O conto da cerejeira

Era noite, e ventava. Eu estava só diante de uma fogueira e debaixo de uma arvore cerejeira, tentando me aquecer no cruel inverno das montanhas.

Quando logo vi alguns viajantes vindo em minha direção. Discretamente peguei minha espada que não saía de perto do meu corpo. Uma precaução que aprendi desde pequeno. Mas não foi necessário usá-la.

Vi que os três viajantes eram uma família de quatro pessoas, o pai, mãe e filhos.

Os dois casais me cumprimentaram e pediram para se sentar à fogueira, fiquei espantado com eles, pois não me conheciam e poderiam correr algum risco, mas vi no rosto do pai, que havia muito sofrimento e dor. Por isso apenas acenei com a cabeça.

Durante a noite comemos e procuramos conversar um pouco, e logo quando as mulheres e o filho mais novo adormeceram, a expressão de tranqüilidade mórbida do velho, foi se alterando enquanto ele olhava para o fogo, dando lugar ao mesmo rosto pálido e velho uma outra expressão de medo e cansaço.

Então foi ai que o velho começou a me contar o que o machucava, ele disse algo sobre um demônio que habitava as montanhas daquela região, e que esse mesmo demônio matou todo o resto do seu clã, sem nenhuma misericórdia ou compaixão, sem motivo nenhum ele atacava os vilarejos.

Segundo o velho alguns diziam que era apenas por diversão, e outros afirmavam que era por ódio à vida, ao amor que as pessoas levavam no coração. E que a noite que o filho rejeitado do deus dragão visitava as aldeias, e essas eram cobertas pelo sangue dos seus habitantes.

Estranhamente o velho caiu de sono após contar a historia, pensei que ele estava apenas tentando me amedrontar e fiquei olhando para aquela família. Observando diante do fogo, os seus rostos com um ar de tranqüilidade e proteção, que as chamas lhes dava com o aquecimento.

Fixei o olhar no garoto, era um jovem adolescente tinha o rosto sério igual ao pai, eles tinham suas semelhanças mas parecia claramente com a mãe, que também tinha o rosto aquecido pelo calor do fogo, era uma velha e cansada, passava a certeza que era muito sábia, e em suas mãos bem apertadas parecia um colar de preces, que me deu a certeza que também era religiosa, o pai como eu já disse tinha o rosto calejado e esculpido em dor e cansaço, mas o que me chamou a atenção foi o rosto da jovem, era algo tão belo, delicado e destemido, não se parecia nem com o pai e nem com a mãe, ela era diferente.

Fiquei a olhando por um bom tempo até que ela abriu os olhos negros e também ficou me encarando.

E por um breve momento eu me senti calmo, como se não existisse nada além da neve, o fogo, eu e a garota. Que com os seus olhos arregalados me encaravam e hipnotizavam.

Até que um grito me acordou, era a mãe da garota, ela estava nervosa e tremula. Ela gritava e apontava a mim, e a minha espada, que eu segurava com a mão esquerda, o pai e o garoto logo se levantaram e pegaram suas espadas, o velho deu um grito de comando e alguns homens vieram correndo do nada, deviam estar ali a minha espera a algum tempo, o que me explicou a sensação ruim que eu tinha, eram mais ou menos trinta ou quarenta homens com suas espadas e foices, o que me deixou com muito ódio, mas continuei sentado. Olhando para a garota eu me sentia seguro e satisfeito, pela primeira vez eu sentia algo que não era dor ou raiva, ela me fazia esquecer o que eu era a minha sede de sangue.

Notei que todos os homens vestiam cores dos seus clãs e que todos eles eram sobreviventes dos lugares que eu tinha passado.

A velha se levantou e puxou a garota consigo, e o primeiro homem veio em minha direção, era como se ele viesse em movimentos leves e lentos, gritando ao fundo de uma forma quase silenciosa, mas na verdade ele vinha com toda a sede de vingança possível, não fiz nada a não ser desembainhar minha espada em direção a barriga dele, e por lá ele ficou em pé na minha frente por alguns minutos com as expressões de medo e alegria misturadas, ele estava feliz em morrer ali, mas com muito medo de morrer e do que iria enfrentar dali pra frente.

Logo os outros vieram gritando também, e de vagar eu me levantei e lutei, não procurei fazer como antes, que me divertia fazendo meus inimigos sofrer, eu só procurei dar a eles uma morte rápida e menos dolorosa, pois a cada golpe meu eu via os seus rostos me olhando procurando saber o porque de tudo isso.

Não demorou muito até que me deparei de frente apenas com o velho e o garoto, os dois estavam claramente com muito medo mas ainda de pé e prontos para a luta.

Eu disse que não queria mais lutar com eles e que iria embora, mas o velho disse que não pararia até me matar, vi o rosto da filha dele por cima do ombro do velho, e vi que já tinha sofrido demais por minha causa, então o garoto me atacou, e conseguiu me ferir no peito, foi um corte simples que apenas me arranhou, e quando olhei já estava sangrando, vi que eu não era mais imortal como antes, e fiquei desesperado então peguei o garoto pelos cabelos o ergui e o cortei na barriga, o velho pulou pra cima de mim e joguei o corpo já morto do filho nos braços deles fazendo-os cair.

Me dirigi a velha e a menina, a velha também me atacou com um punhal, e eu também a matei com um golpe na cabeça, de cima para baixo eu abri o seu crânio, o velho inconsolado tentou mais uma vez, mas com um golpe rápido eu o cortei no pescoço.

Quando dei por mim eu estava ali, na frente da jovem coberto de sangue, e ela me encarava com o mesmo olhar frio de antes.

A única coisa que consegui fazer foi me ajoelhar, e dar a minha espada a ela.

E da minha boca só saiu uma palavra. – Faça.

Então assim, ela pegou minha espada com as duas mãos, e me deu uma morte lenta e dolorida, algo que não me arrependi, e confesso que fiquei até feliz.

Feliz de morrer, não pelo ódio mas pelo amor que senti durante algumas horas, debaixo de uma cerejeira.

Leandro Santos Lisboa
Enviado por Leandro Santos Lisboa em 07/02/2011
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