Florisbela e as Mocorongas
Acordou tarde naquele dia, e cansada. Sem motivo, já que havia dormido toda a noite. Muito estranho... passara o dia todo, bem dizer, se arrastando. Não entendia aquele peso-estar. Está certo, trabalhara muito. “E quem disse que escrever é trabalhar? Trabalho que nada!”, condenaram ecos. Quatro horas, mais ou menos, diante da máquina de escrever, e para recuperar as energias, lá pelo fim da tarde, decidiu dar um passeio. Não era gente de se entregar à preguiça e aquele cansaço não lhe parecia normal. Queria arejar as idéias. Local do passeio, como sempre, o bosque. Logo no começo da estradinha sentiu o peso aumentar. Duas mocorongas, por trás de galhos e touceiras, planejavam o destino de Florisbela. “Não disse? Lá vem ela!” “Prepara as botinas e o saco. Quando ela passar, jogamos por cima!”, disse uma. “Feito!”, respondeu a outra. Daí que, quando Florisbela iniciou o caminho, sentindo que carregava um saco de chumbo às costas e tinha os pés fincados em blocos de concreto — o que lhe custava muito esforço para afastá-los do chão —, achou tudo aquilo muito suspeito, sobrenatural. Pois bem, mesmo assim, pesada como estava, Florisbela nem pensou em desistir da caminhada. Tinha uma meta, e os dois quilômetros daquele dia ela estava determinada a deixar para trás, nada de acúmulos! As mocorongas apostavam em que ponto ela iria desistir. “Por certo é muito peso, olha que ela está pra envergar.” “Silêncio, senão ela nos ouve.” Florisbela continuou achando estranho aquela sensação. “Será que estou doente?”, pensou. Uma vozinha conhecida, uma que vinha de seu umbigo, lhe ordenou: “Nem pensar em desistir, avante!” Teve um momento em que, sentindo-se muito, muito cansada, parou para respirar e apertar o nó do cadarço do tênis, que há muito ameaçava desatar. Nesse momento as mocorongas se alegraram: “Não disse que ela não agüentaria?! Eu disse, não disse?!”, comemorou a mais escura delas. “Parece que ela vai continuar...”, resmungou a outra. “Continue, continue!”, gritava a voz de umbigo para Florisbela. E ela continuou. A cada passo conquistado do caminho, a cada metro que ficava para trás ela se alegrava e, apesar do grande peso, sentia-se mais forte, mais ainda quando chegou o quilômetro final, uma descida. Agora ficaria mais fácil! Florisbela ia ganhando cada vez mais velocidade, sentia que o concreto dos pés estava a ponto de rachar, e o peso das costas arriava, aos poucos. Como explicar aquilo? Florisbela não entendia o que estava acontecendo, só sentia o cansaço sumindo, o peso cedendo e aquela voz de umbigo que desconhecia o significado de 'calar-se'. Nos últimos metros, já num bom ritmo, uma das mocorongas ainda tentou laçá-la com uma corrente cheia de pontas, feito arame-farpado. Nada mais foi capaz de prender a potranca livre e selvagem em que Florisbela se transformou ali, diante dos olhos das mocorongas. Alegre, saltitante e renovada, seguiu o caminho de casa pronta para terminar mais um capítulo de seu livro. E as mocorongas? Essas, frustradas, mordendo uma à outra de tanto ódio, puseram-se à espreita do próximo que viesse por ali. Em casa, acomodada em uma poltrona, Florisbela virou a página de um livro, escapando daquele universo paralelo e pulando para a vida real, muito real. Mais cedo ou mais tarde, re-encontraria as mocorongas, em qualquer de suas viagens interdimensionais.
* * *
A corrente de arame farpado atravessou o corpo de Florisbela como se esse não estivesse ali de fato, como se fosse mera olografia. As mocorongas, que a acompanharam ao longo de todo o caminho, sempre à espreita, olharam-se erguendo os ombros, sinalizando não terem entendido a nulidade da ação. E naquele ponto, sem saber que eram vistas, não perceberam quando Florisbela mostrou-lhes, numa careta, a língua, ergueu o dedo maior da mão esquerda em sua direção, soltou baixinho um “Aqui ó!”, e seguiu seu caminho sem olhar mais para trás. Fora do Mundo da Escrita, Florisbela bem sabia que não havia mais lobos, muito menos florestas, apenas mocorongas, googóis delas. E sem querer, havia descoberto um antídoto contra aquelas criaturas: indiferença pura. Só faltava patentear a idéia!
Texto comemorativo pelas 260 publicações no Recanto das Letras, também uma homenagem a Monteiro Lobato e aos irmãos Grimm.
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