A passagem

Encararia o silêncio da goteira, se esse curasse-me da seca de junho. Marcelo exige olhos abertos para penetrar o buraco no teto, mas eles ardem, como a falta de humidade na traqueia estraga o prazer de engolir. Engoliria o feixe branco e de todas as cores, caso me fizesse feliz.

"Não faz", é o que Dália diria. Sábia mulher, entende de tudo, porque entende de nada. Ignora qualquer nome desconhecido, adjetivo metido ou falta do que falar. Quando chegávamos do trabalho exaustas, sua espontaneidade estupenda cantarolava com a língua, espantando os fantasmas. A maldita tinha que fugir em maio! Agora, nada me distrai da ausência de um "ploc".

Rastejar pelos campos secos faz barulho, porém barulho inútil. Só lembra à grama de que é um cadáver. Já fui cadáver.

Lembraria melhor do passado com a boca menos desidratada, dada a dificuldade de me concentrar quando o ar está pálido. Em maio, estávamos ainda no mundo dos mortos, onde as goteiras pingavam festivas, a transparência não bastava e tudo era tão aquoso. Marcelo implorou o perdão de Bárbara, sua patroa.

Bárbara tinha princípios. Deveria dar vida a Dália, depois de seu desacato. Então, ela fugiu. Quem deseja viver, afinal? Dália temia tanto a vida que me deixou na companhia de Marcelo. Perdoei-lhe, sabendo de seu destino incerto.

Ninguém se importa muito com suas lagartixas, assim como nós, lagartixas, não nos importamos muito com nossas vespas. Poderia admitir minha mágoa por ser expulsa do mundo magnífico dos cadáveres quando descobriram que Marcelo me protegia – o coitado pensava conseguir proteger criaturas plenamente senhoras da própria segurança, um crime hediondo, pelo qual fui responsabilizada -, não quero.

Aceitei a lei quando estava morta, não posso voltar atrás, uma vez que esse é crime mais grave, com punição de surdez. Pelo menos, surda, saberia a razão de não ouvir o incomparável barulho das goteiras. Sigo ignorante, o mundo vivo segue quieto, porque as criaturas vivas sentem-se envergonhadas dos ressuscitados.

Por isso, escrevo-lhe esse recado, ser vivo. Espero poder explicar-me, um dia, como a vergonha deixa seu tipo assim, indecifrável.