Contos nublares #103: ESTUFA EM BOLHA DIGITAL (Ficção)
Uma noite de verão de intenso calor
Se bem que esse mormaço criasse um imenso vácuo atmosférico a atrair massas frias de ventos, nuvens carregadas de chuvas, seria nada mal. Isso é o que mais desejo e nos cairia muito bem.
De repente, como a materializar meus pensamentos, alvissareira ventania agita a vila em torno. Saio a observar as estrelas, mas apenas Alnilam, Alnitak e Mintaka (as Três Marias de Orion) e Júpiter, entre uma e outra densa nuvem. _ “Ulalá!” _ quase gritei, pleno de gratidão. É disso que precisamos. Chuva e uma temperatura agradável para puxarmos um belo de um ronco.
Eureca! Repentina inspiração me ocorre. Corro imediatamente para o computador e começo a escrever um artigo sobre o efeito estufa. Enquanto isso, um festival de relâmpagos e trovões invade a calma solidão da já quase madrugada em contraponto ao tinitus auricularis que antes muito me perturbavam.
O efeito estufa, segundo estudos, tem ameaçado a humanidade em constante e progressivo aquecimento global. Há controvérsias sobre este assunto, mas, pelo sim, pelo não, é melhor nos prevenirmos e trabalharmos para neutralizar seus efeitos, já que os líderes globais têm-se demonstrado, na prática, incapazes no combate na origem. É tão fácil não poluir, mas a ganância pelos lucros capitais os torna insensatos.
Ultimamente muito se tem falado sobre o armazenamento de dados em nuvens, algo alusivo ao fato de que, na era da internet, os dados passam constantemente pela ionosfera, ponto a ponto, interligando equipamentos, pessoas, sistemas. No entanto, as informações são mesmo armazenadas em terra, não em equipamentos virtuais, mas fisicamente, em potentes concentradores de dados. Então, fico em sinapses, pensando por que não tornar essa nuvem real. Seria uma ferramenta utilíssima a um custo praticamente zero. Precisaria apenas de uma antena parabólica e um potente transreceptor de ondas eletromagnéticas e um arrojado programa de computador para formatar esse imenso e invisível “disco” físico.
Milhões de pensamentos lógicos me invadem a mente e os transcrevo para o meu banco de ideias. Esquecer, nem pensar. Uma pergunta não me deixa sossegar: _ “Mas onde mesmo vou armazenar tudo isso? Na camada de Ozônio? É um potencial incomensurável. Não seria viável. E, como formatar a ionosfera? Isso é pura utopia. Não vai dar certo.”.
Apesar da chuva a cair copiosamente lá fora, cá dentro, o calor ainda é forte. Abro a janela telada para barrar insetos hematófagos para permitir a entrada de um ventinho gostoso. Volto a lembrar do efeito estufa. Aquela imprestável camada, feito bolha, devido ao buraco na camada de Ozônio, concentra calor que se propaga em sucessivos rebatimentos de ondas entre a litosfera (superfície da terra) e a camada de dióxido de Carbono a reverberar indesejável onda escaldante. Ah, se eu pudesse enviar até lá um software a ordenar os íons de Carbono! E se pudessem liberar os íons de Oxigênio? Já pensou a faxina que fariam em prol da humanidade?
De posse de meu laptop, após longos meses de codificações de extensos algoritmos e exaustáveis testes de bancada em meu precário laboratório, com emissões de descargas iônicas em uma ampola de dióxido e monóxido de carbono, criei o meu protótipo NADCOC (nuvem de armazenamento de dados em camadas oxi-carbono). Com mais alguns meses de estudos e testes, consegui junto a minha equipe, materializar um módulo estabilizador volátil (MEV), cérebro da nuvem iônica recém-criada dentro de uma ampola vítrea com gás CO2. Nada aparentemente visível a olho nu, mas ao incidirmos a luz violeta, milhares de minúsculos prismas vêm a lume. Esplêndido! Cada prisminha desses é capaz de armazenar milhões de terabites, quiçá alguns yottabytes. Imaginem toda camada de CO2 da atmosfera!
Próximo passo, registrar a invenção, mas isto me causa sérios aborrecimentos e contratempo. Dinheiro é a primeira barreira dada a alta custo das taxa de registro de patente. Surgem propostas de parcerias de última hora, mas nenhuma é favorável a mim. Dizem que, visto eu não ter o capital necessário para lançar o projeto em prática, eles custeariam tudo e eu, como mentor da ideia, ganharia uns meros 0,001% do seu faturamento por apenas 10 anos, enquanto a patente seria deles, detentores do capital.
Muitas possibilidades o NADCOC seria capaz de produzir, desde o simples armazenamento de dados, controle de temperatura da litosfera e das estações do ano, estabilização climática à tão sonhada viagem no tempo em todas as direções. Há também o grande risco de cair em mãos inescrupulosas e gananciosas de especuladores a se utilizarem dos múltiplos usos deste invento a programarem catástrofes localizadas sem limites etc.
Pedi um prazo para pensar. Após oito semanas, uma multinacional me procura para propor uma parceria vantajosa, a me destinar 7% dos lucros, caso fechemos negócio com eles. Felizmente isso não foi possível.
Temendo o mal uso de minha invenção, dias atrás, destruí a ampola do NADCOC, deletei o software e suas sub-rotinas, além de reformatar o HD onde guardava meu Banco de Ideias. Quem sabe, quiçá, eu tenha livrado a humanidade e o Universo de males inimagináveis? E, para não entrar em colapso nervoso, Dr. Eksey me aplica uma ampola de Exmemory IA 10mcg para que minha memória recente fosse totalmente apagada e eu não sucumbisse a pressões e voltasse a recodificar os softwares do projeto abortado. De tudo, só me lembro do Dr. Eksey a dizer-me: _ "Pronto! fique sossegado! Suas lembranças mais recentes foram totalmente apagadas. É natural que você não se lembre de muitas coisas triviais, mas é assim mesmo. Faz parte!"
Nem procuro saber detalhes visto que algo me diz que eu mesmo teria solicitado aquela intervenção e isso me faz sentir livre, leve e solto. Assim, tento voltar ao meu anonimato, lugar tranquilo e seguro de onde jamais deveria ter saído. Até hoje me perturbam, tentando, em vão, resgatar o meu projeto. Ah, se eu pudesse voltar atrás e não ter começado essa ideia maluca! Mas que ideia que nem lembro mesmo do que se trata! Na verdade é como se eu realmente tivesse retrocedido no tempo e tomado uma via alternativa de conduta.
Meu maior receio é que encontrem o pen-driver backup perdido. Não lembro do seu conteúdo, mas quem sabe, não contenham todos os dados do abortado projeto? Tomara que não!
Eu não me perdoaria, caso o encontrem e toquem em frente o que tanto quis evitar. Seria o fim!