A ideia comprometida

Moscas tem a percepção de tempo diferente da dos humanos. Essa frase é algo que eu escutei muito quando era criança e sempre duvidei. Pra mim isso não fazia o menor sentido, o tempo é algo absoluto que todos estão vivenciando simultaneamente. Eventualmente, quando eu estava um pouco mais velho e tinha mais acesso à informações, eu acabei encontrando a explicação para isso, aparentemente tinha algo a ver com os olhos das moscas processarem as imagens mais rapidamente, especificamente 250 flashes por segundo, enquanto nós, humanos , processamos a apenas 60 flashes por segundo. Isso me deixou fascinado, e talvez até mesmo obcecado, fazendo com que eu começasse a ter diversas ideias de como isso teria impacto se fosse controlado pelas pessoas, que tipo de benefício seria capaz de ser obtido através dessa tecnologia, se algum dia ela fosse possível. Com isso eu comecei minha carreira de estudos para chegar onde estou hoje, eu me esforcei muito, sempre mantendo minhas ideias e teorias em dia, até conseguir me tornar o que você pode chamar casualmente de cientista, para não ter que entrar em detalhes.

Hoje em dia eu faço de tudo para conseguir tornar essa tecnologia viável, mas obviamente também trabalhando normalmente, pois ninguém vive apenas de ideias.

Atualmente com 32 anos, eu sou casado e sem filhos. Durante toda minha carreira poucos amigos continuaram ao meu lado.

Hoje, 26 de março de 2027, é apenas mais um dia comum de trabalho. Eu acordo ao lado de minha esposa, Emma, e vou tomar banho. Saindo do banheiro ela já está acordada fazendo o café da manhã, que a gente come assistindo TV.

No jornal da manhã está passando uma notícia sobre a primeira inteligência artificial a conseguir manter conversas fluídas e originais, sem influências externas, apenas uma semente que germinou e vem se alimentando sozinha de informações pela internet. Vendo isso, Emma comenta:

-Daqui a pouco não vai mais existir diferença entre humanos e robôs.

-Realmente, esse tipo de tecnologia deveria ser desenvolvida periculosamente, e não simplesmente jogando toda informação do mundo em cima dela. Isso realmente é perigoso

Com isso, eu acabo de comer, me arrumo, e saio para trabalhar.

Meu dia passa rapidamente, nada de interessante acontece na minha rotina de trabalho, apenas o de sempre.

Novamente em casa, eu janto com Emma e vou para cama ler antes de dormir. O livro se trata de um suspense sci-fi, como qualquer outro clássico jogo de gato e rato, é apenas uma história de perseguição. Durante a leitura algo me chama a atenção, o protagonista, para ajudar em sua busca, recorre ao uso de diversas câmeras que, segundo ele, tem a mesma a capacidade de um olho humano e uma perspectiva de um olho de mosca. Isso me dá algumas ideias, que eu apenas anoto pois está tarde e eu não conseguiria as desenvolver com sono.

Hoje eu acordei ansioso para rever as ideias e tentar tirar algo delas, mas como meu trabalho existe, isso acaba ficando pra mais tarde.

Durante o café da manha eu conto para Emma sobre essas ideias e ela diz:

-Quem sabe você consegue finalmente criar essa tal tecnologia que você fala tanto sobre.

-Ah eu espero que sim, estou com isso na cabeça desde criança.

E então eu saio novamente para trabalhar.

Finalmente em casa, eu vou direto pegar meu caderno de anotações onde eu escrevi minhas ideias.

A principal, a qual eu considero mais plausível, era a de que, já que a causa dessa diferença era a visão, eu vou simplesmente recriar os olhos de uma mosca. Por mais caro que isso pareça, se eu conseguir discorrer essa ideia publicamente de uma boa forma, eu vou conseguir os certos investidores. Pensando mais a fundo eu chego a conclusão de quem seria o investidor. Por mais que eu recriasse os olhos, pela perspectiva humana, tudo continuaria na mesma velocidade, então o objeto teria que ter inteligência própria, obviamente controlada por nós, para poder usufruir de sua “habilidade temporal”.

Depois de dias criando um texto para ir a público, eu finalmente o divulgo. E a empresa perfeita vem fazer contato. A mesma empresa que havia criado a inteligência artificial que eu tinha visto outra manhã.

A ideia do objeto precisar de uma inteligência própria foi o que, obviamente, iscou a empresa. Eu sabia que tudo aquilo era simplesmente por dinheiro, mas não tinha problema, eu só quero ter meu sonho realizado.

Depois de ser contatado, eu fui chamado para a sede oficial deles, para poder se aprofundar mais sobre o assunto e, quem sabe, chegar em algum contrato. E é exatamente isso que acontece, eles disseram que iam fundar meu projeto, elogiando a ideia, que, por mais obvia que fosse, ninguém nunca tinha pensado dela.

Nesse dia eu chego em casa e comemoro com minha esposa.

Passam-se anos, eu largo meu emprego pra poder me esforçar ao máximo no projeto, e finalmente, nós chegamos ao primeiro protótipo. Por mais que eu tivesse tido ajuda da empresa, a maioria da parte técnica foi desenvolvida por mim. E quando eu vi aquela pequena criaturinha de metal levantando voo, com sua própria inteligência, e conseguindo desviar de tudo que se aproximava dela, como uma mosca real, eu chorei. Finalmente meu sonho estava realizado, pode parecer bobo, um sonho que aparece aleatoriamente e se prende a minha cabeça, e agora eu estou chorando por causa dele, mas finalmente aconteceu.

-Isso é um passo enorme para a humanidade - disse o CEO da empresa

-Realmente, mas qual será o uso dela - eu respondi, mesmo depois de todo esse tempo trabalhando nisso, eu nunca pensei sobre seu uso, eu só queria a tornar possível, e eu sabia que existia uma ideia de aplicação, já que ninguém investiria em algo tão pesadamente sem ter planos na cabeça.

-Primeiramente segurança, obviamente, já que com isso nós temos uma pequena câmera indestrutível e, logo menos, camuflada. Ela pode ser usada para infiltrações ou coisas do gênero.

-Não é uma má ideia - eu digo

-Mas isso não é tudo, depois que essa fase de segurança passar, nós avançaremos para a próxima.

-E qual seria essa fase, senhor.

-Militar, oras, não está obvio? Com ela nós podemos criar uma grande vantagem de combate em relação a outros países. Imagine ter um espião praticamente invisível nas forças inimigas. É algo que seria impensável se não fosse por você. Bom trabalho.

-Mas eu não criei essa tecnologia para machucar os outros, era apenas para realizar um sonho.

-E agora ele já está realizado. O resto está em nossas mãos, e quando o governo ficar sabendo disso, ele vai pagar uma grana preta para nossa empresa, e então estará tudo nas mãos deles. No fim todos nós lucramos e nosso país se tornar uma potência ainda maior, não tem perda nesse plano.

-Eu não acredito nisso.

-Não precisa acreditar, o pagamento pela sua parte já foi depositado em sua conta, agora saia daqui antes que eu me arrependa de te pagar, pessoas que me contrariam me estressam.

E então, com meu sonho realizado e sem nenhuma opção de poder continuar lá, eu saio daquela empresa e nunca mais volto. Eu fico sabendo sobre seus futuros projetos, de como eles conseguiram chegar a um produto final, sem ter de continuar usando protótipos, mesmo sem minha ajuda.

Depois de muitos anos finalmente acontece o prometido, é anunciado na TV a compra dessa tecnologia pelo governo, que sem mais nem menos anunciou que o uso seria militar.

Tudo que eu tenho pra fazer agora é ficar em casa vendo minha tecnologia sendo usada da maneira errada, sem poder reclamar, e pensando em como nem todo sonho tem seu final feliz quando é cumprido.

galowillian
Enviado por galowillian em 01/12/2018
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