Destruindo um conto
Sempre me senti sozinha, acompanhadamente sozinha. Vou narrar minhas desventuras começando pelo fim. O felizes para sempre não existe, o que existe, na verdade, é a criação de um fim ideal, para que o caro leitor se sinta recompensado pela injustiça sofrida por nós, os mocinhos, e arremesse rosas imaginárias aos pés do suposto autor.
O meu felizes para sempre não contava com um marido mentiroso, exatamente igual aos pseudo-amigos os quais ele um dia julgou. O dinheiro é capaz de fazer milagres, mas ao contrário do que todos dizem, nem todos os milagres são bons.
Mas enfim, a vida no castelo se assemelha à uma prisão, sou uma princesa supostamente boa, condenada ao infelizes para sempre. A princípio cheguei a acreditar que sentia ternura por Filho da Burra, a sua coragem ao resgatar a mim e a minhas irmãs de nossos monstros, amados monstros, o esmero com que lutou por sua vida, a simplicidade de modos e caráter, me fizeram sentir que apesar dos pesares, poderia tentar a felicidade mais uma vez, no momento em que pediu a minha mão ao meu pai, implorei que este permitisse que tal homem me desposasse.
O dia do meu casamento é o mais errôneo de minha vida, tudo que eu sempre quis, a festa enorme, dedicada não apenas aos noivos e a realeza, uma festa pública, onde cortesãos puderam também se divertir. Minha mãe aos prantos (até hoje não sei ao certo se era por felicidade ou por angústia), abrilhantava o matrimônio e minhas irmonstras, como de costume, me amaldiçoando, por acreditarem que a culpa de sua viuvez era unicamente minha (ah se naquele momento eu soubesse que era de fato minha a culpa). Neste momento, cheguei a pensar em tecer um comentário maldoso sobre estas, mas eu sou a mocinha e afinal de contas não devo ser cruel em momento algum.
O momento do Sim foi simples e rápido. Embora meu sexto sentido tentasse me avisar que eu estava cometendo um erro, sem ao menos hesitar, eu aceitei, por livre e espontânea vontade, dei boas vindas à infelicidade que estava a bater em minha porta, mascarada, e eu cegada pela expectativa.
Dias antes do matrimônio eu estava sentada em uma cadeira de balanço, na varanda principal do castelo recordando tudo que eu já havia passado. Aquele dia, em que eu e minhas irmãs, desobedecendo o rei, meu pai, saímos do castelo para cavalgar pelos campos. Eu, a irmã mais nova era sempre alvo de brincadeirinhas e quando ao passar por um bosque à procura de minhas irmãs, eu cai num buraco enorme, minha atual experiência me levou a acreditar que era mais uma das brincadeirinhas de minhas maldosas irmãs, me sentei confortavelmente, à medida do possível, e ali esperei elas se cansarem e me tirarem daquele lugar úmido e sujo.
O tempo passou, horas e mais horas, estava anoitecendo e meu desespero começou a despertar de um sono pesado e inconsciente, meu medo começava a me fazer ouvir ruídos e estes aumentavam gradativamente, de repente vozes se faziam ouvir e eu com expectativa, me levantei e me limpei da poeira e barro grudados na saia do meu vestido, ouvi atentamente as vozes acreditando serem provenientes de minhas irmãs, que à propósito, haviam passado dos limites, onde uma brincadeira perdoável passa a ser intolerável.
As vozes se aproximavam e eu percebi que eram mais de duas pessoas, na verdade eram duas vozes implorativas e não conseguia distinguir ao certo se eram duas ou três que riam e falavam sarcasticamente. O ruído finalmente se transformou em passos e o grupo chegou a mim, quando focalizei os autores das vozes tive uma crise de ausência, tamanho o susto e desespero que se apoderaram de mim. Ao despertar, em uma casa com características medievais, rude, sem saber ao certo onde eu estava, comecei a procurar a saída.
A procura foi incessante e inútil, já cansada e sem resultados, desisti. Começava a anoitecer quando resolvi ir até a cozinha procurar algo para comer, afinal estava praticamente em jejum, pois meu estômago havia se recusado a receber comida mais cedo, como se estivesse prevendo os acontecimentos do futuro. Ao chegar à cozinha, reparei que a mesa estava arrumada, como se o misterioso proprietário soubesse que eu sentiria fome. Me servi de leite e bolo e já que estava sozinha, comecei a observar mais atentamente a não-decoração do lugar, quadros de paisagens, mobília gasta, e com um salto repentino, reparei que haviam imagens minhas dispostas em porta-retratos em cima da lareira, aquilo foi realmente estranho, e agora eu precisava descobrir de quem era aquela casa, alguém que me conhecia mas me trancava dentro de uma casa que deveria ser aconchegante e que para mim era assustadora.
Me perdi em pensamentos e nem ouvi o estalar da fechadura, acordei da confusão de minhas ideias com o ranger da porta, que enguiçava em determinados pontos do chão desgastado. Observei com expectativa quem apareceria atrás daquela porta que com a minha ansiedade se fazia abrir tão lentamente, o meu espanto foi notável quando esta se abriu completamente, ali estava o homem mais lindo que eu nunca antes tinha visto, loiro, alto, olhos azuis e rosto angelical, roupas requintadas e modos visivelmente educados.
- Olá, você deve estar se perguntando o que está fazendo aqui, certo? Disse o estranho ao perceber minha visível confusão mental, eu com olhos assustados só acenei positivamente.
- Primeiramente eu devo te contar quem sou eu, se você não se importar, é claro.
Com embaraço e visível dificuldade de formular uma frase que tivesse sentido eu respondi:
- Oh! C-c-claro.
Sem mais acrescentar me calei e assim permaneci, percebendo isso, ele iniciou sua história:
- Venho de uma linhagem de cortesãos, família pobre que trabalhava para ter o que comer, e muitas vezes isso era insuficiente. Cresci no seu reino princesa, com mais dois irmãos, os anos se passavam e eu observava sem nada poder fazer, meu pai morrer aos poucos tentando garantir nosso pão de cada dia. Um sentimento de revolta foi se apoderando de mim e como eu era muito ligado aos meus irmãos mais velhos, compartilhei minha angústia. Certo dia ao entregar uma encomenda de tecidos feita ao meu pai, ao passar pelo bosque encontrei um flautista encantador de cobras que me perguntou a localização do vosso reino princesa e como estava indo para o local, ofereci-me à guiá-lo, durante o percurso, este utilizando-se de artimanhas me convenceu a aceitar fazer um pacto duvidoso com uma criatura, que jamais pude imaginar fosse o mal encarnado.
Neste momento eu senti piedade do belo estranho, porém ainda não conseguia entender o porque deste me trancar em sua casa. Após me dar uma pausa para assimilar a história, este prosseguiu:
- Extasiado pela possibilidade de dar uma vida digna ao meu pai, convenci meus irmãos a aceitarem o acordo também. Porém, o preço a se pagar era caro, a partir daquele momento seriamos transformados em criaturas bestiais durante o dia, sendo nossa humanidade restaurada somente à noite. Naquele momento, aquilo não importava muito, seriamos ricos e tendo dinheiro nada mais importava.
Foi com assombro que eu lembrei o motivo de ter perdido os sentidos quando aquele grupo de estranhos se aproximou de mim naquele buraco e o medo da lembrança daquela visão me fez tremer. Ele com receio me entregou um lenço e se manteve distante, temendo minha reação, quando percebeu que eu me acalmava, prosseguiu:
- No começo tudo foi festa, durante o dia nos escondíamos no bosque e de noite aparecíamos em casa, jantávamos, tomávamos banho e saíamos para as noitadas da realeza, afinal éramos ricos a partir daquele momento. A riqueza conquistada ‘de mão beijada’ nos torna inconseqüentes, o tempo passou e começamos a esquecer de nossa monstruosidade e por diversas vezes nos transformamos em público. As pessoas começavam a ficar assustadas e a organizar fogueiras para matar as bestas que apareciam ao raiar do dia. Com esta ameaça, começamos a nos preocupar e partimos à procura de uma cura para a nossa transformação, visitamos diversos reinos à procura de alguém que entendesse de maldições e pactos. Ao chegar em um reino muitas léguas distantes, descobrimos um mago, que ao consultar um oráculo nos contou que para destruir o pacto e ainda assim continuarmos ricos, teríamos que fazer com que futuras princesas de nosso reino se apaixonassem por nós enquanto bestas.
Neste momento, comecei a entender o propósito de estar ali, com aquele moço de maneiras distintas, eu era a chave da prisão que ele tanto precisava sair, eu era o último resquício de esperança que ainda lhe restava.
- Mas, naquela época, não haviam princesas no reino, então para não gerar mais problemas, decidimos nos isolar neste bosque e os anos se passaram e finalmente, vocês três, se tornaram donzelas e neste momento, minha linda princesa, eu me prostro de joelhos diante de vós e vos imploro, me ajude, não se recuse a me amar, eu já vos amo com toda a minha alma.
Jamais pude imaginar que isso tocaria tão fundo o meu ser, minhas bochechas ficaram repentinamente rosadas e eu desviei meus olhos dos seus profundos olhos azuis. O tempo passou e eu não conseguia dizer nada, ele estava ficando visivelmente impaciente, então eu avaliei os pontos positivos e negativos, e como não resistia a uma aventura, decidi aceitar. Com esforço criei coragem de levantar a cabeça e encarar seus olhos, aceitando o desafio.
Ele me explicou que eu não poderia ver minha família durante este tempo que ficaria ali com ele, me contou também que minhas irmãs estavam sendo submetidas ao mesmo teste, e que era de suma importância que eu não deixasse ninguém entrar na choupana enquanto ele estivesse fora.
Fui preparada por ele, a minha besta, para o primeiro raiar do dia, que no final das contas, nem foi tão assustador assim. Quando o sol apontou seu primeiro raio, a transformação iniciou, aos poucos a figura humana ia se transformando em um animal grande, um macacão, constatei. Apesar dos pêlos, rabo e tudo mais de um macaco, eu olhava para os seus olhos e via aquele homem belo e educado que eu conheci na noite anterior.
Os dias se passavam e minha ternura aumentava para com ele, porém, ter que fazer o serviço doméstico começava a me irritar. Eu, uma princesa, trabalhando de empregada doméstica, privada das regalias do castelo. Comecei a descobrir que eu gostava da minha condição de princesa, e que não ter quem cuidasse dos meus banhos, fizesse a minha cama, levasse meu café no quarto era extremamente chato.
Meu macacão passava o dia fora, só vinha para o almoço e saía novamente, me deixando sozinha. Certo dia, já entediada de ficar trancada em casa, resolvi passear pelo bosque, organizei a casa e sai, levando uma cesta, para colher frutos durante o passeio. A floresta era abundante de folhagens, árvores e musgos. A primavera estava chegando e as flores começavam a desabrochar exalando uma mistura rica de perfumes. Os pássaros e borboletas começavam a polinizar as flores, tornando a paisagem ainda mais bonita. Colhi diversos frutos pelo passeio e voltei para casa, afinal ali era meu lar, algo que eu sentia que era de fato meu.
Preparei o jantar e me sentei à espera do meu amado, que chegou logo em seguida, estava transtornado e quando lhe contei que havia saído de casa disse que se eu o fizesse novamente, teria que me manter trancada. Isso me deixou extremamente irritada, como ele podia ser tão apaixonante e tão cruel ao mesmo tempo? Eu estava ali me sacrificando por ele e ele me retribuía me privando de ver a luz do sol, foi com um sabor acre na boca que eu fui dormir, sem muito conversar.
Naquele dia, que estava amanhecendo, pude sentir uma inquietação no ambiente, como se algo estivesse prestes a acontecer, macacão veio para casa mais cedo e estava machucado, muito machucado, me pediu pão e vinho para se restabelecer, o vinho que queima no sangue e faz a gente se sentir vivo e o pão que sustenta nossas carências físicas, sua melhora foi visível após se alimentar e a partir daquele dia, ele sempre chegava machucado em casa.
Certo dia, ele saiu cedo e não voltou à noite, eu desesperada estava me vestindo para sair procurá-lo pela floresta, como ele podia ter me abandonado sozinha? Sumir e não dar nenhuma satisfação? Eu começava a sentir ódio pela sua ausência repentina, pelos seus modos sempre tão iguais, por ser proibida de sair de dentro de casa, por ter que lavar, passar e cozinhar.
Pronta para sair, com os olhos turvos pela raiva, ouvi batidas na porta, e embora achasse estranho, o dono bater na porta, fui abrir e para minha surpresa não era macacão, era um homem desengonçado e grande que me implorou para entrar e me contou atrocidades sobre o meu amor, dizendo-me que este era um demônio e que teria de matá-lo, mas precisaria que eu desse a ele o pão e vinho da fera quando esta pedisse para alimentá-la, e eu inquestionavelmente tola acreditei e assim aconteceu.
Ao ver meu monstro peludo ser espancado, morri três vezes, a primeira foi quando meus olhos tocaram os seus que imploravam por ajuda, a segunda foi ao perceber que eu o amava como nunca havia amado e a terceira quando percebi que era demasiado tarde para dizer que o amava pois ele estava morrendo e era graças à minha traição.
O que se passou depois é algo que eu desconheço na verdade. Hoje eu descobri que eu fui enganada pelo meu marido, e que este não era tão bom quanto eu imaginava. Eu deixei ele tentar matar quem eu amava, matar dois homens que só buscavam a liberdade, terminar de destruir a vida de outro, e se isso lhe conforta, caro leitor, decidi continuar aqui, com este verdadeiro monstro, apenas para tentar me redimir, mesmo que pouco, desta minha vida errônea.
A vida, na verdade, é um conjunto desenganos. A história é mutável, para que caiba nos sonhos e pensamentos de cada um, essa história não relata a morte dos meus cunhados, que após constatarem que o Filho da Burra estava vivo se defenestraram, ou detalhes sobre a morte dos irmãos de macacão, que na verdade se chama William, mas isto é uma parte da história que não acrescenta nada à minha vida, esta história deve ser contada por minhas irmãs, que na verdade, só queriam um marido.
A explicação do porque eu entreguei quem eu amava aos braços da morte, é amar sem confiar. Hoje só o que me resta é um tênue gosto de vida que se mistura ao meu pranto, a lembrança daquilo que vivi e do futuro que não chegará a tocar meu coração, pois ele está despedaçado, morto.
Conto reescrito com base em O Valente Filho da Burra - Luis Câmara Cascudo