A CORRIDA DOS CARANGUEJOS

Aos pescadores de Igapó e de Redinha

ERA noite, a Lua imperava o reino do macrocosmo e se fazia o centro das atenções de todos e para todos que a admiravam da terra. Estava belíssima. Karang, um jovem crustáceo, se deliciava igualmente a todos mas com uma certa curiosidade distinta. Sua mente matutava alguma coisa além da beleza anestesíaca de Lucina. Kar, como ele gostava de ser chamado, era orgulhoso e sonhador. Era daqueles que questionava tudo como uma criança que está a desvendar as coisas, o mundo: “Por que isso?” “Por que aquilo?” Perguntava, mas acima de tudo, questionava, refutava e queria a prova real e cabal das coisas. Queria a sua verdade.

Naquela mesma noite, cansado da monotonia da vida que levava em seu habitat, resolveu de uma vez por todas dar um novo rumo à sua vida. Não muito obstante, o Jovem Kar tivera a ousadia de querer mudar o modus vivendi de sua própria espécie. Na intenção de fazer com que sua própria espécie vivesse uma vida diferente, ou seja, semelhante à dos humanos. Um afã incompreensível e quem sabe, demente?

Mas, o que levara o jovem Kar a tomar tal decisão? Certamente, o mesmo que levaria a todo e qualquer jovem da sua idade que pensa - sonhador inato - a fazer. Ou seja, fazer do pensar sua realização mais concreta.

Como disse, Kar era sonhador e não se contentava em sonhar simplesmente. Tinha no âmago a força de querer realizar, a qualquer preço, tudo que sonhava. Isso era uma das suas grandes virtudes. Não era pouco nem muito de concordar com a idéia de viver no mundo dos sonhos - como a maioria dos seus, na sua idade -, era mesmo de querer viver nos Sonhos do Mundo.

Sim, queria desvendar e viver os Sonhos do Mundo, porque o instigava e o estimulava. Tudo isso fazia seu coração palpitar com mais vigor e prazer. Tinha em si o afã de ser o idealizador e realizador do seu próprio destino sonhado e idealizado. Era dono do seu desejo, pois sabia o que queria.

A monotonia na qual se envolvera via-o agora sufocado até a alma. Até quando teria que suportar tudo aquilo? Seria para o resto de sua existência e de toda a sua espécie? Teria que viver literalmente na lama? A aceitar a submissão de viver preso num buraco, com tanto lugar para ser explorado? Ou senão, vez por outra, ser arrancado abruptamente como bicho bruto da sua própria morada, por guaxinim esfomeado ou, por ser humano inescrupuloso, incumbido de traçar a sina das suas espécies? Será que seu destino era mesmo o de sempre e sempre ser servido às mesas da burguesia e das famílias pobres como alimento? Ninguém nunca se preocupara com eles, desde seus ancestrais nunca fizeram nada a eles ou a outra espécie qualquer. Poderia o homem ter o direito de mexer um dedo que fosse para impedir tal descaso, diante dessa verdadeira atrocidade?

Fora justamente tudo isso que fizera seu desejo crescer e transcender ao de toda sua geração. Por fim, decidiu sem receio visitar seus Sonhos no Mundo humano. Daquele distante mundo, só queria tirar os melhores proveitos e ensinamentos para si, para sua espécie ante qualquer impossibilidade, porque seu coração ansiava por mudança a todo preço.

Tempo passara e não passara sozinho não, certamente. Kar viera trazido por ele e envelhecera com os mesmos sonhos e desejos de outrora. Aos dezesseis anos de idade fora o tempo que deu destino a seu sonho. E num dia “H”, numa Hora “D” de sua doce primavera, saíra em busca da realização do seu desejo maior: ir à Terra dos Sonhos.

A límpida noite principiava por todo macrocosmo como dia, a ofuscar na terra o pouco luzir dos vaga-lumes, os quais economizavam sua luz natural em nome da natureza, porque Lucina fazia-se rainha absoluta, enquanto o Astro-rei descansava de sua labuta diária.

Kar, no meio do clarão, botou em execução seu transcendental afã de caranguejo: aproveitou o ensejo de um noctívago exterminador de crustáceo. Está a seqüestrar muitos dos seus que,na certa seriam ensopados. Então, cuidadosamente o seguiu. Rumava, portanto, ao estranho, ao desconhecido, mas de sã consciência e de espírito aflorado. Todavia, sonhara por este grande momento.

Na medida que ia ao encalço do estranho, procurava não ser visto por ninguém, pois, se isso ocorresse certamente seria seu fim e da sua tão sonhada missão. O risco maior era ser visto pelo próprio seguido. Pois se transformaria, sem perdão, no mesmo destino dos parentes que atordoados, sufocados, iam dentro daquele saco a clamar desesperadamente por socorro. Só ele os ouvia, o desgraçado do homem não: com o saco de estopa nas costas andava apressado demais.

O homem atravessara o imenso salgado. A maré estava alta. O pescador exausto com o peso que levava resolveu sentar no paredão esperando que a maré baixasse um pouco. Pois, não dava para atravessar a vala cujas águas transbordavam de um lado a outro.

Enquanto isso, Kar agradecia o momento, pois já estava nas últimas; se cansara mais que o próprio homem que andava muito depressa. Correra feito um louco para alcançá-lo. Relaxava as patas, os dedos à delicia dos minutos daquela inércia. Mas o transeunte tinha pressa e nem sequer esperou que a maré baixasse totalmente; Jogou o saco de estopa nas costas e rumou a seu destino. Kar, muito pequeno, quase fora levado pela correnteza da maré. Conseguiu com muito sacrifício alcançar o cicerone. Horas após, o jovem caranguejo escalara paredões, nadara valas cheias, atravessara sítios de mangueiras, linha de trem, até chegar a uma estrada de asfalto. Fora demasiada a surpresa que tivera quando bateu os olhos naquele chão sólido e negro.

“Viche, Maria! Desta vez quase que eu morro. Mas valeu o esforço! Puxa, mas que chão é este? Parece com o chão da minha terra! Mas o que houve por aqui? Por que está tão duro assim? Será que o sol ficou tão quente a ponto do chão virar pedra? Meu Deus, mais quanta coisa bonita existe por aqui! Quanta lua! Aliás, quanta luz que até parece com a da lua, quase se chega a confundir... É... acho que estou começando a gostar deste lugar. Huum, mas que cheiro é esse? Huum, que odor esquisito é esse? Tão estranho!”

Pasmara-se por ver tanta beleza: as luzes de néon, o asfalto que se assemelhava às coisas de seu habitat. Sentia-se como se já estivesse vivido alguma época naquele mundo. Naquele dito lugar e espaço. Sentia no íntimo os odores, as esquinas, as ruas e avenidas. Tudo lhe soava um ar de familiaridade. Mas como? Se fora a vez primeira que ali estava? Como? Mas como tudo isso se explicava? Verdadeiramente, já havia estado ali sim. Pois, de vera, era seu sonho que acabava de se concretizar. Entrara no Sonho do Mundo. Mas alguma coisa havia de estranho ali; seus olhos ardiam muito e havia um cheiro que não sentira quando sonhara. Era um odor insuportável. Lixos ao léu, bichos mortos a céu aberto, por ruas e esquinas daquele mundo maravilhoso que seus olhos se encantavam e se decepcionavam ao mesmo tempo.

Profundo conhecedor da maldade humana, Kar se deleitava das coisas boas, mas repugnava as más. Procurava ingerir boas doses de cautela à consciência, na medida que explorava a misteriosa metrópole dos seus sonhos. Caminhava tranqüilo, pois a noite reinava o silêncio apaziguador. Porém nem tudo era paz em se tratando de estar ou viver, clandestinamente, num mundo alienígena. Qualquer vacilo, qualquer delírio, ante àquelas novidades, poderia ser fatal e tudo se transformaria literalmente em lama. Por isso, estava preparado para o que desse e viesse naquele fim de mundo.

A madrugada pacata - numa dormida irônica -, descansava através do mesmo sono intranqüilo das crianças abandonadas que dormitavam amontoadas feito lixo, debaixo de viadutos. Os veículos nas garagens contribuíam com o silêncio, mas os bares, as casas noturnas permaneciam abertas a fazer vagar por ruas e avenidas intermináveis eternos noctívagos.

Kar sentiu curiosidade em desvendar por que alguns homens cambaleavam errantes pelas ruas, às vezes, sozinhos ou encangados um ao outro; ora a andar de um lado ora para outro desnorteados; ora para trás, a ponto de se estatelarem no chão sem que ninguém os tenha empurrado. E muitos deles nas calçadas, a beberem na sarjeta a mesma lama de esgoto a céu aberto. A ficarem nas portas daquelas casas cheias de luzes encarnadas, amarelas, azuis e verdes.

De repente, uma melancolia avassaladora invadira seu coração. Seus olhos viram de tudo e de nada, da desgraça à beleza, do sonho à realidade mais cruel ali existentes. Os arranha-céus de vidro fumê repletos de luz estavam a se perder numa verticalidade sem fim; tinha uma beleza inigualável, mas o seu pensar, agora, tinha limites: o limite daquela realidade presente.

Kar grudara seus olhos no luzir da noite, perdido no inusitado mundo da metrópole. Então se envolvera e fora induzido a visitar lugares, ambientes encantadores, sem medo de ser feliz. Entrou num shopping center e na ausência do segurança que rondava outros corredores, fora direto para o salão de brinquedos. Ficou mais encantado ainda. Jogou fliperama, se divertiu para valer no balanço e no escorrego. Por pouco o segurança não lhe pegou no flagra.

Cuidadosamente, saiu do aglomerado de lojas, atravessou a rua, entrou numa daquelas casas noturnas donde saíam aqueles homens que cambaleavam sem ser equilibrista, mas sempre com o cuidado de não ser surpreendido por alguém naquele recinto. Viu mulheres e homens que dançavam, outros sentados a beber algum líquido estranho. Depois se levantavam zonzos, zonzas e aos tropeções derrubavam mesas, cadeiras; alguns ficavam caídos pelos cantos daquele recinto.

“Ih! Então é esse líquido que os deixam caídos pelas ruas e calçadas a beberem a lama do esgoto? Mas esses humanos têm cada gosto que dá medo! Que prazer mais idiota!”

Saiu dali e perambulou por ruas, esquinas. Visitou parque ecológico, museu e muito mais coisas que só o mundo humano oferecia. Mas o que mais o encantara, e ao mesmo tempo o frustrara fora o parque ecológico; não conseguia entender como os homens eram tão injustos, tão imbecis. Vira animais enjaulados desprovidos de sua total liberdade. Apenas alguns beija-flores, bem-te-vis e borboletas usufruíam da dádiva de serem livres. Depois de tudo vê, não mais sentia o mesmo prazer de outrora; os sonhos que tivera não lhe condiziam à mesma realidade vivida. Um grande vazio se implantara em seu coração.

Apesar de tudo, não vira o tempo passar. O relógio da matriz marcava cinco da manhã. O blém-blém da catedral o fez despertar da anestesia do mundo alienígena. Naquele instante sentiu que as horas, como num sonho, se passaram. Percebeu ter ido longe demais e se lembrou de que era hora de voltar para seu habitat o mais rápido possível; porque se demorasse mais um pouco, estaria a arriscar seu belo e maravilhoso casquinho de ouro.

As pessoas, àquela hora, se acordavam para ir ao trabalho. Kar estava com muito medo, se arrependera por cometer tamanha displicência. Exagerara, se empolgara pelas coisas demasiadamente e por tudo que não existia em seu habitat. Sentia-se agora um tremendo idiota. Mas, em seu íntimo, reconhecia que valera apenas todo aquele sacrifício. Só teria que tomar muito juízo para enfrentar o perigo do qual estava mais exposto, ou seja, à luz do dia e à dos olhos humano.

A luz no horizonte dava o veredicto da real existência do astro-rei e brilhava com o vigor de estação de Rei. Kar seguia cuidadosamente a estrada sinuosa, repleta de obstáculos. Sua pequenez de crustáceo o impedia de fazer certas coisas naquele mundo. Teria que subir e descer ladeiras enormes; eram-lhe verdadeiros transtornos dobrar esquinas, seguir ruas, becos intermináveis no meio de uma imundície insuportável e violenta.

Às escondidas, que nem foragido caminhava clandestinamente rente a paredes e muros; ora, sobre calçadas ora na própria sarjeta. As casas, prestes a despertarem do sono de rotina, deixavam-no mais atento. Ali, nada fora feito para seu tamanho; tudo se fazia quase impossível. Pagava com isso um preço alto por sua exagerada aventura.

Do alto de uma calçada depara-se com uma janela aberta e fica escondido a curiar um humano, bem de perto, à luz do dia. Era o homem, à sua frente, que conversava com um menino. Gratuitamente, assistia a uma extraordinária cena, entre pai e filho, que não se definia muito bem se cômica ou dramática no gênero, mas que tinha tudo a ver com teatro. Aí tinha. O pai cheio de autoridade dava uma lição de moral, e de vida ao seu filho mais velho. Isso, com o tom elevado da voz, que chamara sua atenção e de outros viandantes que por ali passavam. Dizia o pai exaltado, para seu filho:

“Eu não consigo entender, meu filho. Seu irmão que é seu irmão, muito mais novo do que você, só me deu prazer até hoje. Desde que foi para escola, nunca ficou em recuperação; sempre passou por média em tudo. Já vai terminar o segundo grau. E você, mais velho do que ele, nem sequer terminou o primeiro ainda”.

E, aos gritos para o pobre coitado do filho, berrou dizendo:

“VIVE ANDANDO PARA TRÁS FEITO CARANGUEJO!!!”

O que aquele homem disse humilhou tanto seu filho quanto o pobre e inocente Kar, que alheio a tudo aquilo também se envolvera diretamente. Se surpreendera com o que acabara de ver e, se tudo já lhe ia mal agora que a coisa se complicara de verdade, propriamente, com relação à visão que tinha da imagem humana. Estava por total decepcionado. Jamais esperara quão cruel desfecho.

E lá, com os seus botões, extremamente abatido, saiu sozinho a dizer:

“Meu Deus! Mas que comparação! Puxa! Para que então que eles nos seqüestram? Afinal, para que nós servimos? Não é para seus banquetes, suas festanças? Não é para sermos servidos como casquinhos, nas praias para estrangeiros? E os pobres também não fazem seus melhores pratos de ensopados para seus filhos? Se nós somos tão bem aceitos e apreciados em suas mesas, por que então, a irônica comparação? O que mais me revolta nesses humanos é que eles sempre querem se comparar a nós, como se conhecessem a fundo nossas próprias vidas. Mas quanta ousadia, meu Deus! Quanto atrevimento desses humanos!

O pobre Kar fora o único a pisar aquela terra. Certamente, seria o primeiro e último dos caranguejos a viver àquela dolorosa aventura misteriosa? Terra estranha repleta de contrastes e decepções. Sentira seus sonhos e anseios irem asfalto abaixo, se extinguirem ali mesmo para jamais serem recordados nem ressuscitados. Ao menos, por milagres... não, nem assim os queria mais. Quereria sim, que seus sonhos não mais vingassem por preço algum. Se decepcionara profundamente com a cena que assistira: àquela merencória atitude do pai ante seu filho coitado.

Caminhava quase sem forças na estrada de regresso. Uma estranha insatisfação a invadir seu peito feito enchente avassaladora fazia seu coração muito plangente. Arrependera-se amargamente ao ponto de desejar o próprio fim, só para não querer transmitir à sua gente as injustiças existentes naquele mundo, o qual só encantava aos olhos de quem vivia alheio a ele e desconhecia a sua grande verdade. Mas a ele não. Porque desvendara que havia ali na terra dos homens uma beleza traiçoeira, um encanto perverso ao coração e aos olhos de qualquer ser estrangeiro, até mesmo aos olhos dos próprios habitantes.

Em pranto, transtornado de desespero, no meio da estrada de asfalto, de patas abertas para o alto, quase como um abilolado que perdera o valoroso juízo, um autêntico demente dizia:

“Que o primeiro humano que passar por aqui, nesta maldita terra, me pegue e me faça o que sempre fez com os meus irmãos; que me sirvam como casquinho a turistas ou ao mais humilde dos lares, faça de mim um ensopado; só assim, eu não mais guardarei nem levarei à minha terra a mágoa, a revolta que este mundo tanto me tem causado a mim e à toda a minha espécie. Esfacelem-me, arranquem-me os dedos, as patas, os olhos, como num ritual destrutivo para que eu não leve notícia tão triste à minha geração. Só meu fim, portanto, deixará a consciência da minha gente em paz”.

Realmente, Kar estava a delirar no torpor da sua raiva, do seu ódio. Mas, ao ver que um humano sedento seguia em sua direção, despertou do êxtase e se escondeu bem escondidinho num esgoto a céu aberto, dentro da lama fedorenta, onde a catinga fora tamanha que o coitado quase morrera sufocado. Sua alma de crustáceo escapara fedendo literalmente. Quando o relógio da catedral soara pela segunda vez, ele já estava em seu mundo real, após mais de cinco horas de difícil retorno.

Portanto, estava a viver e sentir agora sua verdadeira realidade crustácea. Respirava com alívio, todo satisfeito, o aroma agradável dos mangues. Sentia nas suas entranhas o odor prazeroso do seu asfalto, digo, da sua lama real. Sentia o sabor da água salgada e se lavava da água estragada, putrificada da cidade que quase lhe dava fim a vida. Tinha agora o lindo casco amarelo como ouro a luzir no sol da manhã do Salgado.

Chegara em casa azafamado, seu corpo carecia descanso demasiadamente. Dormira por duas noites sucessivas e dois dias inteiros. O sono alimentou seu corpo e fortaleceu seu espírito para os dias que se seguiram...

Vários dias se foram, mas na sua cabeça martelava a triste e indelével cena a que assistira na terra dos homens. Ainda estava insatisfeito e seu coração revoltado com a comparação esdrúxula que tal homem havia feito. Decidiu, então, contar à sua espécie o fato. Levaria sua Mensagem à Garcia, desse no que desse.

Assim, saiu pelo Salgado a visitar amigos, parentes, irmãos até de espécies distantes. Iria contar a todos o ocorrido. Foi o que fez sem esquecer nenhum detalhe. Muitos ficaram surpresos, não com os humanos, mas com a tamnha ousadia do pequeno Kar. Não acreditavam que ele fosse capaz de visitar a terra dos homens.

- Logo Kar teve a coragem, a ousadia de quebrar o encanto para descobrir os mistérios daquela terra, desvendar o enigma que sempre fora temido por todos nós, desde muito tempo, séculos, milênios a sofrermos. Ah, esse pequeno merece ser ouvido por todos nós pela sua bravura, sua coragem desmedida e incomensurável.

Dizia um gentil caranguejo que era benquisto por todos dali. Fora unânime o apoio dos crustáceos e todos que ouviram o ato e o fato ficaram felizes e desgostosos; estarrecidos e eufóricos ao mesmo tempo. Os anciãos, por sua vez, em seus eternos silêncios, apenas ouviam o que o jovem Kar estava a dizer.

Todos a par do acontecido, finalmente. E por iniciativas próprias decidiram que a partir daquele dia iriam mostrar para toda humanidade que seriam muito mais capazes, ousados do que eles (humanos) imaginavam. Iriam fazer coisas que os humanos jamais julgaram que eles os fizessem...

“Os homens não têm o direito de ficarem julgando coisas que não sabem sobre nós. Não têm eles o mínimo conhecimento do que dizem sobre a nossa espécie”.

Diziam todos exaltados.

Decidiram fazer uma passeata pela maré, pelo Salgado. Uníssonos, no meio da vala, com o jovem Kar à frente, saíram a dizer:

Nós andamos para um lado! / Nós andamos para o outro! / Vamos / aonde queremos chegar! / Vamos / a todo e qualquer lugar!/ Andamos para um lado / Andamos para o outro! / Não andamos para trás! / Não andamos para trás!

Era janeiro, mês em que a maré extrapolava seu limite e atingia níveis elevadíssimos e assustadores de água, a Caranguejada, por sua vez, antes que a maré enchesse declarara a grande revolução e saiu em passeata pela maré, por valas, salgados, mangues e paredões. Consagraram Kar o líder, que eufórico e exaltado entoava a mais bela canção, criada por ele próprio naquele instante de verve, em homenagem ao grande dia. E cantavam:

Lentos nós não somos não! / Lentos nós não somos não! / Para tudo se é capaz... / Mas não andamos para trás / Vamos mostrar pra essa gente / Que sabemos andar pra frente!

Estava declarada a primeira revolução dos caranguejos. O objetivo era mostrar para humanidade que eles andariam para frente a contrariar àquilo que a própria natureza lhes dera gratuitamente, ou seja, o direito de andar conforme andavam - de lado - e não para trás, como julgavam os humanos, nem tampouco para frente, como os queriam. Um grande erro!

Levados pela força do desejo de andarem para frente, estavam alucinados e não perceberam que a maré se elevava gradativa e taciturnamente. Mesmo assim, todos sem exceção, num átimo de arrebatadora inspiração e determinação - todos mesmos - estavam a andar para frente nas pontas dos seus dedos. Uns mais afoitos e amostrados se exibiam a dizer que andavam melhor que o outro. Incrível! Fantástico! Inacreditável!

Estavam todos a conseguir andar para frente, até os caranguejos menores se saíam muito bem. Tudo era uma felicidade só com o sucesso alcançado. Eles haviam se afastado um bom bocado das suas moradas, ao ponto de não mais se vê o caminho de volta. A maré já estava nos seus encalços, mas eles não deram a mínima para aquilo. Uma onda muito forte, de súbito, os pegou a todos com violência. Traiçoeiramente foram levados pela violência atroz das águas de janeiro. Logo, foram tomados por um desespero infindo, onde tentavam retornar e não mais encontravam o caminho de volta ou uma saída qualquer que fosse. Todas as possibilidades de retorno foram extintas pela brutalidade das águas. Inutilmente, tentavam enfrentar as águas mas eram levados pela força cruel feitos pequenas folhas amarelas de mangue, à deriva numa correnteza poderosa e monstrenga. Quanto mais se esforçavam, mais se decepcionavam com a velocidade abrupta das águas; parecia um castigo que agia sem dó nem piedade contra eles.

Porém, a sã consciência de Kar o fez lembrar do delírio que teve quando na terra dos homens vira seus parentes, amigos e irmãos morrerem. Isto se deu, quando ele havia pedido, naquela hora, para ser transformado em casquinho; agora, via findando os seus tão inocentes, tão indefesos por sua culpa(?) Arrependera-se profundamente mais ainda. E, então, gritou:

“Dá-me o castigo merecido, Senhor! Que assim será meu verdadeiro preço! Sinto-me culpado dessa tragédia. Para mim seria injusto ter que viver a ver essa mortandade”.

Por fim, horas após, veio a calmaria; as águas pareciam entender o sofrimento daqueles inocentes, ou talvez, pelo próprio arrependimento de Kar. A maré começou a baixar e rapidamente estava por total seca, baixa, calma.

Os poucos crustáceos que ainda restavam, encontravam-se tontos, embriagados pela força da água; saíam a ermo, a procurarem seus parentes e buracos. Na ânsia de ainda encontrarem alguma coisa, a Caranguejada já não era mais a mesma, perdera noção de tudo, não sabia onde estava nem o que queria ou o que procurava.

Todos estavam desnorteados. Uma imensa algazarra se instalara e ninguém mais sabia quem era quem: machos e fêmeas encangavam-se entre si; tentavam de uma só vez dois, três, entrarem em um mesmo buraco. Muitas das vezes sem ser o próprio buraco. E, quando não, dez ou mais brigavam na disputa da mesma morada.

No auge daquele desespero, no caos, não bastando já a tantas desgraças, deu-se a tragédia maior. O genocídio inesperado.

Os pobres caranguejos já extremamente exaustos, quando uns ainda procuravam um cantinho para se aconchegar; foram mais uma vez surpreendidos; agora, dessa vez, por uma avalanche humana. Dava-se, portanto, a vingança dos homens sobre aquela pobre espécie. Eram homens, mulheres e crianças a invadir a maré com cestas, latas, baldes, sacos, com um único e exclusivo objetivo: transformar os caranguejos em deliciosos pratos de ensopados, casquinhos e outras coisitas mais para turistas, em restaurantes e praias do mundo deles.

Kar, ciente de toda aquela tragédia, declara:

“Meus irmãos, meus parentes, meus amigos, hoje fora um dia muito triste para nossas vidas. Por isso, declaro este dia como sendo O Dia da Corrida dos Caranguejos, que se seguirá por mais dois meses. Teremos, portanto, a inexorável ironia de que sempre nesses três primeiros meses de cada ano, daqui até o fim da nossa espécie, sempre haverá de ser lembrada por nossas gerações futuras este crudelíssimo dia”.

Dito isto, Kar fora preso e levado para cidade dos homens.

Seu fim se deu com grande tristeza para a sua espécie, porém numa inusitada comemoração para a outra.

Fora, então, realizado um grande banquete na casa do homem mais rico daquela terra distante, para felicidade da humanidade e para tristeza eterna dos caranguejos.