Revivida

Eu era como a um rio em movimento.

Apenas seguindo a correnteza e pingando no final.

Foi assim com as minhas veias também, invadindo tudo. Dava arrepios, mas logo me aquecia.

E foi assim que se deu vida ao meu corpo

Pesos sobe meus olhos... Talvez eu tenha criado teias de poeira pela inatividade?

Me debati como um bebê empurrando o útero. Usando força instintiva para sair da zona de conforto.

Eu tomei um longo ofego com a boca, como uma lata recém-aberta que exala cheiro de deserto. Era o começo, ainda tive que descolar minhas pálpebras e me deparar com uma luz acima da minha cabeça que me fazia querer dormir novamente.

Seria fácil finjir que eu não sabia respirar e fechar os olhos de novo, mas algo me pinicava no meio da testa. Algo me sugeria que tinha uma razão nisso mesmo que eu não soubesse.

Aqui seria o céu ou o inferno? Um sonho ou pesadelo?

Essas coisas me davam alguma ideia, porém nada daqui se parecia com isso.

Um cheiro estéril, com um ruído agudo ao fundo. Pensei em não fazer conclusões, porque meus sentidos estavam ofuscados.

_ Bem-vindo de volta, Sujeito 576. Avise sobre os sintomas que estiver sentindo. O sistema de reaquecimento já foi acionado e sua seringa pessoal está sendo preparada.

Aquela voz... Parecia uma almofada macia com cheiro de lavanda, e teria um barulho de nuvem ao ser apertada.

Pensar que havia alguém ali regulava minha respiração e fazia minhas mãos se abrirem lentamente. O ruído agudo foi substituído pelo ritmo do meu próprio coração.

Quem é v-

Me contrai bruscamente antes que terminasse de falar, segurando meu abdômen com força enquanto minha graganta cuspia um ataque de tosse que espremia meus pulmões.

Apareceram algumas gotas de sangue e resquícios de saliva sobe minhas pernas quando parei. Eu engoli um litro de ar de volta enquanto apertava os olhos, como quem acabou de sair de perto de um abismo.

_ Não fale ainda, Sujeito 576. Seu nível de desidratação é extremo, você ainda precisa de mais soro hídrico para atingir a quantidade ideal de água.

Soro hídrico...? Não lembro de já ter escutado isso.

Me demorei em um suspiro, jogando ar para fora antes de mastigar o gosto da minha boca.

A voz me fazia querer deitar novamente, mas o material da maca fazia-me franzir as sombrancelhas em estranheza.

_ Ao julgar pelas suas palavras quase ditas: pode-se referir à mim como "Acon". Sou o encarregado de gerenciar os sistemas de descongelamento de animais preservados nesse local. Aliás, sua seringa pessoal está pronta.

A voz de Acon deixava um gosto de aconchego higiênico na minha língua e despertava algumas imagens confortáveis associvéis à ele, mas as palavras não. A linguagem dele teria um gosto metálico/plastificado se fosse um gosto.

Um braço mecânico apareceu de debaixo da maca e aplicou uma seringa no meu braço. Eu serrei os dentes e um gemido áspero escapou entre a fenda estreita dos meus lábios, mas logo desapareceu como uma lâmpada apagada.

Eu virei o rosto. O braço mecânico ainda estava injetando a seringa no meu braço, apenas o tato não estava mais ali. Me veio a mente essa mesma cena diversas vezes.

_ Santo Deus... Eu tinha câncer no pulmão.

Eu me vi como um urso tentando conversar com o filho, e até esse teria se saído melhor na entoação.

Meu foco era em precionar os braços contra o abdômen e arregalar os olhos.

_ Sim, Sujeito 576. Suponho que tenha sido a razão para você recorrer ao congelamento. A cura está na sua seringa, o efeito é imediato e adicionei algumas vitaminas das quais você é deficiente.

_ Permita-me fazer uma pergunta, Sujeito 576: Como você se vê?

Acon era como um coral preso nos meus tímpanos. Tudo oque eu conseguia ouvir era a voz dos anjos repetindo que era tarde demais...

_ Eu... Eu não vejo nada.

Eu acenei horizontalmente com a cabeça enquanto fixava o olhar na pele exposta da minha perna. Não que eu estivesse prestando atenção em como a luz refletia na minha pele, eu queria apenas alguma distração para não imaginar o abismo diante de mim.

- Bem, então vou precisar acionar um módulo de acompanhamento piscicologico para te ajudar desenvolver uma visão de si. Enquanto isso vou me referir à você como uma fêmea humana americana.

Americana? Isso significa América?

Eu espremia os olhos como se isso fosse fazer enxergar mais longe dentro de mim mesma.

_ América...

Eu murmurei para tentar sentir o gosto dessa palavra na minha língua, mas ressecou meus lábios.

_ É um prazer conhecer-la, América. Gostaria de te dar às boas vindas ao ano de 5337. Infelizmente não tem nenhum humano para receber-lá, mas será uma satisfação acompanhar-lá no seu processo de adaptação.

Olhei por cima do ombro subitamente. Tinha um homem cujo a aparência combinava com a voz macia e sorriso jovial.

Eu ofegava enquanto o sangue fugia do meu rosto. Encarei o redemoinho azul dos olhos artificiais de Acon antes de perceber que quase me afoguei neles. Eu sacudi a cabeça para afastar ar gélido de ter visto algo parecido com um anjo.

_ 5337...

Esse número agora faria minha cabeça latejar, meus dedos extremecerem e meu sangue secar.

Esse abismo é oque nenhuma outra fobia poderia dar.

É oque prova que no final da correnteza não há uma goteira: há uma cachoeira de 5337 km de altura.