CONVIDADO ESPECIAL...
Já são quatro noites e um mesmo sonho.
É noite... Andando por uma rua estreita e deserta chego numa praça vazia. Paro em frente a uma construção fabril antiga e abandonada. Tenho-me como um convidado especial de um evento que desconheço...
Sem compreender o porquê ou como cheguei até ali, apenas sigo o instinto e ando...
Ao chegar, vejo-me diante de uma grande porta de madeira que se encontra entreaberta. Noto que não há quem me recepcione... Pela abertura apenas percebo que a iluminação é precária e, aparentemente, feita à luz de velas...
Adentro e, em poucos passos, estou num amplo salão amarelo com um mosaico vermelho e sofisticado no chão. Dou mais alguns passos e atravesso o salão em direção à outra porta, que já se encontra aberta.
Novamente paro e, ali olhando para os lados, consigo observar que existem muitas pessoas, em trajes de gala e usando discretas máscaras. São dezenas, centenas de pessoas, formando filas, entrando por outras portas laterais. Elas estão seguindo até um segundo salão, infinitamente maior que o primeiro, mas que, nesse momento, me foge à vista, pois estão na penumbra...
Observando um pouco mais percebo que elas se acomodam em poltronas confortáveis localizadas numa altura superior ao fitar dos meus olhos, como se estivessem dispostas em degraus de uma elevada arquibancada. Entretanto, ficam bem distantes de mim....
Nesse momento imagino estar ingressando num teatro antigo onde será exibido um espetáculo dramático e secular.
Mais três passos, atravesso pela porta, dessa vez, um pouco menos confiante, e me dou num ambiente do infinito. Inexplicável e absurdo... Tudo fica estranho... Agora estou onde, ao próximo passo, não há mais chão. Sob mim e à frente tudo é plena escuridão, é breu, é vazio, é nada.
Tento voltar os passos, mas... Eis que, a porta atras de mim se fecha!
Não consigo notar mais nada... Nem a mim mesmo... Passo a sentir medo... Sei apenas que estou ali, pois sou eu. Sinto-me nas sensações...
Ao longe passo a notar pontos suaves de luz que se acendem mas, tremem como se fossem frutos de mãos que seguram velas... Elas conseguem formar uma grande linha horizontal que sugerem circunferência, dão a ideia de que estou numa gigantesca arena pronto para ser devorado por feras...
Sinto minha respiração ofegante e ouço palpitar acelerado do meu coração...
Também consigo ouvir um balbuciar... Consigo até imaginar que são muitas pessoas sussurrando, conversando baixo mas, de onde estou, tão longe, a percepção é de que assemelham-se à moscas, muitas moscas, milhares delas...
Novamente olho para baixo e dessa vez noto algum volume na escuridão... São meus pés, mas além deles, há uma estrutura, aparentemente, em concreto, que me faz lembrar uma rampa descendente... Posso sentir esse formato ao deslizar, receosamente, o pé, que agora treme, até ultrapassar a linha horizontal do abismo que imagino estar diante. Estico a perna ao máximo que posso acompanhando a descida, até sentir meu pé descer até o nível que estou, mas rapidamente a recolho... Há muito medo.
Logo acima de mim, situado a poucos metros da minha minha cabeça, percebo que há um gigantesco candelabro de madeira. A escuridão ainda me impede de defini-lo, mas noto que tem forma de círculo, devidamente firmado no centro por uma estrutura em formato de cruz, como se o dividisse em quatro partes iguais, em quartos... De mesmo modo, percebo que toda estrutura está suspensa por grandes correntes que parecem estar sustentadas no além....
Ouço um barulho ensurdecedor e me assusto!! Sofro um desequilibro ao ponto de quase me lançar em queda ao desconhecido... Mas, consigo me manter firme. O som é tal qual o destravar dos grilhões que aprisionam a mais monstruosa de todas as feras... Em seguida ouço novo barulho, desta vez, semelhante ao desenrolar de correntes, as quais, lentamente, fazem baixar o gigantesco candelabro. Outro barulho e a estrutura para como um elevador ao nível dos meus pés.
Silêncio...
Penso que devo subir... Piso na extremidade do candelabro sentido nos pés o ranger da madeira antiga, ao tempo que sustento nas correntes, num movimento temerário entre o balanço e o despedaçar da velharia.
Outro barulho e a estrutura começa a se deslocar, é um pequeno balanço à frente e um tranco para baixo, como um despencar controlado... um balanço à frente e um despencar... um balanço e um despencar... Um balanço... Descendo e construindo uma tangente no sentido da rampa, rumo em direção ao desconhecido.
Foram horas... O silêncio passou a dar lugar a ruídos que não sabia definir... Aos poucos foram ficando mais altos... Passei a imaginar que seriam vozes... Diferentes vozes. Mas, eram gemidos, como se neles houvesse dor... Eram lamentos... Söns que assemelhavam-se aos de animais desconhecidos. Animais em dor, sendo abatidos, e que, às vezes, se confundiam com gritos, como um clamor descontrolado.
A angústia tomava conta de mim... Sentia náuseas. Eu só queria me encolher e apertar o estômago com as mãos para evitar o mal estar... Já me via espremido na sensação de pressão que me fazia esmagar por dentro... Já estava ao ponto de não suportar mais e abandonar aquele artifício e me lançar ao desconhecido para tentar amenizar todo aquele absurdo que acontecia em mim... Eu queria gritar!
Quase me abandonando à própria angustia olhei para baixo e notei uma luz vermelha... Uma luz que passou a crescer e mudar de cor, enquanto eu ainda resistia àquele desespero... Um luz que se expandia e já era vermelho, amarelo, laranja, e se intensificava e se avolumava mais cada vez que eu descia e sofria... Uma luz que se agigantava e se formou um mar que se aquecia e explodia como lava... Fervia.
Eu já vomitava e derretia... O calor me evaporava os sentidos... Eram horrores e gritos. Eram as dores do fundo infinito...
Eu já não aguentava mais... Agachei quase em transe, com uma mão segurava o vomito e com a outra uma das correntes, enquanto o mar de fogo já explodia quase lambendo e desmanchando meus pés...
Hipnotizado e sentindo, em último delírio, o impulso de me atirar de vez, uma bolha estourou e uma mão emergiu do meio da lava flamejante como se clamasse para que eu a segurasse...
Num ultimo surto de consciência e esforço, segurando na corrente, estiquei meu braço e lhe estendi a mão... Meus dedos tocaram aqueles dedos que derretiam e borbulhavam... Então, como por detalhe, apertamos as mãos. Nunca senti tanta dor na vida...
Foi como se eu estivesse sendo marcado a ferro quente... Grudados enquanto derretíamos juntos, lutei para não ser lançado em fervura e num movimento de sobrevivência forcei para que o retirasse dali...
Envolto em dores fui forçando a retirada daquela criatura da lava até que ele se agarrou noutra corrente e conseguiu se sustentar...
Eu sofria... Afastei-me dele. Fiquei em outra extremidade do candelabro, enquanto ele dilacerado se debatia e se retorcia sobre a estrutra.
Aos poucos fui conseguindo respirar e suportar o sofrimento... Enfim, largado como trapo de pano pano, ela ficou como um pedaço de carne pendurado num varal, parado como se estivesse morto...
O candelabro voltou a balançar, só que dessa vez passou a subir. Um tranco pra cima e um balanço pra trás... Pra cima e pra trás... Pra cima...
Subia desmaiado...
Chegamos no último tranco e despertei.
A porta se abriu e fomos lançados para fora! Estamos jogados no centro do grande salão inicial.
As pessoas saíam pelas mesmas portas laterais que entraram enquanto nos olhavam largados no salão...
Então, ao meu lado, aquela criatura se levantou.
Se fez homem...
Olhou-me nos olhos, sorriu como se me agradecesse, mas não falou nada e foi embora...
Ergui-me!
A porta da rua se abriu e, cambaleante e exausto, também fui....
Essa noite foi quarta vez que sonhei voltando de lá trazendo alguém.