Psicoderiva: O tempo infernal

“Não se trata do fato de que acontece ‘sempre o mesmo’ (a fortiori, aqui não se trata de um caso do eterno retorno) e, sim, do fato de que o rosto do mundo, a imensa cabeça, nunca muda naquilo que é o mais novo” (Walter Benjamin)

De súbito, um enigma se põe no horizonte – e na imediatez da presença sensível. Um enigma ao mesmo tempo fragmentário e total, singular e transversal. A travessia da ponte entre o natural e o humano, entre o mítico e o histórico se põe na singela travessia entre o bucólico e o urbano. Nessa travessia se interpenetram a humanização da natureza e a naturalização do “homem” como uma forma perversa de reificação. Tudo subitamente (im)posto entre si e o mundo.

Ao se atravessar do quase inevitável drama privado à dinâmica caótica do mundo quase histórico, ou ainda, ao se interpelarem o seu tempo morto e este mundo, entra-se em um jogo de roleta russa no qual cada giro dentro das seis possibilidades existentes encontra sempre, ao final, o ruído da bala. Um terminal de ônibus, na saída do litoral para o centro, torna-se um jogo no qual cada linha, cada escolha leva – necessariamente – a uma construção diferente de si mesmo. Uma paixão, uma amizade, uma traição (trair ou ser traído), a autodestruição, um assalto (seu ou dos outros) ou a interrupção catastrófica de um acidente; tudo (im)posto ao mesmo tempo na roleta russa da existência, a ser escolhido na fração de uma piscadela de olhos.

Sem se saber já se atravessou a toca (de coelho) que leva ao fantástico. Este, aliás, não passa do já existente, com o qual se convive e para o qual não se costuma abrir os olhos. Sem se esperar se entra em uma peça na qual cada ato é uma situação. Seus elementos: uma questão (complexo), posta por um enunciado (de si ou de fora – é improvável a autonomia desse “fora”), associada a múltiplos estímulos que configuram uma projeção experimentada em um curto espaço de tempo. Seu final: uma carta marcada e um retorno ao ponto de partida – o ônibus segue o seu roteiro rotineiro. Em cada começo outras possibilidades tornando-se reais em frações de segundo. Em cada recomeço uma tentativa de interpretar o ato anterior (prestes a ser esquecido). Sem essa interpretação parece impossível sair do ciclo de repetições.

Assim parece ser o mundo histórico: às suas infinitas possibilidades concretas se sobrepõe uma repetição infernal de ponto a ponto do espaço urbano, desgastando-se no trabalho e tentando renovar-se no consumo. Assim parecem ser as insurreições: cada agora perdido impõe um enigma, um apelo à sua interpretação fundamental para o ato seguinte. Isso até a próxima jogada – que pode ser a última, mas que até agora não foi.

Antônio Vicente
Enviado por Antônio Vicente em 30/09/2018
Reeditado em 30/09/2018
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