Saiu da estalagem antes mesmo que o pescador se levantasse, porque nem havia dormido... Tomou ainda mais aguardente para criar coragem e foi tropeçando e cambaleando em direção à praia, orientado pelo barulho das ondas, apesar de todo o escuro, até que se escondeu atrás de uma duna de areia, esperando que Li Chang aparecesse. Dito e feito! Li Chang surgiu na hora de costume e Wang Kaipei se encolheu muito quieto e silencioso embaixo de seu manto. De fato, Li Chang olhou em volta, mas não viu ninguém, como de fato nunca via e então baixou os cestos na areia da praia, ajoelhou-se e começou a beber o mar.

Wang Kaipei não podia acreditar nos próprios olhos. Sacudiu a cabeça, pensando que estava enxergando coisas por efeito da bebedeira, que ainda não havia passado, caso contrário, ele não teria tido coragem de enfrentar os espíritos da noite...

Mas depois de firmar a vista, percebeu que não estava vendo coisas... Li Chang continuava ali, agachado, bebendo o mar e o mar recuava cada vez mais, enquanto ele entrava, caminhando pelo fundo seco, carregando duas cestas de cada vez, avançando cada vez mais pelo mar adentro e para longe da praia.

Wang Kaipei não se aguentou mais, pulou fora de seu esconderijo e correu até a praia. Meio atolando os pés na lama do fundo, avançou até onde estava Li Chang e perguntou o que ele estava fazendo. Li Chang ficou muito assustado, mas não respondeu nada, porque não podia, nem que quisesse. Estava com o estômago cheio d'água e sua cabeça tinha aumentado dez vezes o tamanho normal.

Wang Kaipei ficou olhando para ele, assombrado, enquanto Li Chang lhe fazia sinais para que voltasse para a praia, porque já tinha enchido os cestos e precisava vomitar o mar de volta. Além disso, muito longe, já se avistavam as ondas acumuladas e que, a qualquer momento, se lançariam para ocupar o espaço vazio junto à praia.

Mas Wang Kaipei não lhe deu a mínima. Ao contrário, começou a passear e viu lá adiante um navio naufragado. Li Chang gemia, suspirava, grunhia, mas não conseguia falar e muito menos explicar o que estava acontecendo e o perigo que se aproximava. E o filho do mandarim correu até o casco do navio afundado.

Li Chang fazia acenos desesperados. O tempo estava passando e a vida marinha iria morrer por falta de água... Além disso, já mal conseguia conter as ondas que se avolumavam no horizonte. Ele não podia correr e puxar o rapaz, estava pesado demais e se ficasse ali, se afogaria. Tampouco podia gritar, cheio de água como estava...

Desesperado, caminhou até a praia, soltou os cestos e começou a acenar ainda mais, soltando um uivo pelo nariz para chamar a atenção do rapaz... Ele nem sabia que era o filho do mandarim, mas ficaria preocupado com qualquer pessoa que corresse tal perigo, porque era um homem de bom coração.

Wang Kaipei havia subido no barco afundado e do convés apodrecido soltava gargalhadas e acenava de volta para o pescador parado na praia... Depois, movido pela curiosidade, entrou por uma porta para dentro da cabine do barco... Li Chang não conseguiu resistir mais e começou a cuspir o mar de volta para seu leito... E já não era sem tempo... As ondas se aproximavam e bateram contra o mar que Li Chang devolvia, com um grande estrondo. A violência do choque desmanchou o que restava do barco naufragado.

--- Capítulo Quinto ---

Li Chang ficou desesperado com o que acontecera. Tirou as sandálias de sola de madeira, tirou o chapéu, retirou a bata azul e se atirou nas águas ainda encapeladas. Nadou até onde estivera o navio e logo encontrou o corpo do rapaz flutuando no torvelinho, no meio dos destroços. Agarrou-o depressa, percebendo que o outro nem tentava segurá-lo, como fazem os que se estão afogando, passou a mão direita pelo seu pescoço e nadou até a praia com a mão esquerda e batendo os pés. Ao chegar, soltou o corpo na areia e tentou fazer respiração artificial, mas não adiantou nada, Wang Kaipei se havia afogado e já estava morto.

Li Chang pensou um pouco e, deixando de lado os cestos com a pesca daquele dia, colocou o corpo do rapaz em seu carrinho de mão, vestiu a bata, colocou o chapéu, calçou as sandálias e subiu a ladeira, empurrando o carrinho, muito mais pesado do que de costume. Sentia que era seu dever levar o morto até a aldeia, para ver se alguém o conhecia.

No caminho de volta, encontrou cinco de seus colegas pescadores,

justamente os que menos gostavam dele. Sem malícia, mostrou o corpo, dizendo que as ondas o tinham levado à praia. Quem iria acreditar, caso fosse contar a verdade? Os pescadores reconheceram o cadáver na hora e já lhe disseram, até meio rindo, que ele tinha matado o filho do mandarim. Li Chang protestou que não tinha matado ninguém, só havia recolhido o corpo, mas um dos seus inimigos mostrou as marcas no pescoço, por onde ele o havia puxado.

Li Chang ficou sem saber o que fazer e os outros, fingindo-se de amigos, foram empurrando o carrinho até a aldeia, onde o povo já esperava pelos peixes de Li Chang. Para mal dos pecados, o intendente do mandarim já estava lá... Os cinco pescadores se entenderam em cochichos e dois deles seguraram Li Chang, embora este não resistisse, como se o tivessem prendido e trazido à força. Eles chegaram até o intendente e contaram uma história totalmente mentirosa, que tinham visto Li Chang brigando com Wang Kaipei e haviam tentado apartar, mas já era tarde demais, pois o pescador já o havia estrangulado. Ainda disseram que ele tinha tentado fugir, mas que o haviam agarrado e empurrado o carrinho com o corpo até a aldeia.

Li Chang tentou se defender, mas de nada adiantou. O intendente chamou os soldados que o acompanhavam e estes amarraram o pobre rapaz e o levaram manietado até o pagode do Mandarim Wang Shihtzu, enquanto os cinco pescadores se revezavam para empurrar o carrinho de mão com o corpo, logo atrás deles.

Quando o Mandarim soube da morte do filho, ficou desesperado. Sabia que fazia todo tipo de más ações, mas era seu único filho. Os pescadores não perderam tempo em contar de novo sua história mentirosa, agora enfeitando que quase não tinham conseguido puxar as mãos de Li Chang do pescoço de Wang Kaipei, de tanta raiva que ele estava do pobre filho do honrado Mandarim Wang Shihtzu. E por mais que Li Chang protestasse, os cinco insistiram na história e Li Chang foi posto na prisão.

Ora, o Mandarim era um homem honrado e por mais que estivesse sentido pelo que acontecera, decidiu dar um julgamento público ao acusado. No outro dia, repetidas as declarações dos cinco mentirosos, que haviam decorado a história palavra por palavra durante a noite, ele interrogou Li Chang, que só pôde repetir que encontrara o corpo trazido pelas ondas, mas o Mandarim o fitou bem firme nos olhos e soube que estava mentindo. Insistiu nas perguntas, Li Chang ficou hesitante, mas como iria dizer que havia engolido o mar e que o rapaz correra até o navio e assim se afogara?

Sem ter mais dúvidas, o Mandarim declarou que a alma de seu filho exigia a morte do assassino e determinou que Li Chang fosse enforcado no outro dia pela manhã.

--- Capítulo Sexto ---

Li Chang suplicou então ao Mandarim que o deixasse despedir-se de sua velha mãe. Como este tinha bom coração, concordou, mandando levar Li Chang para casa, amarrado e acompanhado por uma escolta de dez soldados, para que não tentasse fugir.

Mas a notícia correra de boca em boca e Li Cheng havia descido da montanha, sem que ninguém percebesse, porque toda a aldeia estava reunida para assistir o julgamento e já se escondera em casa.

Os soldados bateram na porta e Li Shinzen apareceu, desesperada. O chefe da guarda ficou com pena, distribuiu seus soldados ao redor da choupana, desamarrou Li Chang e deixou que entrasse sozinho, para se despedir da mãe com mais intimidade.

Daí a meia-hora, o chefe da guarda bateu na porta e Li Cheng saiu, enquanto Li Chang ficava escondido. Abraçou e beijou a mãe de novo, aos prantos, deixou que o amarrassem e seguiu com a escolta até a prisão, sem protestar.

No outro dia de manhã, levaram Li Cheng para a forca. Ora, Li Cheng era o irmão que não se sufocava e podia passar horas sem respirar. Quando se abriu o alçapão, ele ficou pendurado na ponta da corda, sem morrer e sem dar sinais de incômodo. Todos se surpreenderam e o Mandarim ordenou ao carrasco que verificasse se o baraço, isto é, o nó da corda, estava bem firme. O carrasco confirmou, puxaram Li Cheng de volta e o soltaram outra vez no ar. O rapaz ficou balançando, mas sem morrer e, depois de algumas horas, todo o povo começou a protestar que ele deveria ser solto.

O Mandarim ficou em dúvida, mas era seu filho que havia morrido e então ordenou que ele fosse levado de volta para a prisão, para ser decapitado, isto é, ter a cabeça cortada, no outro dia de manhã bem cedo.

Então Li Cheng, com a voz meio rouca, mas perfeitamente bem de saúde, suplicou ao Mandarim que o permitisse despedir-se de sua velha mãe... O Mandarim, que tinha bom coração, entendia amor filial, mesmo que seu filho tivesse sido tão indiferente a ele e concedeu o pedido.

--- Capítulo Sétimo ---

Li Cheng foi levado até a choupana de sua mãe, atado e escoltado por dez soldados. Ao chegar, de novo o chefe da guarda distribuiu os soldados ao redor da casa, para que não pudesse fugir pelos fundos ou por uma janela, desamarrou o rapaz e deixou que entrasse sozinho em casa para beijar sua mãe uma última vez.

O que ele não sabia era que Li Ching havia escutado a notícia e viera em segredo da floresta, escondendo-se em casa sem que ninguém visse. Ora, Li Ching era o irmão que tinha o pescoço de ferro e passava com um pano enrolado para que ninguém notasse ou então pintava o pescoço com tinta cor de carne, justamente o que fizera desta vez e com o máximo de cuidado para que a tinta não descascasse.

Daí a meia-hora, quando o chefe da guarda bateu na porta, Li Ching saiu chorando depois de um último abraço em sua mãe viúva... Ela também ficou chorando na porta, enquanto Li Ching era amarrado e conduzido pela escolta de volta à aldeia e Li Chang e Li Cheng continuavam bem escondidinhos no porão da casa.

No outro dia de manhã, levaram Li Ching até o cadafalso, a plataforma das execuções e ele se ajoelhou, ainda amarrado, com a cabeça sobre um cepo, que era um pedaço de tronco. Todo o povo assistia, enquanto o carrasco erguia a espada e largava com toda a força, mas o pescoço continuou inteiro!... O carrasco bateu com mais força ainda e a espada se entortou! Ele tentou uma segunda e uma terceira espadas com o mesmo resultado... Foi buscar um machado e a lâmina se quebrou, enquanto Li Ching continuava ajoelhado, quietinho e sem reclamar.

Todo o povo exigiu que ele fosse libertado, que era a vontade dos duzentos mil deuses da China, que não queriam a morte de um inocente... Só os cinco acusadores gritavam o contrário... O Mandarim era um homem esclarecido e não acreditava que houvessem tantos deuses assim... quando muito, uma meia dúzia... Mas era seu filho que havia morrido e ele acreditava que a alma do morto exigia vingança de seu assassino.

Então, ele determinou que o culpado seria queimado vivo no outro dia de manhã e ordenou que o reconduzissem à prisão. Mas Li Ching suplicou que o deixasse ir despedir-se de sua velha mãe viúva. O Mandarim, mesmo um tanto desconfiado, achou que era o mínimo que podia fazer, já que um daquela meia dúzia de deuses podia mesmo estar protegendo um inocente... E novamente deu sua permissão.

--- Capítulo Oitavo ---

Li Ching foi levado para a choupana da mãe pelo mesmo chefe da guarda e seus dez soldados, muito bem amarrado, embora os soldados agora olhassem para ele com um certo medo. Em lá chegando, o chefe da guarda distribuiu a escolta em torno da morada, desamarrou Li Ching e deixou que ele entrasse para se despedir da mãe.

Mas o que ninguém sabia é que Li Chong soubera da notícia e fechara a sua ferraria na outra aldeia, viajando ocultamente e sem ser visto até se introduzir na casa da mãe. Assim, Li Ching entrou, mas quem saiu foi Li Chong, fingindo chorar muito e sem querer se desprender do abraço da mãe. A saudade não era fingida mesmo, porque ele morava longe e raramente vinha em casa...

Ora, Li Chong era o irmão que não podia se queimar... Assim, no outro dia de manhã, ele foi amarrado a uma estaca em cima de um monte de lenha e o Mandarim ordenou que acendessem o fogo. As labaredas consumiram a lenha, a estaca e as roupas de Li Chong, mas ele continuou em pé, sem se queimar e sem sequer uma bolha na pele.

O Mandarim mandou colocar mais lenha e mais palha, com resultado idêntico. O povo inteiro protestava que era a vontade dos duzentos mil deuses da China e de todos os gênios imortais que ele fosse libertado, porque o rapaz era inocente. E já havia gente empurrando os guardas para soltar o prisioneiro, que todos pensavam ser Li Chang.

Mas o Mandarim não cedeu, mandou prender o rapaz outra vez e declarou que ia decidir durante a noite qual seria a sentença a ser aplicada ou então se determinaria que fosse libertado, a fim de acalmar os brados da multidão. Mas Li Chong lhe pediu mais uma vez para se despedir da velha mãe. O Mandarim ia dizer que não, mas a gritaria foi tão grande, que ele consentiu.

--- Capítulo Nono ---

Mais uma vez, a escolta transportou o prisioneiro amarrado até a casa da mãe, pensando que era Li Chang. Só que, três noites antes, Li Chung havia deixado a caravana e viajado de volta à toda pressa, até chegar em casa de sua mãe, sem ser visto por ninguém.

Assim, Li Chong entrou e, daí a meia-hora, saiu Li Chung. Desta vez, as lágrimas dele e da mãe eram reais. Li Chung era invulnerável, não podia ser ferido nem por paus, nem por pedras, nem por golpes de metal, mas o Mandarim não proferira ainda a nova sentença. E se ele decidisse mandar envenenar o prisioneiro? Porém Li Chung era um soldado, muito corajoso e amava muito seus irmãos.

No dia seguinte, quando foi conduzido ao local da execução, o patíbulo tinha sido desmontado e haviam cravado uma estaca no centro do pátio. Li Chung foi amarrado e o Mandarim ordenou que ele fosse apedrejado, isto é, matado a pedradas. Já haviam trazido três carroças cheias de pedras. O povo se recusou a participar, mas os soldados obedeceram às ordens e durante duas horas jogaram pedras em Li Chung, que ficou parado ali, com um sorriso nos lábios, sem nunca se machucar.

O Mandarim ficou furioso, mas não perdeu a calma, mandou que trouxessem uns cacetes e o matassem a pauladas. De novo, foi inútil, os porretes quebravam e ele não ficava sequer com um galo na cabeça. Então mandou que o flechassem, jogassem lanças, cortassem com as espadas... Nenhum resultado. Até os soldados se rebelaram, e o povo quase iniciou uma revolução, pedindo que aquele inocente fosse libertado para obedecer à vontade dos duzentos mil deuses da China, de todos os gênios imortais e dos espíritos de seus antepassados.

O Mandarim mandou chamar o bonzo, que era o padre da aldeia e o consultou. O padre disse que não sabia se era a vontade dos deuses que aquele rapaz morresse, mas que o morto não podia ficar sem ser vingado, senão se tornaria mais um mau espírito a rondar a aldeia. Decerto o que acontecia é que os deuses queriam que ele morresse do mesmo jeito que morrera o filho do Mandarim, isto é, que deveria ser afogado.

O Mandarim concordou e até o povo se calou, porque tinham muito receio das maldições do bonzo. Mas Li Chung pediu mais uma vez que o deixassem se despedir de sua velha mãe viúva.

Se fosse pela vontade do Mandarim, ele nem teria deixado, mas ficou com medo de que o povo se revoltasse. E mais uma vez, permitiu, enquanto ordenava que preparassem um tanque cheio de água durante a noite para o afogamento do dia seguinte.

--- Capítulo Décimo ---

E o que foi que aconteceu? Li Chung foi levado manietado para casa, deixaram que entrasse para beijar a mãe e quem saiu foi Li Chang, que fora acusado desde o começo. Ele passou a noite na prisão e no outro dia, novamente o povo estava reunido em torno de um buraco bem fundo cavado no chão e cheio de água do mar.

Ora Li Chang não somente podia beber o mar. Ele não se afogava de jeito nenhum... Prenderam ferros pesados com correntes ao redor de sua cintura, dos pés e do pescoço e o jogaram no fundo do tanque. O tempo foi passando e nada de morrer. O povo reclamava e até o chefe da guarda começou a se mostrar revoltado.

O bonzo começou a cochichar no ouvido do Mandarim. Seus olhos se iluminaram e mandou tirar Li Chang de dentro d’água e desamarrá-lo, mas ordenou aos soldados que prendessem em vez dele os cinco pescadores que o haviam acusado em falso. Deixaram que Li Chang fosse para casa, mas o Mandarim proclamou que decerto eram eles que haviam matado seu filho e não aquele inocente, portanto a alma de seu filho só teria descanso depois que todos fossem castigados. E não adiantou suplicarem perdão e protestarem inocência, porque toda má ação é castigada, mais cedo ou mais tarde.

O primeiro mentiroso foi enforcado e morreu em seguida.

O segundo mentiroso foi degolado e o ferro nem entortou.

O terceiro mentiroso foi levado a uma fogueira e se queimou.

O quarto mentiroso foi morto a pedradas.

O quinto mentiroso foi jogado no tanque e se afogou depressa.

Mas a família decidiu que não podia continuar mais morando ali. Arranjaram seus pertences, enquanto Li Shinzen vendia a casa e os móveis. Todos achavam que ela era protegida pelos deuses e não tentaram se aproveitar da situação.

Com o dinheiro, eles viajaram para um país além das montanhas e em toda a China nunca mais se ouviu falar deles. Uns dizem que foram para a Cochinchina, outros para o Japão, outros para a Tailândia, ainda outros para o longínquo e frio Tibete.

Mas de fato, eles foram para a Nagalândia, que fica no sul da Índia, onde os cinco se casaram e tiveram muitos filhos. É claro que não viveram para sempre, que nem os dragões são eternos, mas até hoje mais de cem famílias de nagalandeses dizem descender dos Cinco Irmãos Chineses e todos os anos se reúnem em um grande festival.

Entrou pela porta e saiu pela cozinha,

Quer quiser outra história, que tire da latinha...

William Lagos
Enviado por William Lagos em 15/06/2011
Código do texto: T3036147
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