O conto do kiwi
(A Sarah Pereira)
Muitos de meus leitores não devem estar familiarizados com kiwis; afinal, com quanta frequência costumamos ver um kiwi por aí? São avezinhas muito tímidas, e um tanto introspectivas, que preferem ficar cuidando de seus assuntos em seus lares (o que não lhes dá muito tempo para sair). Também não conheço aves tão humildes, que não possuem penas bonitas, tampouco asas, mas ainda assim se resignam alegremente à sua condição, sem nunca reclamar com seu Criador. (E quantos de vocês acharam, à primeira vista, que eu falava da fruta, ao invés da ave? Já ouviram falar de uma criatura tão altruísta a ponto de nem se importar se lhe tomam o nome ou não?) E é por essas e outras que resolvi lhes contar uma história sobre essas aves tão subestimadas, a fim de que não seja julgado louco quando digo que são meus animais preferidos no mundo todo.
Existe um lugar, muito distante daqui, que, adiantado a nosso tempo, tem a mesma opinião que eu. Já não sei se ainda é assim, pois faz muito tempo desde que eu o visitei, mas quero acreditar que o principado de Churippu continua sendo um dos lugares mais maravilhosos de se visitar – em parte devido à sua princesa, chamada Sarah (um nome que já é deveras apropriado a uma princesa!), uma das mulheres mais belas e sábias que já tive o prazer de conhecer; em parte devido às lindas flores que enfeitam todos os cantos possíveis do lugar, muitas das quais só podem ser encontradas lá, e em mais nenhum outro país; e em parte devido a seus numerosos kiwis, que passeiam livremente sem que ninguém os incomode, e que poriam invejosas todas as vacas da Índia de tanta adoração que lhes era dada por todos os habitantes de Churippu.
"Nunca vi tantos kiwis juntos num mesmo lugar!", exclamei à princesa Sarah, enquanto passeávamos por uma das avenidas mais movimentadas de Churippu. "Vocês parecem gostar mesmo destas aves!"
"Elas são o símbolo nacional desta terra", respondeu-me a princesa, sempre muito educada. "Não os acha adoráveis?"
"Sim, acho! Porém, não nego que em outras partes do mundo esta escolha seria julgada um tanto… incomum. Como foi que os kiwis receberam tal honra de representar um país tão bonito como este?"
"Posso sanar-lhe esta dúvida contando uma lenda bastante antiga que data da fundação deste principado… Quer ouvi-la?"
"Estou sempre disposto a ouvir tudo o que quiser me contar", disse eu. A princesa Sarah sempre tinha boas histórias para contar a qualquer um que lha pedisse.
Sentamo-nos então num banco de uma adorável praça e ela começou nestes termos:
"Há muito tempo, quando o principado de Churippu era um recém-nascido dentre as várias nações do mundo, o primeiro príncipe (meu ancestral) queria demonstrar o valor de nossa coroa escolhendo um animal que dignamente a representasse. Assim sendo, ele promoveu um grande concurso no qual todos os animais das cercanias participariam, e ganharia aquele que melhor convencesse o príncipe de suas virtudes.
"Vários animais foram testados; fosse grande ou pequeno, colorido ou monocromático, da terra, da água ou do ar – todos falharam. Aparentemente, nenhum deles era bom o bastante para o príncipe. No fim, sobraram apenas três concorrentes: uma águia, um pavão e um pequeno kiwi.
– Aonde você pensa que vai? – disse a águia, ao ver o kiwi se aproximar do palácio do príncipe.
– Ora, vou participar do concurso! – respondeu o kiwi. – Vocês não?
– Não me faça rir! – explodiu em risos a águia. – O que lhe faz pensar que venceria o concurso? O que pode oferecer ao príncipe? Seu bico e suas garras são tão grandes e fortes quanto os meus?
– Não, mas…
– E suas penas? – interrompeu-lhe o pavão, num tom de voz pedante. – São tão belas e coloridas quanto as minhas?
– Não, mas… – ia dizer o kiwi novamente.
– Então escute nosso conselho – desta vez foi a águia que não o deixou concluir a frase. – Dizemos-lhe isto porque somos seus amigos, e não queremos que seja humilhado pelo príncipe tal como todos os outros. Se sabe o que é bom para você, sugiro que dê meia-volta!
– Não darei! – replicou o kiwi, magoado. – Tenho tanto direito quanto vocês e todos os outros de participar do concurso! Se eu for rejeitado, fazer o quê?
– Se assim diz… – disse o vaidoso pavão, limpando pela enésima vez as longas penas de sua cauda. – Mas não diga que não o avisamos quando eu sair vitorioso!
– Acredito que se equivoca, amigo – disse a águia ao pavão. – Eu é que haverei de vencer!
– Veremos! – respondeu-lhe o pavão.
"O kiwi não se importou com os gracejos, e permaneceu inabalável em sua intenção de participar do concurso.
"A águia foi a primeira a ser requisitada na presença do príncipe. Após cumprimentá-lo com uma mesura, disse ela ao príncipe:
– Estou a teu serviço, Majestade.
– O que tens para me oferecer? – perguntou-lhe, então, o príncipe.
– Dou-lhe minhas garras e meu bico, para estraçalhar todos os inimigos deste país!
– Não sou um príncipe violento! Não quero criar inimigos, tampouco pretendo que minha coroa seja manchada por sangue inocente derramado em guerras. Sinto muito, mas um animal tão belicoso como tu não pode ser o brasão de meu reinado que almeja a paz e a harmonia.
"A águia recolheu-se amuada para um canto, fingindo não ver a careta de desdém que o pavão lhe dirigia ao entrar no salão.
– E tu, pavão? Que podes me oferecer? – perguntou-lhe o príncipe.
"Nisto, ele abriu as majestosas penas de sua cauda e disse:
– Dou-lhe minhas penas! Com elas, espero fazer de teu principado um verdadeiro símbolo de fausto, luxo e pompa em todo o globo terrestre!
– São de fato bonitas… – lhe respondeu o príncipe. – Mas julgo que viver sob tamanha opulência tornaria tanto a mim quanto a meu povo vaidoso e mole. Minhas riquezas já me bastam, e não sou presunçoso a ponto de achar que mereço mais do que me é cabido. Receio que tu também não sejas uma insígnia apropriada para mim.
"Com seu orgulho ferido, o pavão fechou as penas da cauda estrepitosamente e também recolheu-se a um canto – tanto ele quanto a águia queriam ficar para ver o ingênuo kiwi sendo humilhado por sua tola presunção.
"E eis que este finalmente adentrou o recinto, lenta e timidamente, mal conseguindo encarar o príncipe de tanta vergonha.
– Não se sinta acanhado! – disse-lhe o príncipe, amigavelmente. – Diga-me, como os outros, o que tens a oferecer… Se bem que vejo que não tens plumas ou um grande bico e garras, como teus amigos.
"O kiwi respirou fundo antes de começar a falar.
– Tem razão, Majestade – disse por fim. – Não tenho um bico poderoso ou garras apavorantes como a águia, nem belas e coloridas plumas como o pavão. Nem ao menos tenho asas! Mas trago-lhe algo que creio ser muito mais bonito e talvez mais valioso e útil: trago meu amor e minha admiração por ti e por este principado, e minha vontade de lhe servir no que me for possível.
"O silêncio reinou no recinto por uma fração de minuto. O príncipe então irrompeu em gargalhadas! O kiwi ficou desolado. Ele não podia acreditar que faziam tão pouco dele! Ele começou a chorar… Foi de cortar o coração!
"O príncipe foi então ao encontro do pobrezinho, e carinhosamente segurou seu corpinho pequenino e rotundo entre as mãos.
– Não chore, pequena criatura! Não vês que rio de alegria, e não por caçoar de ti? A partir de hoje tu serás o animal pelo qual meu principado será simbolizado!
– Mas que fiz eu para merecer tal honra? – disse o kiwi, enxugando as lágrimas. – Não está troçando de minha simplicidade?
– E desde quando o príncipe de Churippu sai por aí mentindo para os outros? É exatamente por causa de tua simplicidade que o escolhi! Nenhum dos outros animais teve teu grau de humildade, e é por ser humilde e pacífica que minha dinastia será conhecida! Decreto, portanto, que esta bela criatura deverá estampar o brasão dos príncipes e princesas de Churippu, e tratada tão cortesmente quanto merece!
"A tristeza que havia se apossado do kiwi transformou-se na mais pura alegria! Ele riu, dançou e cantou até se cansar, e todos no recinto celebraram com ele. Até a águia e o pavão foram contagiados pela felicidade, e pediram-lhe desculpas por terem lhe tratado de forma tão indiferente. Talvez como recompensa por terem reconhecido seus erros, dizem que não muito tempo depois a águia foi chamada pelo imperador de Roma para ajudá-lo a conquistar seus inimigos, e o pavão teve a chance de se exibir para o rei da Birmânia, que adotou-o como mascote por gostar tanto de suas plumas.
"E é por isso que, desde então, os kiwis permanecem sendo os animaizinhos mais queridos de meu principado, e estampam orgulhosamente o brasão de minha cara família."
E assim a princesa Sarah terminou sua história.
"É uma história maravilhosa!", exclamei eu, assim que ela acabou de falar. "E de brinde ainda traz uma boa moral!"
"Tal como toda boa história, creio", riu-se a princesa Sarah. "Agora, que tal voltarmos para casa, a fim de descansarmos? Posso contar-lhe muitas outras histórias pela manhã."
E seguimos alegremente para casa, a fim de nos prepararmos para um outro dia, que com toda a certeza seria extremamente prazeroso em companhia de minha princesa tão querida, Sarah.
Mas antes que encerre eu mesmo o meu relato, exorto meus leitores a apenas uma coisa: como os julgo homens (e mulheres) de espírito, deixo que a moral que depreenderem da história fique a seu encargo, mas se por acaso tiverem a rara oportunidade de se encontrar com um kiwi, em respeito à bela terra de Churippu (que nunca mais tive o prazer de visitar) tratem-no com o máximo de carinho que puderem.
(São Carlos, 16 de outubro de 2018)