Ângela

Ângela não economizou no batom vermelho e me disse que não ia mais voltar.

Não tive dúvidas que ela estava falando sério, mas só consegui abrir a minha boca para pedir que ela deixasse o meu isqueiro quando fosse embora.

Eu não o fiz por querer soar cínico ou insensível... eu só estava cansado de lutar em batalhas perdidas, mesmo que eu não fizesse questão de vencer sempre.

Ângela também carregava sua cota de derrotas e de ressacas, e eu tinha certeza que ela me entendia, mesmo que gostasse de dizer que não fazia questão de me entender.

Ela ajeitou o batom com os lábios e se sentou do meu lado no sofá. Acendeu um último cigarro com o meu isqueiro e me deu o mesmo meio sorriso que me ganhou logo no primeiro dia.

- O que vamos fazer com nós mesmos hein? – Ela me perguntou.

- Eu não sei, meu amor. Continuar vivendo, eu acho... – Respondi depois de pensar um pouco.

- Mas será que é suficiente?

- Tem que ser.

Ela se levantou e olhou pela janela.

- Olha pra fora. Eu olho para fora todos os dias e não vejo nada diferente. Mas todo dia eu preciso sair para olhar. Para ver as coisas.

- Você já deixou isso bem claro. Eu nunca ficaria entre você e suas andanças.

- Eu sei. Mas não é esse o ponto.

- E qual é?

- Você um dia vai precisar sair e se expor a certas coisas. Não dá pra ficar se escondendo em uma concha como se suas mágoas fossem algum tipo de pérola que você precisa proteger.

- Você acha que se trata disso? – Perguntei um pouco irritado... como se ela tivesse falado aquilo para me atingir diretamente.

- Não quero brigar. Só quero que você saiba que ainda tem coisas muito boas lá fora... Eu vou estar lá fora.

Ângela deixou o meu isqueiro em cima da mesa, prendeu a bolsa ao redor do pescoço e saiu.

Sua chave ficou balançando na fechadura.

Fui até a geladeira e abri a primeira cerveja da noite sabendo que não seria a última.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 25/05/2020
Código do texto: T6957762
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