A Maçã de como uma Pálpebra segura uma Lágrima
Ah, a cristalina água do campo, correndo feliz, com seu frescor líquido...
Parecia ecoar de dentro de mim, pois eu me via fazendo parte dela! Eu me via espelhado em sua tranquila transparência. A água nadava em mim, eu sentia.
O sol brilhava devagar lá no alto, ofuscado pelos conjuntos geométricos de árvores, compridas, retorcidas, com folhas tão verdes que a cor ultrapassava seus limites e se misturava com esse límpido ar da primavera...
Dava pra se perceber algumas nuvens que por vezes nublavam a natureza, e ao fechar os olhos, eu, com meu corpo nu na água corrente, podia navegar com elas, podendo ter a forma que eu quisesse. Eu nada estava a 'fazer', estive ali, apenas existindo. E as maravilhas infinitas vinham como fadas do astral beijando delicadamente minha alma, me levavam nas asas de muitas espécies de aves, num profundo pulsar de energia, para compartilhar minha Paz nas redondezas campestres...
Até que uma onda trouxe acolhida a si uma linda maçã (linda mesmo), que me tocou de leve na água. Graciosa, despertou-me agradavelmente, pois seu formato flamejava na superfície da perfeição. Sua casca estava tão pura, que podia nitidamente refletir a minha imensa gratidão... Era vidro sem atrito. Sua cor variava sensivelmente de vermelha para azul, e essa transição de cores se manifestava num sorriso! Um contagiante sorriso cósmico.
Mas não veio de mim.
A maçã. Ela, sorria inteiramente... Por sabe que eu a sentia na verdade, justamente por isso.
Ama sã.
Éramos eu e a maçã, em meio ao segundo plano de belezas naturais que cantavam aquela cena, onde a brisa era um pomposo arco de violino, que chorava alegremente sobre as cordas do Vale Iluminado, representadas pela folhagem dos longos eucaliptos. Um mero detalhe perante a grandeza de toda a orquestra divina que ali celebrava a incríveis melodias, que transmitiam a vitalidade. A vitalidade que me ligava a Ela, e que a ligava a Mim.
Degustávamos da mesma energia. Profunda contemplação do amor.
Meu braço esquerdo repousava pela água, água que se entrelaçava por entre os meus dedos, brincando de dançar, enquanto minha mão adormecia, essa mão era o recheio da grande gelatina do rio a fluir. Todo o meu corpo de luz era amigo da maçã. Presença sagrada.
Minha mão direita unida com a fruta servia como um pedestal, então a vim trazendo para mais perto de minha pacífica face...
Ela ficou maior e mais intensa quando se posicionou mais próxima de meus olhos, e a pirâmide do emu terceiro olho começar a repuxar num leve formigamento, mas que quase me levou ao êxtase.
Ela ficou mais sensível, pois pude perceber com mais clareza seu aroma tão perfumado, que era capaz de nos carregar e flutuar, apenas pelas pétalas de cheiro que se projetavam pelas tubulações do inconsciente.
Ela ficou mais comunicável, possuia o dom mágico da expressão. Minha audição podia perceber novos universos, a nova era de ciclos paralelos que se sobressaiam das frequências sonoras por ela emitida.
Em meus dedos e nos tapetes de almofadas da palma de minha mão, foi como se estivesse infiltrando, ramificando em raizes de energia, que pude sentir fluindo em minha rede sanguínea... Meu coração pulsava os batimentos cardíacos de entidades superiores, o batimento das constelações, das estrelas, dos planetas.
A superfície do meu rosto, a minha pele, sentia as vibrações de calor ou de frio que Ela emanava. Mas era algo além da temperatura.
Eu segurava a maçã como uma pálpebra segura uma lágrima.
Ela se encontrava bem próxima de meus rosto e meus sentidos de tão intensificados estavam a ponto de se unir.
A fruta era por meus lábios admirada, eles a penetravam em sua observação... Um instante de tão inédito silêncio... Cheguei a acreditar que o que estava quieto sobre a minha mão era minha boca, e no lugar da boca em meu rosto seria a fruta.
...Eu a beijei.
Senti o contato de cada gotícula de água que nela permanecia como pequenos cristais de luz a enfeitando. Nada fora disso pareceu existir neste instante eterno! Porque esse contato foi tudo, a própria criação. O próprio Criador.
A orquestra das árvores, da natureza, vai então se iniciando novamente, bem baixinha, bem calminha...
Já noto, numa fina linha de percepção, os lençóis d'água se divertindo à minha volta e fazendo me mover, quase imperceptivelmente, num movimento de vai-e-vem... Para frente, e para trás, de um lado... E outro...
Sutil.
A Maçã!
Eu a olho. Meus olhos falam: "Eu a dei um beijo."
Mas ela me induziu a isso.
Nela, havia toda a sabedoria da Natureza. Como se fosse o centro, o núcleo, a nascente de um grande rio de harmonia, que chega então à tenebrosa cachoeira... E vai caindo! E se dá conta então da liberdade do Amor!
Amar durante uma queda d'água de 215 metros de altura e desconhecer o medo !!
A maçã eu deixo intacta... Solto-a pela maciez da água que a leva. Até porque ninguém terá poder de transformá-la para o que ela não é. São segredos intactos da união celeste. Ela se utilizou de meus instrumentos humanos, mecanismos, para traduzir sua mensagem. Eu existo, e saboreio a água da Fonte da Existência. A água me saboreia.
E a Maçã, eu digo agora, foi ela que me beijou.