Joana e o maravilhoso mundo da Escuridão
Era uma vez uma linda menina chamada Joana. Ela era filha do Rei e da Rainha e, portanto, sucessora do trono.
A princesa Joana era uma menina muito tímida, inteligente e bem vestida, mas também era muito solitária e tristonha.
Seus quartos no castelo eram repletos de brinquedos dos mais caros. Bonecas luxuosas, que a própria Condessa, amiga da mãe trouxera de Paris; vestidos, perfumes, casinhas de boneca e uma infindável enxurrada de cores e cheiros dominavam as paredes. No entanto, a menina dispensava tudo aquilo. O que realmente lhe encantava eram os livros. Os livros eram para ela, amigos que nunca teve. Um alguém para compartilhar sua vida e descobrir histórias sobre o mundo lá fora, onde ela nunca pôs os pés.
O Rei Dom Marcos III, seu pai, não aprovava muito essa idéia da filha estar lendo cada vez mais e, chegando a saber de fatos da história do mundo que nem ele mesmo sabia. E foi numa noite, durante o jantar que ele resolveu cortar de vez esse mal pela raiz.
- Eu não entendo. – disse Joana, enquanto descansava os talheres de prata muito bem polidos sobre os pratos de porcelana.
- Não entende o que, querida? – sua mãe, a rainha Elizabeth, tinha o estranho hábito de dobrar o guardanapo ao colo, como se aquilo fosse um ritual. (Joana odiava ter que fazer aquilo e se perguntava que utilidade isso teria se uma tigela de molho lhe caísse direto no vestido.)
- As aulas da Madre Cláudia. – naquele momento todos se calaram. (Joana reparou que sempre que o assunto envolvia algo religioso as pessoas pareciam temer e nunca lhe explicavam direito, mandando-a se calar e não fazer mais perguntas.) – Se Deus fez as plantas primeiro do que o sol, então elas não poderiam sobreviver... Estive lendo num livro de Ciências que as plantas precisam de...
- Já chega! – o pai bateu na mesa, furioso, ajeitando o guardanapo no pescoço. – Outra vez essas histórias desses livros? Já pedi pra que não se metesse mais com isso.
- Mas pai...
- Sem mais nem menos! Lourdes, leve Joana para seu quarto. Sem livros! E eu vou dar um jeito nos que já estão por lá, isso está afetando sua cabeça!
Lourdes, a empregada, subiu com Joana para o quarto da menina. Na mesa, o pai, a mãe e os demais empregados ficaram muito silenciosos.
- Proíbo que qualquer parente ou amigo presenteie Joana com livros ou manuscritos! Malditos renascentistas! Eles estão querendo envenenar a mente das pessoas, Elizabeth! Eles estão gerando o caos!
Joana já ouvira o pai falar diversas vezes sobre os renascentistas. Mas o que ela tinha lido era totalmente diferente. Diziam ser pessoas que estavam propagando estudos intelectuais através de literatura e arte em geral, e o que mais agradava Joana, era que nisso ela se identificava com eles – eles questionavam muito a ordem divina.
No quarto, ela sentou furiosa na cama. O sangue fervendo por causa do pai. Não podiam tirar os livros dela! Era a única coisa que tinha na vida! O que eles fariam se lhes arrancassem a coisa que mais gostavam? Pensando bem, provavelmente, a coisa que eles supostamente mais gostavam era ela, como se sentiriam se ela morresse?
- Pequena... – Lourdes sorriu, acariciando os cabelos da menina.
A velha Lourdes era uma mulher negra, de cabelos bem brancos, por quem Joana tinha enorme afeição, apesar dos pais a proibirem de tratá-la como um membro da família.
- É tão injusto!
- Vou lhe dizer uma coisa, Joaninha. Eu não sei por que e talvez nenhum de nós nunca cheguemos a saber. Mas a vida é confusa. Muitas vezes o errado é o certo e o que parece o certo é o errado. Obedeça a seu pai, ele só quer proteger você.
Na manhã seguinte, Joana não desceu para o café da manhã e, novamente Lourdes veio até o quarto carregando uma bandeja com torradas e leite. A menina estava zangada demais com ela, porque não acreditava que pudesse ficar do lado de seu pai. Durante a tarde, a empregada tornou a subir com outra bandeja e foi ao anoitecer, que Joana sentiu um cheiro muito estranho vindo da janela e imediatamente saiu do quarto. Descendo as escadas apressada até os jardins. A cena seguinte nunca mais saiu da memória dela:
Juntos no meio de uma fogueira, seus livros estavam sendo todos queimados. Contos de fadas, Poemas, Ciência e Romances ardiam em chamas. E tudo o que ela conseguiu ver foi a capa carbonizada de um dos livros que roubou escondida da biblioteca subterrânea, onde ficavam os livros mais legais.
Por detrás da fumaça enegrecida, ela viu o pai. Jogando o restante dos livros no fogo, e aquilo doeu como uma pedrada na cara.
- Isso é Concílio de Trento. – ela o olhou com os olhos marejados e saiu de volta ao castelo.
- O que foi, querida? O que aconteceu? – sua mãe apareceu no saguão de entrada, segurando um cálice de cristal, onde tomava um vinho do Porto.
Joana passou direto, subindo as escadas para seu quarto. A empregada correndo atrás. Assim que Lourdes chegou, a porta do quarto bateu com tanta força que a mulher se desequilibrou, rolando escada abaixo. O grito foi mortal.
Joana saiu desesperada, observando a cena lá embaixo. Lourdes estava morta, o pescoço quebrado. A mãe horrorizada parecia que ia vomitar. Os demais empregados apareceram apavorados e o pai entrou depressa, buscando o motivo da algazarra.
- E-eu não fiz nada. A porta fechou sozinha. Eu não fiz nada! NÃO! – Joana levou as mãos à boca e começou a chorar. Tinha matado a mulher que tanto gostava, jamais iria se perdoar.
- Joana, desça aqui agora!
Joana desceu as escadas aos prantos. Tremia demais. Embaixo, a mãe chorava também, indo de encontro à filha para lhe dar um abraço.
A cena que aconteceu a seguir ninguém jamais compreendeu.
Dos pés de Joana, escorria pelos degraus da escada uma saraivada de sangue. Uma ventania anormal invadiu o saguão e as velas do grande lustre foram apagadas, deixando todos na escuridão total. O sangue que agora inundava a escada ganhou uma luz roxa fantasmagórica. A luz cobriu as paredes e o teto e todos enxergaram o que existia além das pedras. Era um mundo assustador e surreal.
No chão do castelo, havia um enorme fosso, onde pessoas com aparência deplorável estavam amarradas a uma corrente pelo pescoço. Nos cômodos além, aonde o pai nunca a deixara ir, havia um grande quarto com uma enorme cama redonda e mulheres presas na parede, usando roupas inadequadas demais para mulheres decentes. Mais ao fundo do castelo, havia uma pequeníssima sala, onde um homem era torturado com chicotes de arame farpado, suas costas estavam esfaceladas e seus gritos jamais poderiam ser ouvidos, pois estava mergulhado num poço a quilômetros do chão.
Esses e outros milhares de horrores eram vistos como espetáculos, quando as paredes se abriam revelando o mundo maligno em que viviam.
Então, a luz foi ficando fraca, a solidez das pedras retornou e as luzes das velas se acenderam uma a uma, sem ninguém tocar nelas. O sangue subia de volta a escada, como se fosse sugado de volta para a poça de sangue onde Joana estava.
O Rei e a Rainha estavam apavorados. Os empregados faltavam pouco para desmaiar. Joana desceu a escadaria principal, se aproximando do corpo da velha Lourdes e pondo a mão em seu coração.
- Os livros nos ensinam coisas boas... E coisas más... – ela pôs a mão no peito da mulher morta – Os livros nos mostram a verdade ou a mentira... – ela tirou um pedaço de uma estranha planta do bolso e sacudiu sobre a mulher, sussurrando palavras inaudíveis. – Mas a maldade somos apenas nós que fazemos, porque apenas nós podemos decidir que escolha tomar...
O pai de Joana se aproximou da filha, pronto para lhe dar uma bofetada, mas quando levantou a mão, seu braço se partiu ao meio e ele soltou um urro de dor ao ver o pedaço do corpo ensaguentado cair no chão. A mãe gritou assustada e correu em seu auxílio, mas uma força invisível a jogou metros de distância e ela desabou sobre os móveis antigos, caindo com um estardalhaço no chão.
Joana terminara o que estava fazendo. Guardou a planta no bolso e para surpresa de todos a velha Lourdes abriu os olhos, levantando-se do chão.
O Rei que agonizava, praguejou:
- Bruxa!
Joana o olhou com frieza. Se tinham livros que ele jamais iria arrancar dela, jamais encontraria onde estavam escondidos, eram os livros de Magia Negra.
- Eu te condeno ao inferno, te condeno a sofrer o castigo divino por toda a eternidade!
Joana sorriu.
- Se o castigo é divino. Então vale a pena que seja por toda a eternidade.
Dito isso, ela saiu e o final de nossa história ainda é um grande mistério intrigante.
Alguns dizem que ela fugiu. Outros que foi queimada como bruxa pela população local. Mas alguns ainda crêem que existe uma mulher vagando por aí, sempre vestida de negro, salvando os justos da condenação iníqua do mal.