PRESENTE IMEDIATO 2019 depois de Cristo
“Com a mão direita, estou segurando minha caneta; com a esquerda, estou brincando com a corrente de meu relógio. Estou olhando para a parede da frente, para uma gravura de um quadro de Rembrandt intitulado A Circuncisão de Jesus. {quadro acima} Meus pés estão no chão, mas o pé direito está marcando, com o calcanhar, o compasso de uma marcha militar que a orquestra do cassino está executando lá embaixo. Simultaneamente, percebo o grito de uma coruja, a buzina de um automóvel e os ruídos do bonde elétrico. Não sinto nenhum cheiro em particular, mas minha narina direita está ligeiramente tampada. Estou sentindo coceira na região da tíbia direita e tenho consciência de ter à direita de meu lábio superior uma pequena mancha redonda e vermelha. Meu humor está hoje instável e a extremidade de meus dedos, fria.” Georg Groddeck
Com as duas mãos, mas somente dois ou três dedos, digito rapidamente este parágrafo, seguindo o modelo acima; estou com o Word 2010 aberto, na página 17 do arquivo. Meu campo visual atual abrange 4 pessoas, ou deveria dizer 3 vultos e uma linda mulher madura em vestido verde de motivos florais, situada em ângulo oblíquo sem poder ler o que digito. Ela acaba de receber uma visita e se deslocar um pouco da mesa, me deixando apreensivo. Agora que me desconcentrei e a música que estava ouvindo acabou, antes de entrar a próxima, me dei conta de que o outro servidor no fundo do meu campo visual do olho direito, o Dênis, também está atendendo um servidor. Estou no primeiro andar de um prédio que, a rigor, é o quinto andar da construção em relação ao solo (uma vez que o primeiro andar da planta fica em cima de um andar chamado sobreloja, e sua referência para ser o <primeiro> é um térreo para pedestres, localizado ainda sobre vários andares de garagem). Uma das dezesseis abas do meu navegador Chrome está reproduzindo “Paradise regained” (Belphegor) no YouTube. Dois servidores conversam risonhos com meu corpo opaco atravessando sua comunicação sonora e visual (provavelmente sou um obstáculo indesejável). Sinto uma leve tensão maxilar. Os fones apertam. Está perto da minha pausa para fumar. A música adquire intensidade e faz meu sangue circular mais rápido. A cor predominante no meu campo visual é o preto. Sinto gosto de gengibre e café na boca. Sede, apesar de já ter bebido vários ml de água ainda há pouco. Meu celular está a minha frente, abaixo do monitor, sua tela está engordurada, isso me incomoda. Um número do Rio me liga insistentemente, eu ignoro. Transpiro bastante, sinto que o ar condicionado nesta sala é só de enfeite. A playlist já passou para outra música. Minha lente direita dos óculos está um pouco embaçada. O céu a minha frente (se eu olhar um pouco para cima, pela ampla janela) está parcialmente nublado. Estou tentando lembrar tudo o que farei nesta minha quinta-feira. Sinto a pele abaixo do lábio inferior áspera; ontem usei a gilete. Os pêlos do meu bigode estão compridos e eriçados nas pontas. Minhas pernas estão cruzadas abaixo da cadeira, meu tênis direito, laranja, resvala num dos pés do assento (de rodinhas), montados em formato de cruz. Imagino que este parágrafo já está longo mas mal descreve meu presente imediato. Não sinto qualquer espécie de dor muscular ou angústia traçável. São 10:14. Ah, lembrei: tenho que levantar e buscar um papel na impressora. Um adendo antes de encerrar o parágrafo: também há uma pintura, uma reprodução vulgar, e não um quadro, como no caso de Groddeck, bem pequena, numa pilastra a minha direita, acima dum extintor de incêndio. A gravura anexada à parede branca é uma representação católica típica da Virgem Maria e sua criança, ó! Apresenta tons pastéis. Se é que passamos do seu sétimo dia de vida (quem poderia saber), por baixo de sua manta branca – estou falando do menino Jesus – ele também está circunciso. O judeu que nos salvou há 2019 menos 32 ou 33 anos. Por mais que o mundo mude bastante em coisa de um século, esse fio de uma religião morta une inesperadamente ambos os autores, separados, ademais, por um oceano físico, além dos abismos de intersubjetividade e blá-blá-blá (cite um alemão fenomenólogo aqui). Eu não redigi isso de forma planejada, embora esse desfecho tenha parecido cuidadosamente arquitetado e harmonize com todo o “prólogo”. Agora também reparei que usei a palavra cruz já antes de reparar na gravura e comentar o Sacrifício. Poderia ser que meu inconsciente já houvesse engatilhado todos estes fatores? O papel continuaria na impressora, mas alguém viu, leu, e eu sorri constrangido: é meu.